quinta-feira, 30 de setembro de 2010

As causas do enfraquecimento da Europa Social

"Social Europe" vs. "liberalism...Image by Cvjetichologue via Flickr

António Campos











Este artigo evidencia as políticas fiscais regressivas que têm vindo a ocorrer nos países da União Europeia dos Quinze (incluindo Espanha), responsáveis pelo enfraquecimento da Europa Social, bem como pela enorme polarização dos rendimentos nestes países.





À primeira vista pareceria que até aos anos que precederam a crise económica e financeira, a Europa Social (isto é, os estados de bem-estar dos países membros da União Europeia) tinham boa saúde. Na realidade, a despesa pública social (como percentagem do PIB) foi aumentando desde os anos noventa. Nos países da UE-15 (o grupo de países mais ricos da UE), a sua média cresceu de 25,4% em 1990, para 27,4% em 1997, para 27,7% em 2003 e para 27,9% em 2005. 


Ora bem, falar de médias é muito enviesado e pode ser desorientador. Podemos afogar-nos num rio que, em média, tem apenas dez centímetros de profundidade. Pode estar seco na sua maior extensão, mas pode ter uma zona de três metros onde as pessoas se podem afogar. Daí que seja importante observar a sua variabilidade em torno da média. Na UE-15, o país que tem uma despesa pública social mais baixa é Espanha (20,9% do PIB em 2005). E a mais elevada é a Suécia (32%). 


A causa deste diferencial é predominantemente política. As direitas, historicamente, foram muito fortes em Espanha (e noutros países do Sul da Europa) e as esquerdas foram-no na Suécia (e nos países do Norte da Europa). É importante que se sublinhe esta explicação porque há uma tentativa por parte de economistas neoliberais de ocultar e diluir esta causa política do subdesenvolvimento social, atribuindo a despesa pública social ao nível de riqueza de um país.


Seguindo um tipo de determinismo económico, postula-se que quanto maior o nível de riqueza de um país, maior é a sua despesa pública social. Esta postura é errónea e é fácil de demonstrá-lo. Os EUA são o país mais rico do mundo e, em contrapartida, são um dos países com uma despesa pública social mais baixa. E Espanha já não é um país pobre. O seu PIB per capita já representa 94% da média da UE-15. E, em contrapartida, a sua despesa pública social per capita não é 94% da média de despesa pública social per capita da UE-15, mas tão só 74%. Se fosse 94%, gastaríamos 66.000 milhões mais no nosso estado de bem-estar do que gastamos agora. É importante que esta situação se conheça, porque existe hoje uma postura muito generalizada, não só entre os partidos conservadores e liberais, mas inclusive na equipa económica do governo Zapatero, que justifica os cortes na despesa pública com o argumento de que, como país, gastamos mais do que os nossos recursos nos permitem. E daí deduzem a necessidade de aplicar medidas de austeridade de despesa pública. Esta interpretação dos nossos males, assumindo que a crise é consequência de que “gastamos mais do que temos”, estendeu-se também em toda a UE e é o novo dogma que justifica os grandes cortes da despesa pública a fim de reduzir o défice e as dívidas públicas. Mas é fácil de demonstrar que este dogma está profundamente errado.


Em Espanha gastamos, repito, 66.000 milhões menos na Espanha social do que deveríamos gastar segundo o nosso nível de desenvolvimento económico. E o facto de não se gastarem resulta de o estado não os recolher. Não é, pois, que Espanha não tenha os recursos. Tem-nos e muitos (66.000 milhões de euros). O que ocorre é que o estado não recolhe estes fundos. Esta é a realidade que, ou bem se desconhece, ou bem se ignora deliberadamente para justificar as políticas de austeridade de despesa pública que se estão a seguir em Espanha.






E aí está a raiz do problema, a enorme regressividade do sistema fiscal que em muitos países da UE-15 foi crescendo desde o início da era neoliberal. Vejamos as componentes desta regressividade, começando pelos impostos [1]. Os ingressos para o estado, por via impositiva, diminuíram na UE-15, passando de representar 39,8% do PIB em 1996 a 39,3% em 2004, descida mais acentuada nos países integrados na união monetária (passando de 38,0% para 34,5%). Nos EUA, por certo, baixaram também, passando de 27,3% para 25,4%, o mesmo que no Japão, onde passaram de 27,3% para 25,4% durante o período 1995-2004.

Mas, além de baixarem os ingressos para o estado (apesar de o nível de riqueza ter aumentado), vemos que a incidência dos rendimentos do capital (muito mais baixa que a dos rendimentos do trabalho) desceu ainda mais. A taxa de incidência dos rendimentos do capital nos países da zona euro passou de representar 17,0% em 1995 para 14,0% em 2003, a maior descida entre o grupo de países da OCDE (o clube de países mais ricos), enquanto os rendimentos do trabalho continuaram a ser taxados a 35%. A taxa de a incidência do consumo manteve-se ao mesmo nível, com um ligeiro aumento de 20,5% em 1995 para 20,8% em 2003. Estes dados mostram que foram os rendimentos do capital os que beneficiaram mais como consequência das políticas fiscais aplicadas durante aquele período. Outro grupo que beneficiou enormemente são os rendimentos superiores, que viram descer a sua taxa de incidência de 51,52% da sua renda para 49,20%. Para entender estes valores, há que saber que cada 0,1% de descida na taxa de incidência representa milhares de milhões de euros que os estados deixam de recolher.


Como se justificam estas políticas tão favoráveis aos rendimentos do capital e aos rendimentos superiores? O discurso neoliberal (presente na maioria dos partidos dirigentes nos países da zona euro) é que o capital e as pessoas de rendimentos superiores (os ricos) são muito móveis e, se os estados não os mimarem, deixarão o país. São parte das classes cosmopolitas que se movem de um país para outro como parte do jet-set. Ora bem, os estados podem intervir para diminuir tal mobilidade. E, se não o fazem, é predominantemente por razões políticas, isto é, não se atrevem a enfrentar-se com interesses fácticos tão importantes como, por exemplo, a banca. Hoje, grande parte dos movimentos do capital financeiro são de tipo especulativo, isto é, enriquecem sem criar riqueza. Trata-se da economia de casino que nos levou à crise que estamos a viver. Daí que se deveria eliminar estas actividades e taxar fortemente esta mobilidade de capitais a curto prazo. A existência dos paraísos fiscais (que existem, não só na Suíça e no Luxemburgo, mas também na Alemanha, nos EUA, na Bélgica e na Irlanda) prejudicam, não só os países onde tais paraísos existem, mas os países dos quais provêm estes capitais. Significam o caso de evasão e corrupção de capitais mais importante do mundo, da zona euro e de Espanha. O facto de que mesmo agora, depois do enorme prejuízo que causaram, os estados não terem intervindo ainda, mostra a natureza política do problema.

Outra medida, além de coordenar as políticas fiscais entre os países da UE, é estabelecer normas de taxação empresarial, abaixo das quais não poderia permitir-se às empresas operar num país. Isso estaria encaminhado a evitar o fenómeno Irlanda, que baseou o seu desenvolvimento dentro da EU em salários e impostos baixos, resultando um estado com escassíssima sensibilidade social e baixa qualidade de vida. Esta estratégia de desenvolvimento, que Espanha também seguiu, conduz a um desenvolvimento caracterizado por enormes, altos e baixos, sem se basear numa riqueza estável e bem repartida (como a dos países nórdicos). 


Requer-se também o desenvolvimento de regulamentos sociais como condição de permanência na União Europeia, garantindo a existência de direitos sociais e laborais (tais como a universalidade de protecção social em todas as suas categorias), bem como um código obrigatório (não voluntário) de conduta das empresas, expandindo o seu critério de lucro e produtividade, considerando lucro não só a rentabilidade para os seus accionistas e gestores, mas também a sua contribuição para a comunidade. Tais regras e direitos devem estabelecer-se a nível da UE, estabelecendo as condições para atingir um pacto social a nível comunitário, o qual requereria uma legislação a nível continental que permitisse convénios colectivos a nível europeu (o que não existe hoje na UE). E deveriam incluir-se impostos a nível comunitário, tais como impostos de protecção ambiental, que serviriam para fins sociais amplamente populares.

Na verdade, não é difícil visualizar as políticas públicas que deveriam praticar-se, tanto a nível da cada estado como a nível de toda a UE e da zona euro. O difícil é que se levem a cabo, e isso como resultado do domínio das forças conservadoras e liberais nos estados membros da UE, bem como no Conselho Europeu, na Comissão Europeia e no Banco Central Europeu. A construção da União Europeia fez-se mediante políticas neoliberais que têm prejudicado o bem-estar das classes populares do continente. Os rendimentos do trabalho como percentagem dos rendimentos nacionais diminuíram na maioria dos países membros da UE [2], durante os anos de construção da UE e da sua zona euro.

Na maioria dos países de tal zona monetária, o aumento notável da produtividade não correspondeu ao conseguinte aumento salarial, tendo sido os rendimentos do capital os que beneficiaram mais com aquele aumento. Entre estas últimos rendimentos, os do capital financeiro atingiram níveis de enorme exuberância, sendo o seu comportamento uma das causas da crise actual. Foi, pois, a enorme polarização dos rendimentos (resultado, em grande parte, das políticas fiscais regressivas) que determinou a problemática existente nestes países. As soluções para esta problemática requererão a reversão daquelas políticas fiscais regressivas, o que exige uma mudança nas relações de poder existentes na UE e nos seus estados membros, com maior poder e influência por parte das classes populares à custa do excessivo poder que hoje têm os grandes grupos financeiros e empresariais e os rendimentos superiores naqueles países. Isso deveria conduzir a mudanças na orientação económica e fiscal de muitos partidos de centro-esquerda e de esquerda (que tradicionalmente representaram as classes populares), que, ao fazer suas as políticas neoliberais, se transformaram durante estes anos em parte do problema, em lugar de parte da solução.

Vicenç Navarro, Set.16.2010
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[1] A maioria dos dados que aqui apresento procedem do livro Global Finance and Social Europe, colecção dirigida por John Grahl e publicada por Edward Elgar. 2009.
[2] Ver o meu artigo Luta de classes na UE, 17/06/2010.

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