quinta-feira, 9 de setembro de 2010

O holocausto cigano, ontem e hoje

Memorial at TreblinkaImage via Wikipedia

António Campos

Em 1496: auge do “pensamento humanista”. Os povos rom (ciganos) da Alemanha são declarados «traidores aos países cristãos, espiões a soldo dos turcos, portadores da peste, bruxos, bandidos e raptores de crianças».

1710: século das “luzes e da razão”. Um édito ordena que os ciganos adultos de Praga sejam enforcados sem julgamento. Os jovens e as mulheres são mutilados. Na Boémia, é-lhes cortada a orelha esquerda. Na Morávia, a orelha direita.

1899: clímax da “modernidade e do progresso”. A polícia da Baviera cria a Secção Especial de assuntos ciganos. Em 1929, a secção foi elevada à categoria de Central Nacional, e transladada para Munich. Em 1937, instala-se em Berlim. Quatro anos depois, meio milhão de ciganos morrem nos campos de concentração da Europa Central e do Leste.

2010: fim das “meta-explicações” e das “ideologias” (sic). Na Itália (onde nasceu a razão de Estado) e na França (sede mundial da tagarelice intelectual), os gabinetes em pleno de ambos os governos (com forte apoio popular, ou seja, “democráticos”) ficham e deportam milhares de ciganos para a Bulgária e a Roménia.

A tragédia dos rom começou nos Balcãs. Que drama europeu não começou nos Balcãs? Em meados do século XV, o príncipe Vlad Dracul (ou Demónio, um dos heróis nacionais na resistência contra os turcos) regressou de uma batalha livrada na Bulgária com 12 mil escravos ciganos. Por certo… não era cigano o misterioso cocheiro do conde Drácula?

O doutor Hans Globke, um dos redactores das leis de Nuremberg sobre a classificação da população alemã (1935), declarou: os ciganos são de sangue estrangeiro. Estrangeiros de onde? Sem poder negar que cientificamente eram de origem ariana, o professor Hans F. Guenther classificou-os numa categoria aparte:Rassengemische (mistura indeterminada).

Na sua tese de doutoramento, Eva Justin (assistente do doutor Robert Ritter, da secção de investigações raciais do Ministério da Saúde alemão), afirmava que o sangue cigano era «bastante perigoso para a pureza da raça alemã». E um tal doutor Portschy enviou um memorando a Hitler sugerindo-lhe que os submetesse a trabalhos forçados e a esterilização em massa, porque punham em perigo «o sangue puro do campesinato alemão».

Qualificados de “criminosos inveterados”, os ciganos começaram a ser detidos em massa, e a partir de 1938 foram internados em blocos especiais nos campos de Buchenwald, Mauthausen, Gusen, Dautmergen, Natzweiler e Flossenburg.

Num campo da sua propriedade de Ravensbruck, Heinrich Himmler, chefe da Gestapo (SS), criou um espaço para sacrificar as mulheres ciganas que eram submetidas a experiências médicas. Foram esterilizadas 120 meninas zíngaras. No hospital de Dusseldorf-Lierenfeld foram esterilizadas ciganas casadas com não ciganos.

Milhares de ciganos mais foram deportados da Bélgica, da Holanda e da França para o campo polaco de Auschwitz. Nas suas Memórias, Rudolf Hoess (comandante de Auschwitz) conta que entre os deportados ciganos havia velhos quase centenários, mulheres grávidas e grande número de crianças.

No gueto de Lodz (Polónia), as condições resultaram tão extremas, que nenhum dos 5 mil ciganos sobreviveu. Mais trinta mil morreram nos campos polacos de Belzec, Treblinka, Sobibor e Maidaneck.

Durante a invasão alemã à União Soviética (Ucrânia, Crimeia e os países bálticos) os nazis fuzilaram em Simvirpol (Ucrânia) 800 homens, mulheres e crianças na noite de Natal de 1941. Na Jugoslávia, eram de igual forma executados ciganos e judeus no bosque de Jajnice. Os camponeses recordam ainda os gritos das crianças ciganas levadas para os locais de execução.
Segundo consta nos arquivos dos Einsatzgruppen (patrulhas móveis de extermínio do exército alemão), terão sido assassinados 300 mil ciganos na URSS, e 28 mil na Jugoslávia. O historiador austríaco Raoul Hilberg estima que antes da guerra viviam na Alemanha 34 mil ciganos. Ignora-se o número de sobreviventes.

Nos campos de extermínio, só o amor dos ciganos pela música foi às vezes um consolo. Em Auschwitz, famintos e cheios de piolhos, juntavam-se para tocar, e alentavam as crianças a dançar. Mas também era legendária a coragem dos guerrilheiros ciganos que militavam na resistência polaca, na região de Nieswiez.

«Também eu tinha
uma grande família
foi assassinada pela Legião Negra
homens e mulheres foram esquartejados
entre eles também crianças pequenas»
[versos do hino rom, Gelem, gelem (Andei, andei)].

As exigências de assimilação, expulsão ou eliminação (não necessariamente por esta ordem) justificariam o apego dos povos rom pelos talismãs. Os ciganos portam três nomes: um para os documentos de identidade do país onde vivem; outro para a comunidade; e um terceiro que a mãe sussurra durante meses ao ouvido do recém-nascido.
Esse nome, secreto, servirá como talismã para o proteger contra todo o mal.

Set3.2010

de José Steinsleger
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