segunda-feira, 9 de novembro de 2009

...E voltar a nossa vista, o nosso olhar, a nossa compreensão das coisas para dentro

anthony loves children :-)Image by laihiu via Flickr


António Campos

“A autonomização tem muito que ver com a separação. Autonomia da criança, quer dizer, é a autonomia do seu funcionamento psíquico. Quando a criança deixa de ter necessidade de ter alguém que funcione mentalmente por ela e já é capaz de discernir por si própria, de ter opiniões suas, de resolver as coisas pela sua própria cabeça, aí há autonomia. Essa autonomia exige necessariamente uma certa distanciação das figuras parentais, das figuras do pai e da mãe (ou de quem fez esse papel), exige não só distanciação, como até separação, sobretudo na puberdade.”

Mas logo na entrada para a escola dá-se uma crise parecida com a crise da puberdade, o problema da separação põe-se logo desde essa altura, e portanto também a necessidade de funcionar autonomamente. A gente vê as crianças pequenas do jardim escola que ainda não têm autonomia, que têm necessidade de andar agarradas à saia da educadora, ou então de mãos dadas com outros meninos, e os jogos que fazem são muito de roda dançada, de dar as mãos e cantar uma coisa, ou fazer jogos numa roda envolvente, em que essa figura maternal que é a educadora está muito presente.

Ao passo que na escola primária as coisas já se passam de maneira diferente. Já há muito maior autonomia, a criança já é capaz de se distanciar da própria professora, embora este continue a desempenhar um papel bastante maternal, mesmo sendo homem. Quer dizer, a escola é sempre bastante maternal, tem alguma coisa de envolvimento maternal, ou digamos mais claramente, a escola tem alguma coisa de envolvimento, e portanto, é maternal.

A recusa do adulto em reconhecer que a tristeza da criança corresponde a recusa do adulto em reconhecer a própria tristeza infantil e até a sua tristeza actual. Quer dizer, ele também foi vítima disso, ele também teve tristezas que teve de esconder, que teve de disfarçar, que teve de resolver de uma certa maneira, porque os adultos, no seu tempo de criança, também já não lhe concediam o direito à sua tristeza, à sua depressão. Porque a depressão conduz a uma reflexão sobre a própria pessoa, sobre o próprio eu, leva-nos a olhar para dentro e a procurarmos ver o que é que se passa dentro de nós.

Enquanto que na paixão, por exemplo, a pessoa está toda voltada para fora e só vê o objecto amado, o objecto do amor. Quando se está apaixonado por uma pessoa, ou por uma ideia, seja lá o que for, a pessoa está voltada para fora. Na depressão, pelo contrário, a pessoa está toda voltada para dentro. E na cultura ocidental nós recusamos muito a depressão, ao contrário do que acontece com os orientais que a aproveitam muito para meditar, para pensar, para reflectir, para atingir o discernimento das coisas. A palavra discernimento significa compreender o sentido. Corresponde mais a descobrir do que propriamente a compreender no sentido racional. E a depressão dá um discernimento, uma compreensão, nesse sentido, de que aliás todos nós nos apercebemos se voltarmos um pouco atrás e virmos como foi a nossa vida. Vemos que os momentos de depressão nos conduziram a modificações importantes na vida.

Muitas vezes há essa reflexão, esse olhar para dentro de que a gente às vezes não se apercebe, de que não damos por isso, mas a verdade é que ele existe, porque a pessoa está voltada para dentro. Nessas alturas, quer seja na adolescência quer seja na idade adulta, está de facto a reflectir sobre todos os seus problemas, os mais íntimos, os mais pessoais e menos voltada para as coisas de fora e para os problemas dos outros. Esse discernimento corresponde mais a um fazer-se luz dentro de nós e portanto a compreendermo-nos melhor através de um fechar de olhos ao que está para fora e voltar o nosso olhar, a nossa compreensão das coisas para dentro.

Isso na infância é fundamental para que a pessoa cresça. A pessoa cresce de facto, desenvolve-se, aperfeiçoa-se à custa desses movimentos de voltar para fora e de voltar para dentro o seu olhar. De uma certa maneira são, movimentos de paixão e movimentos de tristeza. Aliás, muitas vezes a paixão dá lugar a decepções, e isso pode acontecer muito cedo, por exemplo na paixão pelos pais idealizados, numa certa fase da vida, muito infantil. Ainda mesmo antes de entrar para a escola já há ideias nesse sentido de uma idealização muito grande dos pais, que muitas vezes dá lugar a uma decepção, porque os pais afinal não são assim tão amáveis como a criança pensou. A mãe, por exemplo, é-lhe dedicada, mas há momentos em que foge para ir com o pai ao cinema, ou outra coisa qualquer. E nessas alturas a criança sente-se por assim dizer traída, decepcionada.

O mesmo pode acontecer em relação ao pai para quem a criança está muito voltada. Seja do mesmo sexo ou de outro sexo, as coisas não são tão geométricas como às vezes parecem nesta relação de filhos para pais, da menina gostar mais do pai e do menino gostar mais da mãe. De facto há uma certa tendência para que isso seja assim, mas não quer dizer que isso seja em absoluto. O que se sabe é que cada pessoa tem inicialmente só uma mãe, quer seja do sexo masculino ou do feminino, que é o seu primeiro objecto do amor, o primeiro envolvimento que se recebe é de uma mãe, de uma criatura que tem características maternais, que exerce funções maternais, e que em regra é do sexo feminino, mas pode não ser, e que há uma outra pessoa que desempenha funções paternais e que aparece um pouco mais tarde. Funções parentais, quer dizer, funções separadoras desse indivíduo inicial.

E portanto há já uma decepção na altura em que a criança reconhece que aquela figura não é tão amável, não é tão simpática, não é tão tolerante como parecia ao princípio. Este mecanismo de decepção tem a ver com a morte da mãe ou da morte do pai. E a criança pode ter esses pensamentos, porque traz muitas vezes a ideia da situação edipiana. Mas é possível que em nós adultos, ou nas crianças mais crescidas, exista uma ideia de morte, uma raiz, que vem do tempo em que a gente quis ter a mama da mãe para nos matar a fome ou a sede, e ela não está lá, e daí esse ódio terrível por aquela coisa que devia estar lá e não está. E esse ódio, é essa agressividade tão violenta que podia ter sido mais tarde integrada como desejo de morte.

É este o caminho da autonomização da criança… da nossa autonomização, se esses desejos de morte forem atempadamente resolvidos, com as mais diversas formas de amor.

João dos Santos (adaptado)


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