sexta-feira, 18 de junho de 2010

Migração, saúde e cultura 1)

Map of early human migrations Göran Burenhult:...Image via Wikipedia


António Campos


Os fenómenos migratórios, perspectivados a partir da problemática da saúde dos migrantes, comportam uma dupla confrontação que importa analisar. Por um lado, os protagonistas da e/imigração são confrontados com fronteiras da identidade e da memória que, por vezes, os conduzem a situações de mal-estar e sofrimento. Por outro lado, em função da diversidade cultural que transportam para os serviços de saúde, são eles próprios agentes desafiadores dos saberes médicos instituídos. Essa dupla confrontação constitui um primeiro momento de embate que, por si só, carrega um enorme potencial criativo, tanto para os imigrantes como para os técnicos de saúde.

A experiência de deslocação identitária ou ruptura biográfica, ou as experiências de fora do lugar vividas pelos imigrantes, podem conduzir a um trabalho de reconfiguração das identidades, das pertenças e de reinvenção de si que congrega aquilo que se foi, aquilo que se é e o que se poderá vir a ser, sem necessariamente negar as heranças culturais, linguísticas e simbólicas de cada um. Esta criatividade pode ser revelada por meio de um esforço individual, grupal e colectivo de emancipação dos imigrantes. Trata-se de uma criatividade que passa, embora não exclusivamente, pela criação de lugares de encontro nos quais a especificidade da experiência migratória de cada pessoa possa ser exprimida e acolhida(…).

A criatividade também pode surgir deste mesmo encontro, desta relação, que aponta para novas formas de entendimento do mal-estar, da condição migrante, da doença e da cura. Para que tal criatividade ocorra é necessária a inauguração de um diálogo verdadeiramente intercultural entre imigrantes e técnicos de saúde, assim como a formação especializada destes últimos e a sensibilização das políticas de saúde para estas questões. Mas que espaços existem para o encontro entre os imigrantes e aqueles que se propõem escutá-Ios? Que capacidade de escuta existe para as diferenças de cada um? De que modo testemunham os imigrantes as suas experiências de aflição? Como agem os técnicos de saúde perante a diversidade cultural? (…)
Alguns críticos da psiquiatria cultural apontam para uma certa ingenuidade científica da prática psiquiátrica que, perante a diversidade humana, não hesita, ainda assim, em reproduzir um modus operandi convencional. Ora, ao olhar dos cientistas sociais, a diversidade cultural, além de realidade constitutiva da pessoa humana, é também um objecto privilegiado de atenção e de aprendizagem constantes.

As experiências de imigração, vividas por pessoas em carne e osso, tal como os casos dos utentes da «Consulta do Migrante» tão bem o demonstraram, põem a nu a exigência criativa das práticas e dos saberes produzidos pela relação entre técnicos de saúde mental e imigrantes. Com efeito, junto de populações migrantes, não se trata de aplicar um saber que se impõe de modo hegemónico, mas, pelo contrário, de encarar o encontro terapêutico como uma relação ela própria desafiadora dos saberes instituídos (mesmo os médicos!) e constitutiva de novas soluções terapêuticas (…).

Em Portugal, tal como na maior parte dos países europeus e da América do Norte, os fenómenos migratórios têm vindo a adquirir uma importância crescente. Aí vivem e trabalham imigrantes oriundos de todos os continentes. Nos bairros, nos transportes públicos, no trabalho, nas igrejas e nas escolas, encontram-se lado a lado migrantes das ex-colónias portuguesas (África e Brasil), mas também da Europa de Leste, da China, da Índia, da América Latina. Esta mobilidade internacional põe em contacto uma enorme diversidade cultural e identitária que desafia, quer as políticas comunitárias, quer as relações sociais e o posicionamento de cada pessoa em relação aos outros e a si própria. Ela desafia as próprias concepções de identidade, cultura, alteridade e relação. Os protagonistas desta crioulização global (Glissant 1996; Bibeau 1997) são os imigrantes, que experimentam em aflição a complexidade das relações históricas, políticas, económicas e simbólicas implícitas nas suas trajectórias biográficas individuais(...).

continuação

Elsa Lechner, in Migração, Saúde e Diversidade Cultural, 2009 (adaptado)

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