segunda-feira, 7 de junho de 2010

Velhice e relações familiares

old peopleImage by davelocity via Flickr

António Campos


Um dos aspectos fundamentais da família conjugal contemporânea, que gradualmente se foi transformando numa instância privilegiada da intimidade e do privado, é o facto de ela ser essencialmente relacional, ou seja, de ter aumentado a importância que os seus membros atribuem à afectividade. Ao mesmo tempo, estes passaram a gozar também de uma maior independência face a esta família e aos círculos mais amplos do parentesco tendo, entretanto, adquirido maior dependência face ao Estado.


A desvalorização dos laços de dependência entre os elementos, não só no interior do grupo doméstico, como entre os vários círculos familiares, cria uma certa distância entre eles, facto que permite negociar a manutenção das boas relações e a criação de espaços comuns onde se identificam os membros de uma mesma família. São as relações entre homens e mulheres, pais e filhos, avós e netos, tios e sobrinhos que dão vida e sentido à essência da família.


Segundo Philippe Ariés, que estudou a criança e a família durante o Antigo Regime, a passagem da família antiga à família moderna opera-se, fundamentalmente, através de uma mudança interna de relação com a criança. É uma mudança gradual que é marcada pela importância que adquire a educação, de início praticada particularmente - aprendia-se em casa de outra família as boas maneiras, ou uma profissão, ou a ler, escrever e contar - e posteriormente através da escola.


A evolução da família moderna contemporânea assenta numa ideia da família centrada sobre as pessoas e não sobre as coisas e completa-se num papel decisivo desempenhado pela escola.


Contudo, tanto a família tradicional do Antigo Regime como a família moderna contemporânea prosseguem objectivos comuns: contribuir para a reprodução biológica e social procurando, de uma geração a outra, melhorar ou apenas manter a posição que ocupa no espaço social. As divergências entre os dois tipos de família não são quanto à sua essência, mas quanto aos meios que utilizam. A função de reprodução social desempenhada pela família persiste, mas é, de certa forma, ocultada por transformações ocorridas nos modos de transmissão. A mudança fundamental é a importância atribuída à escola e ao capital escolar adquirido através dela, na determinação da posição social. A família vê-se obrigada a mudar de estratégia, neste caso a recorrer à estratégia educativa(…).


Segundo Remi Lenoir, vários factores concorreram para modificar a posição da família no "sistema das instâncias que concorrem para a reprodução da estrutura social". Entre eles o alargamento do espaço económico e o consequente desenvolvimento de mecanismos objectivos e institucionalizados que produzem e garantem a distribuição de títulos escolares ou profissionais e mesmo nobiliárquicos, monetários ou financeiros, assim como as condições de formação e de gestão da mão-de-obra e da produção e circulação de bens económicos. O declínio numérico e social das empresas familiares indica o desaparecimento de uma concepção inseparavelmente económica e moral da família. Esta representação social da família tende, se não a desaparecer, pelo menos a dar lugar a novas representações e a novos usos da família que correspondem à transformação da empresa doméstica e da empresa industrial e comercial levada a cabo pelas modificações do campo económico.


Este processo de transformações, que consiste no desmoronamento das bases sociais em que assenta o familismo tradicional, é designado, pelo autor, por desfamilização.


Um dos factores que está na origem do fenómeno é o acesso quase generalizado das mulheres às instituições e aos instrumentos que concorrem para a reprodução da estrutura social, especialmente o sistema escolar e o trabalho assalariado fora da agricultura. A divisão do trabalho dentro do grupo doméstico reparte-se pelo trabalho doméstico propriamente dito e pelas tarefas quotidianas decorrentes das funções maternais. Estas, pelas características intrínsecas de envolvimento presencial, são as que mais profundamente são afectadas pela continuidade e racionalidade que caracterizam a actividade profissional.


Segundo Lenoir, o que está em jogo, nestas circunstâncias, são as condições, quer da reprodução biológica, uma vez que a fecundidade pode variar consoante o exercício de uma actividade profissional pela mulher, quer da reprodução social, uma vez que se transformou a ordem familiar delegando a instituições especializadas as tarefas de socialização e educação das crianças.


Assim, a quase generalização do trabalho das mulheres inscreve-se na transformação mais geral do regime demográfico caracterizado pela elevação da idade de casamento e do nascimento do primeiro filho, pela redução do número de filhos e consecutivamente pelo abaixamento da idade de vinda do último filho e do período dedicado à maternidade.


De modo geral, ainda segundo Remi Lenoir, a formação do património das famílias depende cada vez menos directamente da herança. Estas transformações na constituição do património das famílias envolvem outros elementos até aqui inexistentes como sejam a participação em formas de poupança colectivas, indolores e em alguns casos obrigatórias, tais como os descontos para a reforma ou assistência na doença e que substituem modos individuais de poupança e protecção. O recurso ao crédito, facilitado por novas formas institucionalizadas de remuneração dos lucros, ligado ao desenvolvimento do salariado, permite acumular património com menos esforço.


O processo de desfamilização das relações familiares é acompanhado de todo um trabalho colectivo de gestão material e simbólica da família que enforma numa codificação das práticas de puericultura, medico-pedagógicas e das condições de trabalho das mulheres e das crianças, Mas, sobretudo a criação dos seguros sociais que tendem, por um lado, a fazer sair da esfera familiar privada o encargo económico dos pais idosos que se tornam então pessoas idosas sustentadas por sistemas de reforma obrigatória e, por outro, visam compensar os custos que representam a educação das crianças, o crescimento considerável da protecção maternal e infantil e a extensão e a profissionalização dos serviços sociais, ou ainda a evolução e o desenvolvimento do direito da família.


As disposições do direito da família, que são comandadas pela gestão e transmissão do património, determinam os sentimentos respectivos dos pais e dos filhos, fazendo passar estas relações do domínio privado para o público, dando-lhes legitimidade, constituem uma parte da realidade das trocas familiares.


Os efeitos da gestão colectiva da família são pouco visíveis, especialmente se se trata de organismos burocráticos ou burocratizados equipados com agentes especializados que funcionam com regras estandardizadas. Podem, contudo, ser observados através das normas que constituem o direito social da família e que fazem sair do âmbito familiar o que pertencia directamente às relações de parentesco fazendo com que passem para organismos que, como as caixas de previdência e reforma, gerem as relações entre as gerações(…).


In, Velhice e Sociedade, Ana Alexandra Fernandes, 1997 (adaptado)




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