sexta-feira, 26 de março de 2010

A insinuação do real

Real challenge is in the Real world.Image by ~FreeBirD®~ via Flickr


António Campos

Em inícios do século XVII alguns pintores começaram a pintar tabernas. Foi o caso de Miguel Angel de Caravaggio e de Velázquez. Que insolência, que atrevimento, que maneira subversiva de pintar! Começava o ciclo fervoroso de debates sobre a chamada «pintura de género», que designava - por oposição à «pintura histórica», isto é, «importante» - todos os géneros considerados inferiores que tinham por tema as cenas banais da vida quotidiana. Os temas religiosos passaram paulatinamente a ser banidos das telas para darem lugar a incómodos plebeus, como os que frequentavam as tabernas. Não admira que Caravaggio fosse, desde logo, considerado um «Anticristo». As inovações de estilo afrontaram também os pactuados padrões estéticos de beleza. Até então, as cores eram utilizadas para acentuar os volumes corporais. A «iluminação» (o jogo dos claros com os escuros) era convencional, do mesmo modo que os desenhos: puras formas. Caravaggio decidiu transpor para as suas telas a iluminação real: luz de cores, em que um raio iluminava violentamente uma porção de figura, ficando parte dela em negras trevas. Era, pois, uma luz estupefaciente, patética, dramática, mas, acima de tudo, uma luz real.

Foi também com esta luz que, nos seus tempos de juventude, Velázquez começou a pintar tabernas, retratando-as a partir da realidade. O arrojo custou-lhe difamações, descréditos, maledicências. Velázquez passou a ser acusado de «retratista», tomado que era o retrato como uma parapintura de valor estético duvidoso, uma manifestação secundária e residual, em oposição à arte, à verdadeira arte. Até então, as formas «artísticas» sobrepunham-se às formas «naturais» dos objectos, desrealizando-os. As formas «naturais» eram apenas suporte para a realização das formas artísticas através da desrealização do real. O domínio do formal tiranizava e violentava o objecto. Velázquez contribuiu para a recuperação do objecto ante as suas formas. De que modo? Acercando-se - mais do que qualquer outro pintor da época - da realidade(…).

Esta ânsia de acercamento da realidade, de converter o quotidiano em permanente surpresa, insinuando-o através de um naturalismo rebelde - nem sempre bem compreendido e bastas vezes tomado como insolente, atrevido ou subversivo -, é um dos desígnios da sociologia da vida quotidiana. Não é de estranhar que, como Caravaggio e Velázquez, também Simmel tenha sido apodado de «retratista» e ainda hoje continue a ser considerado um «fotógrafo amador» da realidade social,um «hábil em instantâneos» (snapshots) - apodo a que Simmel parece não ter renunciado, pois, justamente, reivindicava esse modo de olhar a realidade.

Para Simmel - esse pintor do social para quem a sociologia era, de resto, uma forma de arte -, o que é típico encontra-se enfatizado no particular; o normal, no acidental; o essencial ou significante, no que parece superficial ou fugaz. As observações fugazes da realidade, que constituem a essência da sociologia simmeliana, transparecem de modo ilustrativo em Snapshots sub specie aeternitatis, título com que Simmel encabeçava as suas contribuições no Jugendstil, periódico alemão que acolhia os seus «instantâneos» sociológicos. Snapshot significa, literalmente, a imagem momentânea de uma cena ou fragmento da realidade. Neste deslizar do olhar pelo social - nos seus aspectos mais particulares, acidentais e superficiais -, o fotografar é um processo de capturar o fugaz que o olhar vagabundo do fotógrafo (ou do sociólogo) possibilita. Assim se entende que Simmel procure preservar nas suas observações da realidade aquilo que nela é único e transitório,ao mesmo tempo que dela extrai o essencial da forma, a tipicidade(…).

Com efeito, Simmel oferece-nos retratos da realidade mas abstraindo-se voluntariamente da totalidade da mesma, de modo que os fragmentos focados pudessem ser mais bem iluminados: como acontecia com Caravaggio, que, ao transpor para as suas telas a iluminação do real, contrapunha a luz das cores às trevas do obscurecido, num movimento oscilante de descobrimento e encobrimento, de revelação e de ocultação(…).Enfim, porque sempre é parcial, não é verdade que o conhecimento arrasta sempre, como a sua sombra, o desconhecido?

A partir desta ambivalência do social, talvez possamos então compreender por que razão a sociologia de Simmel é uma «sociologia do talvez» - tantas são as vezes em que nos seus escritos aparecem expressões equivalentes a «de certo modo», «talvez», «por um lado pode ser>, «mas também pode ser>... É como se Simmel nos dissesse «talvez o céu seja azul» para logo a seguir nos dizer «talvez não seja»... dando-nos maiores possibilidades de imaginar o céu(…). Nesta forma de aproximação ao social, a realidade apenas se insinua, não se entrega. Mas é assim mesmo que, na perspectiva da sociologia do quotidiano, ela tem de ser imaginada, descoberta, construída.

Neste sentido, a sociologia do quotidiano é uma sociologia de protesto contra todas aquelas formas de reificação do social, animadas por uma avassaladora ânsia de possessão. Para a sociologia do quotidiano, o importante é fazer insinuar o social, através de alusões sugestivas ou de insinuações indiciosas, em vez de fabricar a ilusão da sua posse. A posse do real é uma verdadeira impossibilidade e a consciência epistemológica desta impossibilidade é uma condição necessária para entendermos alguma coisa do que se passa no quotidiano.


In, Sociologia da vida Quotidiana, José Machado Pais (adaptado)


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