segunda-feira, 15 de março de 2010

A Burca como Cultura da Resistência

Burqa a MetàImage by FotoRita [Allstar maniac] via Flickr


António Campos

Volto a estudar Schopenhauer, que considero ser o filósofo certo para o nosso tempo indigente e decadente: o seu pessimismo é a denúncia da corrupção e da crueldade. Como diz Schopenhauer, o optimismo é uma opinião ímpia, uma zombaria odiosa, em face das inexprimíveis dores da humanidade. Horkheimer tem razão quando destaca a actualidade do pensamento de Schopenhauer. Devemos confrontar os optimistas com a sua malvadez e o seu egoísmo extremo. Dado não pretender apresentar uma leitura integral do pensamento de Schopenhauer, limito-me a reproduzir aqui comentários dispersos que fiz na caixa de comentários do post anterior.

A Filosofia é deveras complicada, sobretudo a dialéctica. O pensamento tardio de Horkheimer não é tão reaccionário como disse Bloch: a filosofia de Schopenhauer merece ser pensada em relação ao marxismo, porque o seu pessimismo não é incompatível com a teoria de Marx. Este último sabia que a história se desenvolve pelo seu lado mau e chamou pecado teológico ao processo de acumulação do capital. A solidariedade marxista de classe converte-se, neste mundo cada vez mais global, em solidariedade com os que sofrem nas mãos dos malvados. A linguagem de Marx é muito teológica. Os marxistas interpretaram o pessimismo como uma espécie de rendição à maldade existente, mas Schopenhauer descobriu que o fatalismo era a única consolação impingida pelos malvados às suas vítimas.

Ora, Marx denunciou o economicismo fatalista, a actual ideologia neoliberal dos gestores e dos administradores. Mas há outra semelhança estrutural entre Marx e Schopenhauer: cada um de nós é, ao mesmo tempo, carrasco e vítima, no sentido de termos interiorizado o opressor e a sua dominação. Bloch chamou reaccionário a Horkheimer, porque ele acreditava na possibilidade de mudar o rumo da história, cuja lógica imanente conduz - segundo Horkheimer - ao mundo totalmente administrado. O problema reside talvez no facto de Horkheimer ter levado a sério a doutrina do mundo como representação, no seio do qual somos escravos, mas a doutrina do mundo como vontade infinita abre-se à liberdade. Este período da filosofia é muito fértil e complexo: as dores do mundo denunciam o carácter ideológico do optimismo. Do ponto de vista teológico, há uma grande proximidade entre Horkheimer e Schopenhauer, mas falta reavaliar a antropologia negativa que, se for vista nos moldes da teologia negativa - a concepção de Deus que não pode ser representado e que é solicitado para salvar um sentido absoluto e suscitar a esperança de que existe um Absoluto -, então o carrasco ameaça confiscar-nos a palavra e triunfar. A teoria da reificação como esquecimento implica uma visão da linguagem e o despertar da memória, mas deve ser pensada em ligação com o fetichismo da mercadoria de Marx. Este capítulo d'O Capital é a obra fundamental da filosofia contemporânea.

Somos convidados a revisitar a teoria da maldade radical que Schopenhauer descobre no pecado original. A Filosofia dispensa a ciência que nada tem a dizer sobre aquilo que nos preocupa: a ciência é conhecimento de domínio e, como tal, é mais um instrumento da inteligência. Ora, também aqui Schopenhauer subordinou o intelecto à vontade, o que lhe mereceu o elogio de Freud. Não estou a propor a moral da piedade ou da compaixão como solução final, embora aceite a noção de solidariedade universal no sofrimento, aliás uma ideia grata a Sampaio Bruno. A abertura ao teológico não implica o regresso da religião, porque, na esfera filosófica, não há culto: a filosofia recusa a idolatria. Porém, a libertação pela via ascética vislumbrada por Schopenhauer é extremamente sedutora, porque implica resistência: o despojamento é a negação do capitalismo. Suprimir a vontade de viver é negar o capitalismo e o reino do mal existente.

O suicídio pode ser visto como a liberdade levada à sua plena consumação. Aqui distancio-me de Schopenhauer: o suicídio não é levado a cabo porque se deseja a vida; o suicídio pode significar a esperança numa outra vida liberta da maldade humana. Neste caso, o homem - apesar de desamparado - pode fintar a vontade infinita, dizendo não à vida em todas as suas determinações.
Na minha economia cognitiva, estou pronto a colocar a filosofia em confronto com a ciência, que, na realidade, não é sabedoria. A noção positivista - isto é, filosófica, - de que a filosofia tende a ser ciência é falsa. Hoje em dia, a filosofia não quer produzir uma teoria do conhecimento para a ciência. A sua tarefa é outra: mostrar que a ciência é mera ideologia instrumental. A ciência só foi ciência enquanto teve a guarda da filosofia. Hoje a filosofia nega a paternidade: a ciência é, neste momento, uma bastarda. Já nem merece ser tratada como uma forma de conhecimento: é pura técnica. O cientista de hoje é um funcionário, um escravo do sistema que lhe nega a dignidade. E os cientistas que dizem ser descendentes de macacos são isso mesmo: macacos que se arrependeram de ser homens.

Isto traz à minha memória a teoria de Calvino que, lida à luz da Cabala, pode ser integrada na nova síntese filosófica: há animais que são humanos e há outros que parecem ser humanos mas não são humanos. Uma vez que a reconciliação está para além dos poderes humanos, podemos no entanto tentar domesticar a maldade. O pensamento aqui aflorado é perigoso, mas deve ser pensado, até porque não temos nada a perder. Já não podemos perder nada... O objectivo é restituir a humanidade aos homens que a perderam - os animais metabolicamente reduzidos que mantêm o sistema em funcionamento. O despojamento é a libertação do calvário do consumo. O sistema não funciona se os homens humanos recusarem a vontade de viver que os liga ao sofrimento do mundo. Com este pessimismo radical mas expectante, podemos salvaguardar a teoria de Marx, generalizando-a a todos os que sofrem, incluindo os outros seres vivos: o marxismo como humanismo global.
A solidariedade no sofrimento universal exige despojamento: devemos começar a tapar o rosto com um véu para não sermos identificados pelos opressores. O rosto identifica-nos e o sistema usa-o para nos controlar. Homens e mulheres devem tapar o rosto, de modo a mostrar a sua solidariedade no sofrimento e a evitar a sua identificação como peças submissas do sistema: a generalização da burca ou do véu a tapar o rosto significa resistência contra o sistema que nos nega a dignidade, sem mostrar o rosto ao carrasco.

J Francisco Saraiva de Sousa



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