sexta-feira, 19 de março de 2010

A reforma como componente social da velhice

vintage shot of old peopleImage by freeparking via Flickr


António Campos

O surgimento dos sistemas de reforma ocasionou uma situação relativamente nova: a condição de reformado. Anne-Marie Guillemard atribui à reforma uma dupla significação. Por um lado, representa o afastamento do circuito de produção em que o indivíduo estava envolvido. Por outro lado, tal afastamento oferece a contra partida do direito a um repouso remunerado, ou peja, ao mesmo tempo "que a reforma assegurava certa garantia contra a miséria ela institucionalizava a perda de capacidade dos velhos trabalhadores e a sua desvalorização".

Estudar os processos de constituição dos sistemas de reforma consiste assim em analisar as implicações da gestão, por instâncias criadas para o efeito, da passagem da situação activa de trabalho à situação de não trabalho. Ainda segundo a mesma autora, passagem à reforma, corresponde ao momento mais importante da reestruturação dos papéis sociais. A vida roda em tomo de dois mundos, o familiar e o de trabalho, nos quais se desenrolam os principais desempenhos. Ao deixar o primeiro, só o segundo pode assegurar o equilíbrio social e pessoal. O afastamento da actividade laboral representa uma perda relativamente a um desempenho profissional e às relações daí decorrentes. Os papéis sociais dentro da vida familiar adquirem, por isso, outra importância num contexto de reforma.

A situação de reforma promove ou uma acentuação das relações familiares ou o isolamento. Esta perspectiva é considerada positiva face ao papel desempenhado pela família e opõe-se à tese desenvolvida por Parsons segundo a qual a transformação do papel do idoso na sociedade industrial afecta a posição deste dentro da família. Com efeito, a industrialização desintegrou a família patriarcal fundada num sistema vertical. A família ficou reduzida à unidade conjugal cuja constituição implicou ruptura com a família de origem. A reforma é a componente eminentemente social da unidade aparente que constitui a noção de pessoa idosa. Do outro lado o envelhecimento, ou velhice, que constitui o elemento biológico.

Operacionalizada a velhice desta forma é possível analisar o problema a partir da sua componente social, a reforma, que Anne-Marie Guillemard define a partir da oposição trabalho/não trabalho. O trabalho está no centro da definição da posição do actor na estrutura social. O não trabalho representa a exclusão do circuito de actividade e o actor social reformado afirma-se pela sua capacidade de trabalho realizado, isto é, pelo tipo e importância dos recursos acumulados que constituirão as condições sociais determinantes das diferentes condutas(…).

A partir desta investigação, a autora chegou à classificação de cinco tipos de práticas sociais sobre a velhice, em que cada uma representa um conjunto particular de orientações sociais. São elas a reforma-reforma, a reforma terceira idade, a reforma lazer, a reforma reivindicação e a reforma participação. A primeira é caracterizada por orientações essencialmente naturais ao contrário das duas seguintes com cariz mais social. As duas últimas, reforma reivindicação e reforma participação, referem-se à definição social da velhice, a forma como está socialmente instituída e a forma como é assumida, rejeitada ou aceite.

Em investigação realizada posteriormente, Anne-Marie Guillemard e Remi Lenoir analisam ainda as formas de sociabilidade que se estabelecem em situação de reforma. Esta investigação é sequência da anterior; acima referida, sobre as práticas sociais em situação de reforma, mas, neste caso, ao contrário do anterior, em que se procuravam identificar as condutas face aos processos que constituem e transformam a sociedade, consideram-se as condutas como respostas a situações dadas, socialmente definidas e que são as situações de velho e reformado. Em ambos os casos as práticas sociais e a sociabilidade foram explicadas pelo nível e a natureza dos recursos acumulados durante a vida de trabalho.

Para os mesmos autores, o pressuposto é de que a vida de trabalho e a vida familiar são igualmente geradoras de relações sociais. O trabalho não é somente uma actividade produtora de bens e serviços, ele proporciona o estabelecimento de trocas sociais que podem ir até a uma certa solidariedade. Corresponde a uma situação social que é simultaneamente um lugar de encontro, um tempo passado em conjunto e uma actividade comum. A vida familiar engendra também relações sociais porque envolve um mesmo espaço, uma parte da vida passada em conjunto e uma grande variedade de actividades vividas e partilhadas com os outros membros da família. Porém, as relações familiares parecem ser mais fortes e persistentes, uma vez que resistem melhor ao tempo e às provações, para além de envolverem alguma obrigatoriedade.

No centro dos factores que engendram a sociabilidade está a posse de capital e portanto as formas de ter e as aptidões que promovem, ainda que apenas as formas de capital sejam insuficientes para explicar o conteúdo e a coesão do sistema de trocas. Daí que o essencial não é tão-só a posição que o reformado ocupou no mercado de trabalho - factor determinante das práticas sociais -, mas o lugar que ocupa nos diferentes sistemas de agentes, estando em situação privilegiada o sistema familiar. Esta relação com a família é dependente ou dominante consoante as posições relativas que ocupam pais e filhos no sistema familiar. A velhice, para estes autores, representa "a etapa da vida na qual o volume e o conteúdo das trocas são directamente função do tipo de laços levados a cabo coma família e em particular com os filhos"(…).

Pode-se então afirmar que se é sociologicamente velho "quando se tem a sua sociabilidade inteiramente dominada pelo jogo das relações sociais que unem entre si os membros da sua família". Se a velhice pode ser definida sociologicamente como a idade de maior vulnerabilidade às relações sociais estabelecidas com a faml1ia, ela pode também ser considerada como o momento em que se acentua o jogo cumulativo dos determinismos sociais e onde se cruzam as desigualdades iniciais.

In Velhice e Sociedade, de Ana Alexandra Fernandes (adaptado)

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