sexta-feira, 5 de março de 2010

Alteração das pensões e a desigualdade perante a morte

A Study of Death..Image by Compound Eye - In Business First Magazine via Flickr


António Campos

Será só em Espanha?

Quosque tandem abutere,
Catilina, patientia nostra? [1]

A deliberação do passado Conselho de Ministros de Espanha de propor a elevação da idade de reforma de 65 para 67 anos, a ampliação do período de tempo para o cálculo das pensões – com o objectivo evidente de reduzir a sua quantia – e o anúncio para o próximo dia 5 de Fevereiro dos conteúdos de uma nova reforma laboral – que indubitavelmente implicará novos cortes nos direitos laborais –, são as gotas que devem encher o copo da paciência dos trabalhadores e trabalhadoras.

Com cinco milhões de desempregados, 1.200.000 famílias com todos os seus membros desempregados, ao mesmo tempo que se volatiliza o emprego precário criado no tempo de fabulosos lucros empresariais, quando reforma após reforma se agravam os requisitos para aceder ao subsídio de desemprego ou de jubilação; agora que se transferiram centenas de milhares de milhões de euros para a banca e a indústria automobilística, que se reduzem sem parar os impostos às grandes fortunas e aos lucros empresariais, as cotizações do patronato para a segurança social; agora que se mantém a fraude fiscal ( do capital, claro) calculada em, pelo menos 130.000 milhões de euros, precisamente agora, aproveitando a paralisia catatónica que momentaneamente é a expressão generalizada do pânico da classe operária, o Governo do PSOE pretende descarregar sobre ela a totalidade do custo da crise.

Mas o mais grave não são os recursos que nos arrancam, precisamente na última etapa da nossa vida, quando o nosso corpo e a nossa mente envelheceram e se desgastaram produzindo a riqueza que nos foram expropriando e que engrossa os seus ofensivos lucros.

O cúmulo da alienação e da manipulação expressa-se quando o Governo e os seus «peritos»fazem o diagnóstico, e a partir dele o seu tratamento, no aumento da esperança de vida e, dizem eles, o correspondente aumento do tempo que medeia entre a reforma e a morte do trabalhador. O que deveria constituir, se fosse assim, um indiscutível avanço do desenvolvimento humano é um obstáculo a besta do capital continue a engordar, isto é para que funcione a prioridade absoluta que rege a sociedade e à qual se sujeita qualquer consideração que afecte as pessoas que a integram.

Mesmo que não houvesse milhares de outros exemplos, só este bastaria para definir o modelo social capitalista do século XXI como o predador mais feroz de seres humanos, precisamente quando o desenvolvimento científico e tecnológico permitiriam satisfazer as necessidades básicas de toda a humanidade.

A primeira consideração que há que fazer é que estão a manipular os dados como objectivo de confundir. A esperança de vida, como sabe qualquer aluno do primeiro ano de um curso de estatística, não mede a idade média da morte, como parece indicar o seu nome. A esperança de vida é um indicador complexo elaborado a partir de taxas de mortalidade em cada idade e que é decisivamente influenciado pela mortalidade infantil (primeiro ano de vida) e, ainda mais, pela perinatal (primeira semana de vida); isto é, o aumento da esperança de vida reflecte fundamentalmente diminuições nas taxas de mortalidade nas primeiras etapas da vida e não que se viva muito mais tempo. Utilizar este argumento é um truque indecente.

A segunda ideia essencial é ainda mais cruel, e por isso mais zelosamente escondida: as enormes e crescentes desigualdades sociais perante a morte.

Apesar dos poucos estudos não serem recentes – não é por acaso –, desde que existem estatísticas que comparam a mortalidade por classes sociais os dados reflectem o mesmo em todos os países capitalistas: as desigualdades reflectem-se directamente em diferenças de mortalidade que além do mais se expressam de forma gradual (o decréscimo em cada nível da escala social reflecte-se no correspondente aumento da mortalidade), que estão há décadas a aumentar e que exacerbam nos períodos de crise económica.

O relatório SESPAS 2000 [2] conclui rotundamente: «A mortalidade é superior entre os trabalhadores manuais em comparação com os restantes profissionais e quadros dirigentes. (…) A Razão da Mortalidade Estandardizada entre ambas as classes sociais [indicador que permite compará-las] aumentou de 1,27 em 1980-82 para 1,72 em 1988-90 e em quase todas as doenças as desigualdades se incrementaram. (…) Por outro lado, regista-se uma associação em forma de gradiente entre a privação material (desemprego, analfabetismo, classe social e condições de habitabilidade) e a mortalidade». [3]

Outro relatório elaborado sobre a mortalidade na cidade de Sevilha [4], comparando bairros diferentes (Zonas Básicas de Saúde), apesar de ser um estudo indirecto (por os territórios comparados não serem homogéneos), danos dados como estes: a mortalidade prematura multiplica-se por quatro nos homens nas zonas mais desfavorecidas, comparando-as com as zonas mais favorecidas; nas mulheres, multiplica-se por 2,6.

Isto é, a classe operária não é só a que produz a totalidade da riqueza que é usurpada por alguns, não vê apenas reduzir a capacidade aquisitiva do seu salário e deteriorarem-se as condições de vida em função da mais-valia expropriada, não só é expulsa para o desemprego como um traste imprestável quando o patronato calcula que os lucros não são suficientes. Além disso, os trabalhadores e trabalhadoras – com o seu corpo e a sua mente convertidos em autênticos campos de batalha da luta de classes – ainda pagam com a doença, e sobretudo, com a morte prematura, o seu dramático tributo ao desenvolvimento do capitalismo.

Mas tudo tem um limite e a impostura deste Governo e a de todos os que o precederam também o terá. A verdade nua e crua é que eles não são capazes de esgrimir um só argumento credível, nem sequer para os mais ingénuos, de que estas novas machadadas nos direitos laborais e sociais podem conseguir criar emprego, a começar pela insensata decisão de aumentar a idade da reforma.

O que é evidente é que depois de três décadas de genuflexões sindicais e de um baixar a cabeça «a ver se não me toca a mim», o que conseguimos foi retroceder até à lei da selva no que respeita a direitos, enquanto o capital enche os bolsos como nunca. Agora, perante uma crise descomunal, o que está claro é que, nem o Governo nem a restante classe política nem os capitalistas a quem eles representam têm qualquer alternativa que não seja o apertar da tarracha para reduzir os custos laborais, e que preferem que a locomotiva capitalista descarrile, em vez de mudar de via e de condutor.

Um novo sindicalismo deve surgir e é preciso recorrer o mais urgente possível ao encontro entre as organizações e as pessoas que fazem a democracia operária, a dignidade e a luta da sua razão de existir, para canalizar a luta operária e popular. Está na hora de decidir, e o suicídio, que aumenta dramaticamente entre os que individualmente não vêem outra saída para desespero do desemprego e da angústia, não é alternativa.

Ángeles Maestro

Notas:
[1] «Até quando Catalina abusarás da nossa paciência?» Imprecação lançada por Marco Tulio Cicero contra Catilina numa reunião do Senado romano, perante as continuas conspirações deste contra a República.
[2] Sociedade Espanhola de Saúde Pública e Administração Sanitária (SESPAS)
http://www.sespas.es/informe2000/d1_01.pdf
[3] Ibid.
[4] http://scielo.isciii.es/scielo.php?pid=S0213-91112004000100004&script=sci_arttext

http://odiario.info/articulo.php?p=1476&more=1&c=1

Inclusão original (d1_01.pdf)



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