«Ele vislumbra brechas na fábrica de consensos do capitalismo e
aposta: movimentos como Occupy, economia solidária e rejeição ao
consumismo podem abalar sistema.
Noam Chomsky, a quem entrevistei 5ª-feira passada em sua sala no
Massachusetts Institute of Technology (MIT), influenciou intelectuais
nos EUA e em todo o mundo, por número incalculável de vias. A explicação
que construiu para o Império, a propaganda de massa, a hipocrisia e o
servilismo dos liberais e os fracassos dos acadêmicos, além do que
ensinou sobre os modos pelos quais a linguagem é usada como máscara pelo
poder, para nos impedir de ver a realidade, fazem dele o mais
importante intelectual nos EUA. A força de seu pensamento, combinada a
uma independência feroz, aterroriza o estado-empresa – motivo pelo qual a
imprensa-empresa e grande parte da academia-empresa tratam-no como
pária. Chomsky é o Sócrates do nosso tempo.
Vivemos um momento sombrio e desolado na história humana. E Chomsky
começa por essa realidade. Citou o falecido Ernst Mayr, importante
biólogo evolucionista do século 20, que disse que provavelmente nós
jamais encontraremos extraterrestres inteligentes, porque formas
superiores de vida se autoextinguem em tempo relativamente curto.
“Mayr dizia que o valor adaptacional do que se chama ‘inteligência
superior’ é muito baixo” – disse Chomsky. – “Baratas e bactérias são
muito mais adaptáveis que os humanos. É melhor ser inteligente que
estúpido, mas podemos ser um equívoco biológico, usando os 100 mil anos
que Mayr nos dá como expectativa de vida como espécie, para destruir-nos
nós mesmos e destruir também muitas outras formas de vida no planeta.”
A mudança climática “pode acabar conosco, e em futuro não muito
distante” – diz Chomsky. – “É a primeira vez na história humana em que
temos a capacidade para destruir as condições mínimas para sobrevivência
decente. Já está acontecendo. Há espécies que estão sendo destruídas.
Estima-se que vivemos destruição equivalente à de há 65 milhões de anos,
quando um asteroide colidiu com a Terra, extinguiu os dinossauros e
grande número de outras espécies. A destruição, hoje, é de nível
equivalente àquele. De diferente, que o asteroide somos nós. Se alguém
nos está vendo do espaço, deve estar atônito. Há setores da população
global tentando impedir a catástrofe global. Outros setores tentam
apressá-la.
Veja bem quem são uns e outros: os que tentam impedir a catástrofe
total são os que nós chamamos de primitivos, atrasados, populações
indígenas – as Nações Originais no Canadá, os aborígenes australianos,
pessoas que ainda vivem em tribos na Índia. E quem acelera a destruição?
Os mais privilegiados, os chamados ‘avançados’, os letrados, as pessoas
cultas e educadas do mundo.”
Se Mayr acertou, estamos no fim de uma tendência, acelerada pela
Revolução Industrial, que nos jogará para o outro lado de uma montanha,
ambientalmente e economicamente. Esse evento, aos olhos de Chomsky, nos
oferece uma oportunidade e, ao mesmo tempo, traz um perigo. Já várias
vezes Chomsky repetiu, como alerta, que, se temos de nos adaptar e
sobreviver, é preciso derrubar o poder da elite-empresa-corporação,
mediante movimentos de massa; e devolver o poder a coletivos autônomos
que são focados em manter as comunidades, em vez de explorar
comunidades. Apelar às instituições e mecanismos estabelecidos de poder
não vai dar certo.
“Podem-se extrair muitas boas lições, do período inicial da Revolução
Industrial” – disse ele. – “A Revolução Industrial decolou aqui perto,
no leste de Massachusetts, em meados do século 19. Foi o período quando
fazendeiros independentes estavam sendo conduzidos para dentro do
sistema industrial. Homens e mulheres – as mulheres deixaram as fazendas
para ser “operárias de fábrica” – lastimaram amargamente a mudança. Foi
também período de imprensa muito livre, a mais livre que os EUA jamais
conheceram, em toda sua história. Havia quantidade enorme de jornais e
lê-los hoje é experiência fascinante. O povo que foi arrastado para o
sistema industrial via aquilo tudo como um ataque à sua dignidade
pessoal, aos seus direitos de seres humanos. Eram seres humanos livres,
forçados para dentro do que chamavam ‘trabalho assalariado’, e que, aos
olhos deles, não era muito diferente da escravidão. De fato, essa era a
impressão dominante entre o povo, a tal ponto, que havia um slogan do
Partido Republicano: ‘A única diferença entre trabalhar por salário e
ser escravo é que o salário acaba.’”
Chomsky diz que essa deriva, que forçou os trabalhadores agrários
para longe da terra e para dentro das fábricas nos centros urbanos, foi
acompanhada por uma destruição cultural. Os trabalhadores, diz ele,
haviam sido parte da “mais alta cultura da época”.
“Lembro-me disso, lá nos anos 1930, com minha própria família” – diz
ele. – “Aquilo nos foi tirado. Estávamos sendo forçados a nos tornar,
de certo modo, escravos. Diziam que você trabalhava como artesão e
vendia um produto que você produzia, então, como assalariado, o que você
passou a fazer foi vender você mesmo. E isso soava como ofensa
profunda. Eles condenavam o que chamavam de ‘novo espírito da época’,
ganhar dinheiro e esquecer-se completamente de si mesmo. É velho e, ao
mesmo tempo, soa hoje muito familiar aos nossos ouvidos.”
É essa consciência radical, que deitou raízes em meados do século 19
entre fazendeiros e muitos operários de fábrica, que Chomsky diz que
temos de recuperar para conseguirmos avançar como sociedade e como
civilização. No final do século 19, fazendeiros, sobretudo no
meio-oeste, livraram-se dos banqueiros e dos mercados de capitais, e
constituíram seus próprios bancos e cooperativas. Entenderam o perigo de
virar vítimas de um processo vicioso de endividamento, comandado pela
classe capitalista. Os fazendeiros radicais fizeram alianças com os
‘Knights of Labor’ [Cavaleiros do Trabalho],[1]que entendiam que os que
trabalhavam nos moinhos deviam ser também proprietários dos moinhos.
“À altura dos anos 1890, operários estavam tomando cidades e
governando-as, no leste e no oeste da Pennsylvania. É o caso de
Homestead” – Chomsky lembrou. – “Mas foram esmagados à força. Demorou um
pouco. O golpe final foi o ‘Medo Vermelho’ de Woodrow Wilson [orig. Woodrow Wilson’s Red Scare][2].”
“A ideia, hoje, ainda deve ser a dos Knights of Labor,” ele
disse. “Os que trabalham nos moinhos devem ser também donos dos moinhos.
Há muito trabalho em andamento. Haverá mais. Os preços da energia estão
caindo nos EUA, por causa da exploração maciça de combustíveis fósseis,
que destruirá nossos netos. Mas, sob a moralidade capitalista, o
cálculo é: os lucros de amanhã são mais importantes que a existência ou
não dos seus netos. Estamos conseguindo preços mais baixos de energia.
Eles [os empresários] estão entusiasmadíssimos, porque podem oferecer
preços inferiores aos que a Europa oferece, porque nossa energia é mais
barata. E assim, os EUA conseguimos fazer fracassar os esforços que a
Europa tem procurado fazer, para desenvolver energia sustentável…”
Chomsky espera que os que trabalham na indústria de serviços e na
manufatura possam começar a organizar-se para começar a tomar o controle
de seus próprios locais de trabalho. Observa que no ‘Cinturão da
Ferrugem’ [orig. Rust Belt],[3] inclusive em estados como Ohio, há crescimento no número de empresas que pertencem aos trabalhadores.
O crescimento de poderosos movimentos populares no início do século
20 mostrou que a classe empresarial já não conseguia manter os
trabalhadores subjugados por ação exclusiva da violência. Os interesses
empresariais tiveram de construir sistemas de propaganda de massa, para
controlar opiniões e atitudes.
O crescimento da indústria de “relações públicas”, iniciada pelo
presidente Wilson, que criou o Comitê de Informação Pública [“Creel
Committee”][4], para instilar sentimentos pró-guerra na população,
inaugurou uma era não só de guerra permanente, mas também de propaganda
permanente. O consumo foi instilado também, com compulsão incontrolável.
O culto do indivíduo e do individualismo tornou-se regra. E opiniões e
atitudes passaram a ser talhadas e modeladas pelos centros de poder,
como o são hoje.
“Uma nação pacífica foi transformada em nação de odiadores, fanáticos
por guerras” – diz Chomsky. – “Essa experiência levou a elite no poder a
descobrir que, mediante propaganda efetiva, poderiam, como Walter
Lippmann escreveu, usar “uma nova arte na democracia, e fabricar o
consenso.”
A democracia foi destripada. Os cidadãos tornaram-se “público”,
“audiência”, telespectadores, não participantes no poder. Os poucos
intelectuais, entre os quais Randolph Bourne, que mantiveram a
independência e recusaram-se a servir à elite no poder foram expulsos
para fora do sistema, como Chomsky.
“Muitos dos intelectuais dos dois lados estavam apaixonadamente
dedicados à causa nacional” – disse Chomsky, falando a 1ª Guerra
Mundial. “Houve só uns raros dissidentes. Bertrand Russell foi preso.
Karl Liebknecht e Rosa Luxemburg foram mortos. Randolph Bourne foi
marginalizado. Eugene Debs, preso. Todos esses se atreveram a questionar
a magnificência da guerra.”
Aquela histeria pró-guerra jamais cessou, movida sem alteração, do
medo de um bárbaro germânico, para o medo de comunistas e, daí, para o
medos de jihadistas e terroristas islamistas.
“As pessoas vivem aterrorizadas demais, porque foram convencidas de
que nós temos de nos defender nós mesmos” – diz Chomsky. – “Não é
inteiramente falso. O sistema militar gera forças perigosas para nós,
que nos ameaçam. Veja, por exemplo, a campanha terrorista dos drones de
Obama – a maior campanha terrorista de toda a história. Esse programa
gera novos terroristas e terroristas potenciais muito mais depressa do
que destrói suspeitos. É o que se vê agora no Iraque. Volte lá, aos
julgamentos de Nuremberg. A agressão entre Estados foi definida como o
supremo crime internacional. Foi considerado diferente de outros crimes
de guerra, porque a agressão entre estados reúne, como crime, todos os
demais danos que outros crimes subsequentes causarão.
A invasão que EUA e Grã-Bretanha cometeram contra o Iraque é como um
manual de crime de agressão entre Estados. Pelos padrões de Nuremberg,
os governantes dos EUA e da Grã Bretanha teriam, todos, de ser
condenados à morte e enforcados. E um dos crimes que cometeram foi
incendiar o conflito sunita versus xiitas.”
Esse conflito, que agora novamente inflama a região, é “um crime
cometido pelos EUA, se acreditamos que sejam válidas as sentenças que
Nuremberg proclamou contra os nazistas. Robert Jackson, promotor-chefe
no tribunal de Nuremberg, em sua fala aos jurados, disse que aqueles
acusados haviam bebido de um cálice envenenado. E que se algum de nós
algum dia bebêssemos daquele mesmo cálice teríamos de ser tratados do
mesmo modo, ou tudo não passaria de grande farsa.”
As escolas e universidades da elite inculcam hoje em seus alunos a
visão de mundo endossada pela elite no poder. Treinam alunos para serem
reverentes ante a autoridade. Para Chomsky, a educação, na maior parte
das grandes escolas, inclusive em Harvard, a poucos quarteirões de
distância do MIT, não passa de “um sistema de profunda doutrinação”.
“Há um entendimento de que há certas coisas que não se dizem nem se
pensam” – diz Chomsky. – “É assim, entre as classes educadas. E é por
isso que eles todos apoiam fortemente o poder do Estado e a violência do
Estado, apenas com uma ou outra pequena ‘restrição’. Obama é visto como
crítico contra a invasão do Iraque. Por quê? Só porque disse que seria
erro estratégico. É argumento que o põe no mesmo nível moral de um
general nazista que entendesse que o segundo front era erro
estratégico. Isso, para os norte-americanos, é ‘ser crítico’.”
E Chomsky não subestima o ressurgimento de movimentos populares.
“Nos anos 1920, o movimento trabalhista estava praticamente destruído” – disse. – “Havia sido um movimento trabalhista forte, muito militante. Nos anos 1930 ele mudou, e mudou por causa do ativismo popular. Houve circunstâncias [a Grande Depressão] que levaram à oportunidade de fazer alguma coisa. Vivemos constantemente com isso. Considere os últimos 30 anos. Para a maioria da população, foram tempos de estagnação, ou pior que isso. Não é a Depressão profunda, mas é uma depressão semipermanente para a maior parte da população. Há muita lenha lá fora, esperando para ser queimada.”
“Nos anos 1920, o movimento trabalhista estava praticamente destruído” – disse. – “Havia sido um movimento trabalhista forte, muito militante. Nos anos 1930 ele mudou, e mudou por causa do ativismo popular. Houve circunstâncias [a Grande Depressão] que levaram à oportunidade de fazer alguma coisa. Vivemos constantemente com isso. Considere os últimos 30 anos. Para a maioria da população, foram tempos de estagnação, ou pior que isso. Não é a Depressão profunda, mas é uma depressão semipermanente para a maior parte da população. Há muita lenha lá fora, esperando para ser queimada.”
Chomsky entende que a propaganda empregada para fabricar consensos,
mesmo na era das mídias digitais, está perdendo efetividade, com a
realidade cada vez menos parecida com o “retrato’ dela inventado pelos
órgãos da mídia empresarial de massas. Embora a propaganda feita pelo
Estado norte-americano ainda consiga “empurrar a população para o terror
e o medo e para a histeria de guerra, como se viu nos EUA antes da
invasão do Iraque”, ela já começa a fracassar na tarefa de manter fé não
questionada nos sistemas de poder. Chomsky credita ao movimento Occupy,
que ele descreve como uma tática, ter “disparado uma fagulha
iluminadora” a qual, mais importante, atravessou toda a sociedade,
apesar da atomização”.»[...]
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Entrevista a Chris Hedge, Tradução Vila Vudu
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