«Uma sociedade que se lança cada vez
mais no vazio, carece de mediações simbólicas que evitem, ou sublimem, a
agressividade intrínseca e inerente; tal mediação necessária é o filtro que
evitaria que a agressividade fosse levada ao ato, à encenação da violência
'pura', nua, irracional, bestial e bárbara...
Equação evidente: sociedade doente =
produz = violência letal...
Todavia, o discurso dominante tenta
depositar no indivíduo a expiação da culpa, através da individuação do mal, na
pessoa, na família, na genética, na esquizofrenia, na sociopatia, etc. Lamentável
observarmos 'especialistas' e 'peritos', atribuírem o particular, o que é
expressão de uma totalidade doentia. A 'boa consciência' da sociedade se abala
quando uma catástrofe, como a que ocorreu em Realengo/RJ, se escancara aos
nossos olhos enubilados. É como se rasgasse um véu espesso, grosso, pesado...
Porém, mesmo rasgado esse véu, e como o que se vê é duro, é cruel demais, as
mentes fracas logo encontram um jeito de voltar a encobrir os olhos, e
fechar-se para o óbvio, através de ideologias individualistas, egoísticas, em
que o mal é depositado na conta da biologia (genética), nos distúrbios
psiquiátricos, sociopáticos, esquizóides; no indivíduo ou na família doente. A
Sociedade, não, essa não está doente! Aos olhos desses 'especialistas' e 'peritos'
de plantão; tudo corre as mil maravilhas (só os estúpidos e imbecis não
enxergam).
É preciso ocultar e evitar escancarar
evidências; 'verdades': é preciso encobrir o óbvio, as evidências...
Sabe-se bem que não será a primeira nem
a última notícia de catástrofes desse tipo; catástrofes do sentido se tornaram
rotina no nosso admirável mundo novo: logo aparecem os 'experts' para recolocar
no 'lugar' o sentido esvaído, destruído; encobrindo as pistas e os traços
evidentes de deriva, de perda...
Devemos nos alertar para os enganos de
tais perspectivas individualizantes, pois deposita na conta da individuação
aquilo que está no déficit da 'sociedade'. Como assim? Veja-se. Ao expiarmos a
culpa no tal desajustado, já morto e enterrado, nos livramos de pensar como
surgem tais 'patologias' e sua etiologia. Como se engendram tais processos de
destruição e de morte? Pesquisas demonstram que tais indivíduos nunca agem
sozinhos e sempre têm a 'cumplicidade' de próximos, que testemunham a
orquestração e premeditação da ideia ao ato. De um modo geral, pessoas próximas
(em torno de 95% dos casos analisados em diversas partes do mundo) reconhecem
que esses indivíduos expressavam diversos sinais de violência e desorientação.
Contudo, não se cogitava a possibilidade ou hipótese de que fossem levar a cabo
algo 'tão monstruoso'! Bem, se o indivíduo dava sinais evidentes de descontrole
e desorientação, e expressava e anunciava o 'desejo' de planejar e executar um
plano de tal monta; o silêncio, o isolamento e tal cumplicidade do meio social
envolvente, propiciaram o desenvolvimento de tais orquestrações... Nada indica
que esses comportamentos são totalmente individualizados, eles têm alta dose de
conivência e indiferença social e coletiva a sustentá-los.
Uma sociedade cada vez mais carente de
processos de mediação simbólica, se vê presa do esgarçamento dos laços sociais
que ela mesma produz. O que testemunhamos hoje é produção do social, é produção
coletiva, e não um ato de indivíduos isolados e 'doentes'. Sua 'doença' evolui
e se manifesta, num ambiente doente, contaminado pela epidemia da violência sem
sentido, anômica e bárbara. Não adianta tentar aplacar a 'boa consciência' da
sociedade que se imagina equilibrada, justa, boa, em si mesma: enterrando e se
livrando de um indivíduo doente e desajustado - tais indivíduos estão se
reproduzindo e constituindo, agora mesmo, em outros endereços e províncias.
Difunde-se a cumplicidade de uma sociedade perturbada, vazia e a deriva.
A esquizofrenia não está no indivíduo,
no cérebro do assassino, do sociopata, do psicopata. O processo esquizóide
atravessa nossa sociedade; o processo paranóide constitui nossa vida coletiva e
a perversidade é o traço dominante. Mas tal perspectiva é por demais crítica, e
abala a boa consciência dos que acreditam que a nossa sociedade, é a sociedade
da paz, do amor, da felicidade, etc. Considera-se nossa sociedade, a melhor
possível, a que mais oferece chances de felicidade, vida longa, tecnologias
fantásticas, prazeres fáceis, etc. Os indivíduos doentes é que não reconhecem
isso; e por morbidez e estupidez, atacam essa boa sociedade! Tal pensamento é
curto, é conveniente e não toca os pontos críticos fundamentais.
Assim, mais uma catástrofe aconteceu, e
a boa consciência da sociedade, mesmo ferida e traumatizada, vai se recompondo,
voltando a sua normalidade doentia. Uma postura mais crítica, esclarecida,
pontual, terapêutica, e clínica desse mal, é solapada em nome da boa
consciência que não pode ser desmascarada.
Por fim,
quando não se processa um trabalho simbólico de mediação, o resultado, o
produto disso, são atos diabólicos! Quando não somos atravessados pelo
simbólico, decaímos no diabólico!
Paga-se um alto preço pelo auto-engano!»
Crisol - Pesquisas e Estudos Culturais, de Alexandre Correa
Abril, 2013
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