«A praxe, abolida pelos movimentos estudantis dos anos 60,
regressou progressivamente às universidades a partir dos anos 80,
tornando-se hoje um fenómeno generalizado a todo o ensino superior.
Poucos escapam, e os raros debates sobre o acolhimento dos novos
estudantes centram-se sempre na rejeição de «más praxes», valorizando
supostas boas práticas. Onde estão estas boas praxes?
A entrada
no ensino superior é sempre um momento decisivo na vida, não só pelo
novo ciclo que inaugura, como pela criação de novas relações sociais e
pessoais. A vivência da praxe pode ser muito diferente de pessoa para
pessoa, entre quem encontra nela uma forma de diversão ou um bom
princípio e o defende abertamente, e os casos que levam a traumas
profundos e sequelas. Porque a pressão é fortíssima e parece que toda a
gente participa, uma maioria dos novos estudantes conforma-se
simplesmente à ideia e aos «desafios» propostos, apesar de não encontrar
particular interesse neles. O problema é que a praxe é hegemónica e as
práticas alternativas, mesmo quando existem, são subalternas. É pela
praxe que a maior parte das relações sociais são efectivamente criadas.
Como não conhecem outra forma de integração e se criam dentro da praxe
laços de socialização, a importância da praxe como prática de integração
é assimilada e parece inevitável. Enquanto qualquer pessoa que recusou a
praxe sabe que criou à mesma laços e se integrou naturalmente sem ela.
A
tragédia do Meco, que a 15 de Dezembro de 2013 provocou a morte de seis
estudantes, todos eles dirigentes de Comissões de Praxe da Universidade
Lusófona, teve uma ampla cobertura da comunicação social e deu lugar a
uma nova percepção da sociedade sobre a praxe, a sua amplitude e os seus
perigos. Longe de meras brincadeiras inocentes dos primeiros dias de
aulas, revelou-se que existem grupos que agem como organizações
secretas, paralelas ao associativismo tradicional ou mesmo apoiadas pelo
mesmo, promovendo actividades ao longo do ano todo, movendo estudantes
ao longo de todo o curso. Em muitas universidades, há praxes todas as
semanas, com práticas idênticas de Setembro a Junho. A praxe e a
veiculação dos seus valores fazem parte da vida académica, e em algumas
instituições parece ser a única actividade colectiva concentrada na
criação de laços entre os estudantes.
Apesar deste despertar da
sociedade para o problema, da denúncia dos vários casos de violência, da
existência de novas vítimas mortais, e até da condenação de «veteranos»
em tribunal num caso de coacção [1], a praxe mantém a sua vitalidade e perpetua-se, apoiada por uma larga maioria de estudantes.
Invariavelmente,
a praxe tem na sua matriz o culto das relações hierárquicas, em que os
alunos mais antigos detêm o poder e exercem a autoridade sobre os mais
novos. As práticas de humilhação são recorrentes e a individualidade dos
novos estudantes é apagada, sendo tratados colectivamente como «não
pessoas». Esta premissa encontra-se em todos os manuais e códigos
praxistas: os «caloiros» são assimilados a «bichos», «animais» e
«vermes» [2].
Existem regras estritas para se dirigirem aos mais velhos, devendo
tratá-los por «Excelentíssimo(a) Sr.(a) Veterano(a)» e é norma comum
terem de manter a cabeça baixa, nunca olhando para o seu «superior».
Passa-se uma boa parte do tempo «de quatro» ou mesmo a rastejar no chão,
e defende-se abertamente em debates públicos a utilidade da praxe para a
integração não só na universidade como na vida activa, porque «a vida é
dura». Submeter-se e «ser humilhado» faria parte da vida [3].
Mesmo
quando parece mais inofensiva, a praxe é sempre baseada numa relação de
dominação do mais velho sobre o mais novo, com as estigmatizações
consequentes. As características físicas são realçadas como forma de
rebaixamento, a expressão de preconceitos homofóbicos, sexistas e
racistas é recorrente e criam-se rivalidades artificiais entre cursos,
cuja única premissa é a de que uns seriam melhores do que outros.
É
na naturalização destes preconceitos que se desenvolvem as praxes: o
jogo de poder torna-se abuso, a violência verbal torna-se também física e
cria-se uma espiral para ver «até onde podemos ir» – espiral na qual a
pressão para o consumo de álcool é um instrumento para permitir mais
abusos.
A maior parte das universidades têm sido coniventes com a
generalização destas práticas, apesar de muitos dos seus reitores as
terem combatido no tempo em que estudavam. Historicamente, a
universidade foi símbolo não apenas do poder, mas também espaço de
resistência, de luta pela democracia, pela igualdade, pela justiça,
lugar de reflexão e da crítica da sociedade. Ou seja, o oposto dos
valores da praxe, assente na submissão e na resignação. Assim, a inacção
das instituições torna-as cúmplices da naturalização da violência que a
praxe promove, o que é tanto mais preocupante quanto esta se torna um
sistema globalmente aceite de integração.
Felizmente, algumas
universidades têm tomado algumas iniciativas, proibindo as praxes dentro
dos recintos ou condenando-as abertamente [4].
Estas resoluções têm sido importantes para facilitar a vida de quem
pretende evitar a praxe e evitar a coacção dos novos alunos mal põem os
pés na instituição.
Desde os acontecimentos do Meco, muitas vozes
se têm levantado para condenar as praxes violentas, gerando um amplo
consenso entre estudantes, instituições e Ministério da Educação. O
ministro Nuno Crato recebeu os estudantes numa atitude conciliadora e a
condenação das praxes violentas foi unânime [5].
Foi este ano realizada pela primeira vez uma campanha de sensibilização
do governo, com cartazes e panfletos entregues às universidades,
focando sobretudo a recusa de «praxes agressivas e violentas».
Todas
estas tomadas de posição pressupõem a ideia de que existe uma praxe
boa, que seria benéfica para a integração. O problema é duplo:
atravessando o país de Norte a Sul, ouvimos de forma recorrente os
estudantes defenderem que a praxe que praticam é boa e não recorre à
violência como noutros lugares, como se fosse sempre um problema dos
outros e não uma questão de fundo e da natureza violenta e inaceitável
do fenómeno. Por outro lado, focar a questão neste binómio entre o «bom»
e o «mau» legitima a existência da prática da praxe.
Por outro
lado, assistimos à aparição de praxes «voluntárias» ou «sociais». Além
de não terem nenhuma componente voluntária, tal como toda a praxe em que
a relação é estabelecida pela obediência às ordens hierárquicas, estas
iniciativas são geralmente acções de caridade ou de utilidade pública
(pintar um muro, ajudar numa associação social…) que junta os alunos
para transmitir uma boa imagem da praxe. Mas estas acções pontuais
ocultam o dia a dia da praxe e, nessa medida, acabam por limpar a sua
imagem e legitimar a violência e a humilhação de todos os outros
momentos.
Criar alternativas que não sejam baseadas na praxe e no
estabelecimento de relações de dominação deveria ser uma prioridade do
associativismo universitário e das instituições. Já se podem observar
bons exemplos como a organização da «semana de recepção ao novo
estudante», com programas culturais, de convívio e de introdução à
faculdade que respondem com muito sucesso à aparente naturalização da
violência da praxe, e acabam por atrair a maior parte dos novos alunos.[...]»
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