sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Nas raízes económicas do conflito ucraniano


«Na sequência das eleições legislativas na Ucrânia, que foram muito favoráveis ao bloco pró-europeu do presidente Petro Porochenko, ter em conta as dimensões económicas da crise no país, muitas vezes ignoradas, permite compreender melhor a situação actual.
O oligarca Petro Porochenko, eleito a 25 de Maio para a presidência da Ucrânia, vai ter de responder às tensões secessionistas das regiões russófonas, assumindo ao mesmo tempo as consequências sociais do programa montado pelo Fundo Monetário Internacional. Ter em conta as dimensões económicas da crise, muitas vezes ignoradas, contribui para compreender melhor por que motivo o país mergulhou na violência.
Na crise política ucraniana pode ver-se o desenlace dramático de uma trajectória financeira que se tornou insustentável nos últimos meses de 2013. Em Julho de 2010, o governo assinou um acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Em troca de um empréstimo de 15,5 mil milhões de dólares, comprometia-se, entre outras coisas, a aumentar a idade da reforma dos 55 para os 60 anos – apesar de a esperança de vida no país permanecer dez anos inferior à da média europeia – e a duplicar os preços internos da energia. Seis meses mais tarde, o acordo foi congelado: o governo não queria aumentar as tarifas do gás.
O país lançou-se então numa fuga para a frente. A actividade passou a ser sustentada apenas pelo consumo das famílias, alimentado pelo endividamento privado e por um aumento das despesas sociais destinado a acalmar os descontentamentos (+16% em 2012). Fechada em produções de fraco valor acrescentado, e apesar das alternâncias políticas, a economia ucraniana sofreu as consequências da ausência de uma verdadeira consolidação institucional desde o fim da URSS. Mais de vinte anos depois, o país ainda não recuperou o nível de produção atingido na época soviética (ver infografia). A evasão fiscal, a corrupção e a predação prevalecem, mesmo nas mais altas esferas do Estado. Os sectores informais deverão pesar entre 25% e 55% do produto interno bruto (PIB), de acordo com diferentes fontes. Os dois desequilíbrios recorrentes da economia – o orçamento e as contas externas – aprofundam-se constantemente, num contexto de endividamento em divisas.
No Outono de 2013 o governo já sabia que tinha de encontrar imediatamente 3 mil milhões de dólares para fazer face aos prazos de pagamentos em 2014, a que se juntavam mil milhões de obrigações em euros. Além disso, a Naftogaz, a operadora pública de gás do país, acumula mais de 3 mil milhões de dólares de dívida à Gazprom, a sua fornecedora russa. Até então, a inflação manteve-se fraca, por causa da atonia do crescimento, de uma política monetária restritiva e de boas colheitas. Mas o sistema financeiro permanece frágil e as pressões sobre a moeda nacional, a grívnia, estão a intensificar-se, tendo-se a sua taxa de câmbio mantido sobrevalorizada desde há vários meses. Tal como na Rússia em 1998 antes do crash, está a erguer-se em frente da Ucrânia um muro de dinheiro.

Ultimato e volte-face

No fim de Outubro de 2013 foi enviada a Kiev uma missão do FMI, que apresentou as suas condições: ou o governo deixa a grívnia flutuar, reduz as suas despesas, aumenta «imediata e significativamente os preços do gás e do aquecimento dos particulares e adopta um calendário para mais aumentos até que os custos estejam cobertos» [1], ou então o programa de assistência não é assinado, privando a Ucrânia de 10 a 15 mil milhões de dólares em divisas. A Comissão Europeia anunciou que entraria com mais 840 milhões de dólares, caso o país chegasse a acordo como o FMI.
As consequências potenciais de um aumento brutal dos preços da energia, tanto para a população como para a indústria da região de Donbass, podem ter levado o presidente ucraniano a hesitar. Na mesma semana, encontrou-se com o presidente russo Vladimir Putin em Sotchi. Nessa altura já discutiram, sem dúvida, uma solução alternativa à do FMI. A 21 de Novembro de 2013, Viktor Ianukovitch suspendeu a assinatura do acordo de associação com a União Europeia [2]. O volte-face desencadeou concentrações na Maidan, a praça da Independência de Kiev.
As grandes linhas da proposta russa só foram reveladas a 17 de Dezembro, num movimento táctico de Putin para recuperar o controlo. O seu plano prevê então um empréstimo de 15 mil milhões de dólares, uma redução de um terço no preço do gás vendido ao país vizinho e alguma flexibilidade quanto à dívida da Naftogaz para com a Gazprom, tudo isto sem contrapartidas expressas. Foi um gesto trocista em relação ao FMI e à União Europeia. Mas, depois de Ianukovitch ser derrubado do poder e partir, a 22 de Fevereiro, os novos dirigentes ucranianos viraram-se novamente para o FMI…
Esta versatilidade só pode ser compreendida observando a inserção internacional de longo prazo da economia ucraniana. Para a Europa e a Ásia, o pais exporta as suas matérias-primas e os seus produtos semi-acabados; para a Rússia, os seus produtos transformados. No fim da década iniciada no ano 2000, dois projectos de integração regional tomaram forma e conduziram o país a um dilema: associação com a União Europeia ou união aduaneira com a Rússia? Os termos desta escolha forçada ignoram a coesão económica e social da Ucrânia, que é o terceiro excluído desta lógica binária.

Desde Maio de 2009 que a União Europeia vem propondo uma parceria à Ucrânia, à Bielorrússia, à Moldávia, à Arménia, à Geórgia e ao Azerbaijão. A oferta não se estende à Rússia, com a qual as negociações de parceria estratégica estão enterradas desde a «guerra do gás» de 2006. Para a Ucrânia, a aproximação passa pela assinatura de um Acordo de Comércio Livre Completo e Aprofundado.
Putin reagiu ressuscitando um antigo projecto de integração dos países da Comunidade dos Estados Independentes (CEI) – que reúne antigas repúblicas soviéticas –, destinado à criação de uma união monetária eurasiática [3]. O seu plano está a avançar depressa: desde 2010, a Rússia, o Cazaquistão e a Bielorrússia proclamaram a entrada em vigor de uma União Aduaneira. Devido à importância da Rússia nas suas trocas comerciais externas (cerca de 30%), a Ucrânia não pode fazer orelhas moucas. Em Outubro de 2011, Viktor Ianukovitch assinou o Tratado de Comércio Livre Intra-CEI. A seguir propôs uma configuração «3+1» aos países da União Aduaneira, mas continua a dar prioridade ao Acordo de Comércio Livre Completo e Aprofundado. Esta dança hesitante irrita os dirigentes russos, que rejeitam a sua contraproposta [4].
Em 2013, a pressão aumentou por todos os lados. A Rússia desenvolveu uma retórica contra o referido Acordo. Segundo Serguei Glaziev, conselheiro do presidente Putin, a assinatura do acordo com a União Europeia seria um acto «suicida» que implicaria «matar a balança comercial ucraniana» [5]. Tornando-se «inevitável» uma reacção proteccionista por parte da União Aduaneira, as exportações para a Rússia de produtos agro-alimentares e de bens de equipamento (ou seja, 50% do total) cairiam a pique. «A primeira opção [a União Aduaneira] irá assegurar as condições necessárias ao desenvolvimento sustentável da economia ucraniana e melhorar as suas estruturas; a segunda [o Acordo Completo e Aprofundado] irá provocar a sua degradação e a sua bancarrota» [6], afirma Serguei Glaziev.
Os argumentos deste oráculo são tão frágeis quanto são fortes os seus ecos na Rússia. O Kremlin juntou a acção às palavras: produtos de confeitaria ucraniana (os da empresa Roshen, pertencente a Petro Porochenko, que se tornou presidente do país em Maio de 2014), e depois outros produtos, foram declarados perigosos para a saúde dos russos. Os bloqueios aduaneiros que se seguiram asfixiam os exportadores ucranianos.
Os responsáveis da União Europeia, por seu lado, tecem regularmente louvores ao comércio livre e ao Acordo Completo e Aprofundado. Desde 2007 que um relatório encomendado pela Comissão Europeia concluiu, oportunamente, que «a abertura do mercado combinada com a melhoria da governação interna poderá conduzir a Ucrânia a um crescimento de dois dígitos» [7]. Stefan Füle, comissário europeu encarregado da política de vizinhança, promete aos ucranianos seis pontos anuais de crescimento suplementar em caso de associação com a União Europeia. Mas estas estimativas assentam em modelos cujas hipóteses [8], nunca questionadas, estão muito desligadas das condições de funcionamento da economia do país.

O perigo de um efeito dominó

O que pensam disto os influentes empresários da Ucrânia? Tal como a população, eles estão divididos. Desde 2013 que os estudos do Instituto Polaco dos Assuntos Internacionais prevêem que os principais beneficiários do Acordo de Comércio Livre Completo e Aprofundado serão… Petro Porochenko, Andriy Verevskiy – cujo grupo Kernel exporta para a União Europeia – e Yuri Kosyuk, gigante da criação de aves com o Mironivsky Hliboprodukt. Os perdedores seriam os oligarcas mais próximos de Viktor Ianukovitch. O seu filho Olexandr Ianukovitch, Rinat Akhmetov e Dimitry Firtash detêm, assim, 40% dos concursos adjudicados pelo regime. A sua renda política seria ameaçada pelas regras do Acordo [9].
É difícil não ver, por trás da pobreza dos argumentos avançados pelas duas partes, o desafio normativo que está em jogo nestes projectos de integração. Em 2009, um dos mais zelosos promotores do Acordo, o ministro dos Negócios Estrangeiros sueco Carl Bildt, sublinhou o seu interesse, que ultrapassa em muito o de um simples acordo de comércio livre: «Estamos a estender toda a legislação sobre a energia e toda a legislação sobre a concorrência na Ucrânia, na Moldávia e na Sérvia, o que provoca transformações absolutamente fundamentais no longo prazo» [10].
Estendendo o seu domínio, a União Europeia ocupa um lugar na concorrência pelas e para as normas, desafio fundamental da globalização [11]. A Rússia, por seu lado, herdou um sistema normativo oriundo da URSS que, apesar de lacunar, envelhecido e pesado, continua a enquadrar as relações económicas entre os países da CEI. Tendo em conta o contágio que a sua difusão provoca, uma penetração das normas europeias na Ucrânia pode varrer a unidade pós-soviética por um efeito dominó. A reacção da Rússia resulta também, portanto, da luta pela sobrevivência de um sistema em que o seu complexo militar-industrial continua a assentar muito.

Os confrontos agravaram a crise económica em 2014. Mobilizando 27 mil milhões de euros de empréstimo, 17 mil milhões dos quais avançados por dois anos pelo FMI, o acordo assinado em Maio põe a economia ligada à máquina. Apesar de o ajustamento ser mais progressivo [12], n.° 14/106, FMI, Maio de 2014.]] do que o negociado em Outubro de 2013, ele irá provocar, já desde 2014, uma subida de cerca de 50% dos preços da energia e um aumento da inflação, enquanto as relações com a Rússia se manterão sob a ameaça de uma nova escalada de proteccionismo. Na ausência de um impulso orçamental e apesar da desvalorização da grívnia, que limita a pressão competitiva, a queda do PIB deve chegar aos -5%. É previsível um crescimento dos movimentos sociais, particularmente no Sul e nos estados industriais, onde se misturarão com os conflitos separatistas em curso.
Petro Porochenko, vencedor na primeira volta das eleições presidenciais, adquiriu uma legitimidade que faltava ao governo provisório. Mas a sua equipa tem de enfrentar desafios tremendos. No curto prazo, é preciso reconstruir a credibilidade do Estado para ajudar a economia a sair da lógica de predação [13], controlando ao mesmo tempo a viabilidade das contas externas. No longo prazo, é preciso reestruturar o sistema financeiro. É preciso converter uma das economias mais dispendiosas do mundo (dez vezes mais energia consumida por unidade de PIB do que os países mais avançados) a um modo de desenvolvimento que coloque a eficácia energética e a subida de gama das produções no centro do investimento.[...]»

Ler mais...

LeMondeDiplomatique,  Julien Vercueil

Sem comentários:

Enviar um comentário