«Em sentido figurado, um lodaçal é um ambiente de vida desregrada,
um lugar aviltante. Literalmente, o vocábulo expressa um lugar onde há
muito lodo, um atoleiro. O escândalo BES, com responsáveis evidentes e
nenhum preso, o roubo legal de milhares de milhões de dólares operado
pelo Luxemburgo às economias dos países europeus e a recente hecatombe
que se abateu sobre o Governo e as cúpulas da administração pública
portuguesa mostram que é lá, num lodaçal, que vivemos.
Estes
três escândalos, de tantos que tornam desesperada a vida cívica, têm
uma génese: a desagregação do Estado, com a consequente anulação do seu
poder fiscalizador e regulador sobre o mundo financeiro. Contrariamente
ao discurso das maiorias, nacional e europeia, o nosso problema não é o excesso de Estado mas o seu constante e progressivo aniquilamento.
O nosso problema consiste em encontrar meios políticos para devolver ao
Estado instrumentos de fiscalização e regulação que protejam o
interesse geral.
O meritório trabalho do International Consortium of Investigative Journalists
expôs uma dimensão magna de um roubo legal, que permitiu a cerca de 340
empresas internacionais, assistidas fiscalmente por uma só, de
consultoria financeira, a Pricewaterhousecoopers, pagarem apenas
cerca de 1% de imposto sobre os lucros. Moralmente nojento, quando
pensamos na monstruosa carga fiscal que, em nome da crise, asfixia os
cidadãos. Repugnante, quando esta degradante evasão fiscal,
grosseiramente violadora da lealdade devida entre estados-membros da
União Europeia, foi conduzida sob a responsabilidade de Jean-Claude
Junker, que acaba de assumir a presidência da Comissão Europeia.
Vivemos
num lodaçal de ataques aos direitos básicos dos cidadãos, perpetrados
por figurões que se dizem, sempre, de bem com a sua consciência de
sociopatas, de quebra constante da confiança no Estado, de desespero
crescente quanto ao futuro. Porque as leis, iníquas e de complexidade
impenetrável, protegem os fortes do mesmo passo que diminuem os apoios
sociais e o direito dos mais débeis.
Responsabilidade
moral e política são coisas que os dirigentes não conhecem. Mas a falta
de decoro é-lhes pródiga. Um episódio pouco divulgado mostra-o com
clareza. No dia 11 deste mês, numa audição na comissão parlamentar dos
Negócios Estrangeiros e Comunidades, a propósito da eleição de Portugal
para o Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas e respondendo a
considerações que vários deputados fizeram sobre o impacto da crise na
vida dos portugueses, o ministro Rui Machete afirmou que os direitos
fundamentais sociais dependem da economia e podem ser restringidos em
função dela. Ou seja, em matéria de direitos fundamentais contam nada as
aquisições civilizacionais, as convenções internacionais que
subscrevemos e a Constituição da República Portuguesa, porque mandam o
PIB e os credores internacionais. Rui Machete disse que na ONU "Portugal
pautará a sua actuação pelo objectivo da defesa da dignidade da pessoa
humana e do carácter individual, universal, indivisível, inalienável e
interdependente de todos os direitos humanos, sejam direitos civis,
culturais, económicos, políticos ou sociais". Rui Machete afirmou ir
defender na ONU os mesmos direitos sociais que, garantiu, podem ser
suspensos cá dentro, penalizando as pessoas em pobreza extrema, os
idosos e as crianças. Forte lógica, sólida moral.
Importa relembrar, a propósito desta (mais uma) infeliz intervenção pública de Rui Machete, que “os
órgãos de soberania não podem, conjunta ou separadamente, suspender o
exercício dos direitos, liberdades e garantias, salvo em caso de estado
de sítio ou de estado de emergência, declarados na forma prevista na
Constituição” (Artigo 19º, nº 1, da CRP).
E
voltamos ao lodaçal, que explica a abulia generalizada. Novo exemplo:
sorrateiramente, avança a municipalização da Educação, metáfora para
consagrar nova tragédia, qual seja entregar ao arbítrio das câmaras
aderentes um domínio estratégico, que jamais deveria sair da tutela
central. Basta reler a história da I República (a
descentralização/municipalização da educação foi definida pela primeira
vez em decreto de 29 de Março de 1911) para perceber que não é de descentralização municipalista, mas de autonomia, que as escolas e os professores necessitam
e que a substituição do monolitismo vigente por vários caciquismos não
resolverá um só problema e acrescentará muitos mais e graves.[...]»
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