«A prisão de José Sócrates não foi um evento, na atribulada vida portuguesa, mas o evento, a singularidade inicial que vai marcar um antes e um depois na vida política portuguesa. Este é um bom exemplo de como toda a história é essencialmente surpresa e nada nunca está garantido.
Quando acontece algo verdadeiramente importante e que suscita receio de mudança, a reacção da superestrutura política e mediática, que vivem em simbiose de fala, é um discurso profundamente conservador que é castrador do debate e da opinião numa democracia. Este é um dos factores mais evidentes de como a nossa democracia é muito imperfeita, porque, em momentos decisivos, deixa o discurso político no espaço público ou entregue ao populismo e à demagogia ou a uma pomposidade "de Estado" que se limita a repetir uma frases vazias e tão "responsáveis" como ocas.
Bipolaridade e hipocrisia
O carácter bipolar neste discurso "responsável" é tão evidente que uma vez afastados os microfones ou as câmaras, a linguagem que se fala é completamente outra. "Não se deve comentar a justiça", "uma coisa é a justiça e outra é a política", etc, etc, é o que se diz lá dentro. Cá fora o que se diz e muito diferente: "ele está a ser sujeito a uma perseguição", "é uma vergonha o modo como isto tudo se está a passar", "os juízes agora são justicialistas"; ou "só agora?", "já era mais que tempo que esse ladrão fosse preso", a "justiça está finalmente a cumprir o seu papel", "tremam corruptos", etc, etc. Os silêncios lá dentro, potenciam a verborreia cá fora, e isso não é saudável para o debate público.
O discurso policiado
Por que razão é que não há maior equilíbrio e menor hipocrisia? Medo de quebrar os tabus dominantes e cair tudo em cima de quem o fizer. Este é o País em que se aconselham os políticos a se fazerem de "mortos", por isso não me espanta que agora se aconselhe as pessoas a serem cegas, surdas e mudas lá porque está envolvida essa figura estranha que é a "justiça".
Ora é perfeitamente possível e vantajoso discutir tudo, e os termos dessa discussão serem sólidos e não violarem nenhuma regra democrática, nem segredo de justiça, nem presunção da inocência. E mais: é possível ser feito por pessoas que naturalmente têm uma opinião subjectiva formada - como aliás toda a gente mesmo que o não diga -, sobre a inocência ou a culpabilidade de Sócrates. Essa opinião não tem qualquer valor em si do ponto de vista jurídico, mas não é irrelevante no debate público.
Eu, por exemplo, tenho as maiores dúvidas sobre vários processos que implicaram condenações, não tanto sobre a absoluta inocência dos acusados, mas sobre a produção de prova e os exageros de penas que indiciam ou "penas para dar o exemplo", ou penas para responder à pressão dos media. Os exemplos vão do caso do padre Frederico ao processo do skinhead Mário Machado, à pena absurda de Manuel Godinho no processo da Face Oculta, que seria menor se ele tivesse matado alguém, à pena do suposto "raptor" do Rui Pedro (de que não vi, no que se conhece do processo, nenhuma prova de rapto), até à condenação de Maria de Lurdes Rodrigues, neste caso sem uma única prova.
É uma lista, insisto, na base da minha convicção pessoal e do que sei dos processos, já muito longa para não haver aqui um problema. Eu acho que quando a mediatização se mistura com a justiça, alguns juízes assumem uma atitude de quererem resolver no tribunal os males do mundo, ou darem à turba o culpado que ela deseja. Espero que não seja o caso actual, e também acrescento que não é essa a minha convicção para já.
Tabus
Toda a gente agora perora contra o facto de o PS ter afirmado que o caso Casa Pia foi uma "cabala". O PS só fez asneiras nessa altura, a começar por aquela recepção vergonhosa a Paulo Pedroso no Parlamento, mas o modo como foi conduzida a investigação do caso nada teve de inocente e suscita todas as reservas. Não era uma "cabala" contra o PS, mas uma obsessão antipolíticos que foi longe demais e acabou por ser contraproducente para apanhar os verdadeiros culpados. Por isso, os resultados do processo estiveram longe de ser os que eram esperados pelo gigantismo das acusações, exactamente porque a uma dada altura houve a tentação de usar uma rede de arrasto para apanhar tudo o que era político ou figura pública, mesmo que não houvesse qualquer indício de culpabilidade. E isso não deveria ser denunciado e discutido, mesmo no meio de todas as ambiguidades?
Em democracia discute-se tudo, depende é do modo
Digo isto tudo para afirmar que não há nenhum problema em discutir politicamente casos de justiça, quando eles estão densos de significado político seja de parte dos políticos, seja de parte dos magistrados e juízes. É o que tenho feito nos últimos tempos a pretexto dos vistos gold.[...]»
Ler mais...
Sem comentários:
Enviar um comentário