sexta-feira, 28 de novembro de 2014

O evento




«A prisão de José Sócrates não foi um evento, na atribulada vida portugue­sa, mas o evento, a singularidade ini­cial que vai marcar um antes e um de­pois na vida política portuguesa. Este é um bom exemplo de como toda a história é essencialmente surpresa e nada nunca está garantido.

Quando acontece algo verdadeira­mente importante e que suscita receio de mudança, a reacção da superes­trutura política e mediática, que vi­vem em simbiose de fala, é um dis­curso profundamente conservador que é castrador do debate e da opi­nião numa democracia. Este é um dos factores mais evidentes de como a nossa democracia é muito imperfeita, porque, em momentos decisivos, dei­xa o discurso político no espaço pú­blico ou entregue ao populismo e à demagogia ou a uma pomposidade "de Estado" que se limita a repetir uma frases vazias e tão "responsá­veis" como ocas.

Bipolaridade e hipocrisia


O carácter bipolar neste discurso "res­ponsável" é tão evidente que uma vez afastados os microfones ou as câma­ras, a linguagem que se fala é comple­tamente outra. "Não se deve comen­tar a justiça", "uma coisa é a justiça e outra é a política", etc, etc, é o que se diz lá dentro. Cá fora o que se diz e muito diferente: "ele está a ser sujeito a uma perseguição", "é uma vergonha o modo como isto tudo se está a pas­sar", "os juízes agora são justicialistas"; ou "só agora?", "já era mais que tempo que esse ladrão fosse preso", a "justiça está finalmente a cumprir o seu papel", "tremam corruptos", etc, etc. Os silêncios lá dentro, potenciam a verborreia cá fora, e isso não é sau­dável para o debate público. 

O discurso policiado

Por que razão é que não há maior equilíbrio e menor hipocrisia? Medo de quebrar os tabus dominantes e cair tudo em cima de quem o fizer. Este é o País em que se aconselham os políti­cos a se fazerem de "mortos", por isso não me espanta que agora se aconse­lhe as pessoas a serem cegas, surdas e mudas lá porque está envolvida essa figura estranha que é a "justiça".

Ora é perfeitamente possível e van­tajoso discutir tudo, e os termos dessa discussão serem sólidos e não viola­rem nenhuma regra democrática, nem segredo de justiça, nem presun­ção da inocência. E mais: é possível ser feito por pessoas que naturalmen­te têm uma opinião subjectiva forma­da - como aliás toda a gente mesmo que o não diga -, sobre a inocência ou a culpabilidade de Sócrates. Essa opi­nião não tem qualquer valor em si do ponto de vista jurídico, mas não é ir­relevante no debate público.

Eu, por exemplo, tenho as maiores dúvidas sobre vários processos que implicaram condenações, não tanto sobre a absoluta inocência dos acu­sados, mas sobre a produção de pro­va e os exageros de penas que indi­ciam ou "penas para dar o exemplo", ou penas para responder à pressão dos media. Os exemplos vão do caso do padre Frederico ao processo do skinhead Mário Machado, à pena ab­surda de Manuel Godinho no processo da Face Oculta, que seria menor se ele tivesse matado alguém, à pena do suposto "raptor" do Rui Pedro (de que não vi, no que se conhece do processo, nenhuma prova de rapto), até à condenação de Maria de Lurdes Rodrigues, neste caso sem uma úni­ca prova.

É uma lista, insisto, na base da mi­nha convicção pessoal e do que sei dos processos, já muito longa para não haver aqui um problema. Eu acho que quando a mediatização se mistura com a justiça, alguns juízes assumem uma atitude de quererem resolver no tribunal os males do mundo, ou darem à turba o culpado que ela deseja. Espero que não seja o caso actual, e também acrescento que não é essa a minha convicção para já. 


Tabus

Toda a gente agora perora contra o facto de o PS ter afirmado que o caso Casa Pia foi uma "cabala". O PS só fez asneiras nessa altura, a começar por aquela recepção vergonhosa a Paulo Pedroso no Parlamento, mas o modo como foi conduzida a investi­gação do caso nada teve de inocente e suscita todas as reservas. Não era uma "cabala" contra o PS, mas uma obsessão antipolíticos que foi longe demais e acabou por ser contrapro­ducente para apanhar os verdadei­ros culpados. Por isso, os resultados do processo estiveram longe de ser os que eram esperados pelo gigan­tismo das acusações, exactamente porque a uma dada altura houve a tentação de usar uma rede de arrasto para apanhar tudo o que era político ou figura pública, mesmo que não houvesse qualquer indício de culpa­bilidade. E isso não deveria ser de­nunciado e discutido, mesmo no meio de todas as ambiguidades?  

Em democracia discute-se tudo, depende é do modo

Digo isto tudo para afirmar que não há nenhum problema em discutir po­liticamente casos de justiça, quando eles estão densos de significado polí­tico seja de parte dos políticos, seja de parte dos magistrados e juízes. É o que tenho feito nos últimos tempos a pre­texto dos vistos gold.[...]»

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