«Esta pergunta foi feita por Paulo Portas, quando no Parlamento se explicava sobre os vistos gold, política de que é o principal patrocinador.
Esta frase merece ficar na memória destes anos de lixo, juntamente com o “irrevogável” do mesmo autor, e de algumas outras de Passos Coelho sobre os “piegas” versus os empreendedores, ou o “ir para além da troika”, ou a “austeridade criadora”, ou o fabuloso conceito de “justiça geracional”, ou os saltos no palco do “jovem” comissário do Impulso Jovem que nunca deve ter percebido como é que acabou a sua nobre missão de explicar a inutilidade de saber história ou sequer de estudar. Hoje tudo isto nos parece ridículo e perigoso, uma combinação sinistra,até porque tudo ainda está no activo. Vamos um dia olhar para estas frases, com a distanciação possível da história, e perceber melhor o retrato de um período negro da história portuguesa, em que o país foi estragado por uma mistura de ideias erradas e muita incompetência.
Voltando à frase de Portas, um daqueles soundbites de
que os jornalistas muito gostam, e que substituem em Portas um
pensamento, uma coerência, uma política e uma ética que não seja a sua
vanglória e a sua sobrevivência. Podemos construir várias frases
exactamente com o mesmo raciocínio que lhe serve de base.
Quem cria mais postos de trabalho? O CDS ou o BE? O CDS, claro, que está no Governo e participa na distribuição dos boys e girls e
com muito afinco. Chama-se a “quota” do CDS. Quem cria mais postos de
trabalho? O PSD ou o CDS? Terrível problema para o CDS, que só chega ao
poder encostado nos votos do PSD e já fez disso modo de vida. A resposta
é: o PSD, claro. Quem cria mais postos de trabalho? O CDS ou a Remax? A
Remax claro, uma multinacional cujo nome Portas acabou por misturar
nestas justificações, fazendo-lhe publicidade gratuita. Que se saiba,
Portas ainda não vende casas na Micronésia, onde a Remax actua. Quem tem
uma “marca” de maior prestígio e maior valor de mercado? Portas ou a
Remax? A Remax, que ainda não é “irrevogável”.
E a pergunta das
mais certas que há: quem destruiu mais postos de trabalho? Portas ou o
BE? Portas ou a Remax? Resposta: Portas e o CDS. E Sócrates –
dirão as vozes? Sim, é verdade, Sócrates, Passos Coelho e Portas estão
bem uns para os outros. Repito de novo a pergunta que seria aquela que
de imediato lhe faria, se ele a fizesse à minha frente: quem destruiu
mais postos de trabalho? Portas ou o BE? Portas ou a Remax?
Aplicada aos vistos gold, a
frase de Portas tem um significado unívoco: se dá dinheiro, vale tudo.
Todo o resto da argumentação é paisagem – os outros também fazem, o
dinheiro entra pela banca em cheque, comprar casas de luxo ajuda à nossa
economia, etc., etc. Mas a essência é: se dá dinheiro, pode comprar
tudo, mesmo esse intangível valor que é a residência em Portugal e
depois a nacionalidade. É este sentido que torna a frase muito simbólica
dos nossos dias, em que o “estado de emergência” se faz em primeiro
lugar sentir no domínio da ética pública.
Eu não sou daqueles que
descobriram as virtudes (e os defeitos) da doutrina social da Igreja com
o Papa Francisco. No PSD, se não houvesse uma efectiva traição à sua
matriz histórica e ideológica, o contributo da doutrina social da
Igreja, exactamente nos aspectos em que ela hoje parece perigosamente
esquerdista para os ignorantes, é genético no pensamento de Sá Carneiro.
O mesmo podia ser dito do CDS, se o amoralismo oportunista de Portas e
dos seus jovens lobos não tivesse já destruído o que sobrava.
Por
ironia do destino, no mesmo dia em que Paulo Portas disse a frase da
Remax no Parlamento, eu vinha de um debate na Faculdade de Teologia da
Universidade Católica sobre a exortação apostólica Evangeili Gaudium,
com a vantagem de a ter lido de fresco e não apenas as frases soltas
mais bombásticas que dela circulam. O documento papal não se dirige a
mim, que sou agnóstico, mas a ele, que se persigna em público. Não sou
nem do episcopado, nem do clero, nem das pessoas consagradas, nem fiel
leigo, os destinatários da exortação. Mas, quando a Igreja se comporta
como uma reserva moral da sociedade, coisa que nem sempre acontece, é
civicamente muito importante que seja ouvida. E neste sentido a Igreja
“arrasa”, outro verbo de que os jornalistas muito gostam, Paulo Portas.
Não
por exercício de interpretação, mas sim em sentido literal. Seria
impossível na Igreja franciscana alguém fazer a pergunta que Portas fez
no contexto do amoralismo que a domina, porque são para quem faz
perguntas daquelas as frases da Evangelii Gaudium:
"Uma
das causas desta situação está na relação estabelecida com o dinheiro,
porque aceitamos pacificamente o seu domínio sobre nós e sobre as nossas
sociedades. A crise financeira que atravessamos faz-nos esquecer que,
na sua origem, há uma crise antropológica profunda: a negação da
primazia do ser humano. Criámos novos ídolos. A adoração do antigo
bezerro de ouro encontrou uma nova e cruel versão no fetichismo do
dinheiro e na ditadura de uma economia sem rosto e sem um objectivo
verdadeiramente humano."
É por isso que a frase de Portas pode
também ser formulada de outras maneiras: o que cria mais emprego? A
prostituição ou Portas? A prostituição. O que cria mais emprego? O crime
ou Portas? O crime. O que cria mais emprego? A corrupção ou Portas? A
corrupção. O que cria mais emprego? A “economia paralela” ou Portas e a
maioria? A economia paralela. O que cria mais empregos? A guerra ou
Portas? A guerra. E por aí adiante. Há dez mil coisas más que criam mais
emprego do que Portas e a maioria, e isso não as justifica.[...]»
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