quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Leituras

Os vistos gold são uma imoralidade (...) digna de país de Terceiro Mundo, onde certos princípios elementares são torpedeados porque é preciso ganhar a vida. Que essa iniciativa tenha nascido numa área partidária que se assume como democrata-cristã, eis a triste ironia de tudo isto. (...) A razão é óbvia: os vistos gold são uma escandalosa violação de um princípio de igualdade que deveria ser sagrado. (...) Nenhum de nós admitiria que direitos fundamentais como a residência ou circulação estivessem dependentes do tamanho da nossa conta bancária. (...) Mas é isso que a Lei 29/2012 permite a cidadãos estrangeiros: comprar o direito a viver em Portugal e a passear pela Europa por 500 mil euros. (...) Pior: três curtos meses depois de a lei ter entrado em vigor (...), os requisitos originais estavam a ser facilitados por despacho: a necessidade de criar postos de trabalho passou de 30 para 10. (...) Chamar aos vistos gold "Autorização de Residência para Actividade de Investimento em Portugal" é apenas um nome pomposo para um processo que pisca os dois olhos à lavagem de dinheiro e onde nunca houve verdadeira "actividade de investimento". (...) Esta é uma lei que se sabia, à partida, ter uma gigantesca probabilidade de atrair dinheiro sujo.»

João Miguel Tavares, O baixo preço da nossa dignidade

«A comercialização de facilidades na emissão de vistos em troca da compra de casas de luxo transforma um acto de soberania num mero negócio. Num país que trata mal os imigrantes e que quase não aceita exilados políticos isto torna-se ainda mais aviltante. Presumindo a inocência dos envolvidos e a seriedade da investigação, sei apenas que a um Estado que institucionaliza a compra de vistos sobra pouca autoridade moral e simbólica para combater os que achem que o cumprimento das suas funções pode ser aligeirado em troca da soma certa de dinheiro.»

Daniel Oliveira, Vistos gold e o espírito de um Estado corrupto

«Na prática, ninguém ainda sabe o que realmente lucrou a economia e o Estado portugueses com o negócio dos vistos dourados. A brochura diz-nos 1.075.749.834,75 de euros, mas as dúvidas agora suscitadas (...) aconselham-nos a ter cautela. (...) Exemplo: escritura-se um imóvel por 500 mil euros (quantia mínima para se obter um visto), mas paga-se apenas 300 mil euros ao vendedor, que na verdade somente recebe 200 mil, dado que os restantes 100 mil euros foram para comissões. No fim da linha, resulta de "ganho oficial" para o Estado os tais 500 mil euros. Embora a vantagem real tenha sido menor. (...) O Estado foi conscientemente enganado pelo próprio Estado. (...) Caindo, no limite, por terra, além da seriedade do projeto, a sua derradeira missão: oxigenar a economia com capital.»

Pedro Ivo Carvalho, Mil milhões de coisa nenhuma?

«Os dados são revelados pela própria Confederação Portuguesa da Construção e do Imobiliário, parte interessada na manutenção dos vistos: 1076 milhões de euros entraram no país em investimento estrangeiro captado pelos vistos "gold", dos quais 972 milhões correspondem a aquisição de imobiliário nacional. Ou seja, os outros 100 milhões foram directamente para transferências bancárias. Pobre país que vende a sua cidadania desempoeirando e escoando as suas casas de 500 mil euros, permitindo negócios obscuros, fuga de capitais e lavagem de dinheiro sem criar um único posto de trabalho. Seguramente, nem habitando as casas ou comprando mobília. Só imobiliário, nada de mobiliário. Pessoas, zero. Só fantasmas e milionários sem rosto absolutamente desinteressados em financiar, investir ou capitalizar empresas.»

Miguel Guedes, Ouro made in China

«A corrupção em Portugal não acontece porque há alguns vígaros que prevaricam; existe e prospera porque há gente que se apropriou indevidamente da democracia e do Estado. (...) Como escrevia o historiador social-democrata Tony Judt: "A desigualdade é corrosiva. Apodrece as sociedades a partir de dentro." (...) Num país cada vez mais injusto do ponto de vista económico, político, social, o que se pede não é que se diga "não sei", mas que as pessoas sejam capazes de mostrar que não querem mais esta situação. Aquilo que sustenta os corruptos é o nosso silêncio e a nossa incapacidade de imaginar uma solução radicalmente diferente da rotatividade contentinha que temos vivido nos últimos 40 anos entre os mesmos grupos de interesses.»

Nuno Ramos de Almeida, Isto é mais um problema de política que de polícia

(Na foto, uma das frágeis embarcações que rumam quotidianamente a Lampedusa, repleta de pessoas em desespero, que fogem da guerra e da miséria para esbarrar, quando as alcançam, nas muralhas da Europa fortaleza. Que não haja confusões: uma coisa são vistos gold e outra são vistos death. Alinhada com a mais desenfreada volúpia neoliberal, a democracia cristã do CDS/PP resume-se hoje a isto. Por mais que se proclame, com infindável cinismo, «ética social na austeridade»)."

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