quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

As cores da violência

GassedImage by danny.hammontree via Flickr


António Campos

Naquela noite saíram como de costume. Um passeio por aí depois de jantar, Lisboa a estrear o Verão, as esplanadas, o sopro indolente do rio e uma bica algures. O dia seguinte é de Santo António, demoram-se na Avenida da Liberdade a ver passar as marchas. Passa das onze e trinta quando apanham o 19 na Alameda, de regresso a casa. Moscavide é longe, o autocarro quase vazio faz das sombras um deserto. Sempre a direito, poucas paragens. Na Rotunda do Relógio entra um grupo de rapazes, dez ou doze. Um em cada porta, os outros no corredor.

A medir o olhar, breves segundos. VÍtor levanta-se sem tempo de proteger o corpo, o som das pancadas antes da dor. Sara vem a seguir. Sobre eles um círculo de raiva, uma sede sem perdão. A partir de agora, cada pessoa no 19 tem uma cor. Ao volante, sem desvios, o condutor, branco, olha em frente no percurso habitual. Junto à janela, um miúdo de headphones, branco, faz-se mais pequeno. Três bancos atrás, um casal de sessenta anos, negro, baixa a cabeça. O grito vem da rapariga de vinte anos. «Parem com isso, eu também sou africana, não vêem que não faz sentido?» É branca. A vez dela vai fazer sangue. Depois é o rapaz dos headphones. Murros e pontapés até cansar, antes do fim. Sinal de parar, o condutor abre as portas. O grupo começa a sair. A lentidão é de ameaça: cá fora, seguram as portas e lançam pedras sobre os passageiros.

Fiel às regras, o funcionário da Carris não cede a desesperos. Por mais que lhe gritem, só carrega no acelerador quando as saídas são libertadas e o grupo se afasta. O resto da viagem faz silêncio. Vítor e Sara só saem em casa. Nada de hospitais, nada de polícia. «Para quê? Aos olhos da polícia somos marginais. Não me espantava que nos dissessem que o nosso aspecto é uma provocação.» Da rapariga que os quis ajudar e do outro rapaz nunca mais souberam. Ainda falaram às televisões, mas não havia sangue suficiente. «Não ligaram nenhuma. Uma das estações queria que fôssemos com eles aos bairros, à procura». De quê? De alguém que dissesse «Skin de merda»? De alguém que jurasse «Vais morrer»? De alguém que vingasse «Um de nós já morreu agora é a vossa vez»? Branco por branco, negro por negro? «Naquela noite não conseguimos dormir.

Ficámos sentados na sala, a tentar compreender. Era fácil tomarmo-nos racistas.» Era fácil não dizer, mas o Vítor e a Sara são brancos. Ele usa o cabelo rapado. «Não tenho nada a ver com os skins.» São professores. A maioria dos alunos são, como dizer? Negros. «Nunca houve problemas.» Agora é diferente? «Saímos cada vez menos, evitamos os transportes públicos, à noite pedimos aos amigos que nos tragam à porta de casa.» Têm amigos negros? «Sim. Claro.» Era fácil não dizer, mas o grupo do autocarro 9 era negro.


Helena Mascarenhas, in Marie Claire, adaptado


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sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

E voltar a nossa vista...para dentro

quiet I'm thinkingImage by Grant MacDonald via Flickr


António Campos

...E voltar a nossa vista, o nosso olhar,
a nossa compreensão das coisas para dentro


“A autonomização tem muito que ver com a separação. Autonomia da criança, quer dizer, é a autonomia do seu funcionamento psíquico. Quando a criança deixa de ter necessidade de ter alguém que funcione mentalmente por ela e já é capaz de discernir por si própria, de ter opiniões suas, de resolver as coisas pela sua própria cabeça, aí há autonomia. Essa autonomia exige necessariamente uma certa distanciação das figuras parentais, das figuras do pai e da mãe (ou de quem fez esse papel), exige não só distanciação, como até separação, sobretudo na puberdade.”

Mas logo na entrada para a escola dá-se uma crise parecida com a crise da puberdade, o problema da separação põe-se logo desde essa altura, e portanto também a necessidade de funcionar autonomamente. A gente vê as crianças pequenas do jardim escola que ainda não têm autonomia, que têm necessidade de andar agarradas à saia da educadora, ou então de mãos dadas com outros meninos, e os jogos que fazem são muito de roda dançada, de dar as mãos e cantar uma coisa, ou fazer jogos numa roda envolvente, em que essa figura maternal que é a educadora está muito presente.

Ao passo que na escola primária as coisas já se passam de maneira diferente. Já há muito maior autonomia, a criança já é capaz de se distanciar da própria professora, embora este continue a desempenhar um papel bastante maternal, mesmo sendo homem. Quer dizer, a escola é sempre bastante maternal, tem alguma coisa de envolvimento maternal, ou digamos mais claramente, a escola tem alguma coisa de envolvimento, e portanto, é maternal.

A recusa do adulto em reconhecer que a tristeza da criança corresponde a recusa do adulto em reconhecer a própria tristeza infantil e até a sua tristeza actual. Quer dizer, ele também foi vítima disso, ele também teve tristezas que teve de esconder, que teve de disfarçar, que teve de resolver de uma certa maneira, porque os adultos, no seu tempo de criança, também já não lhe concediam o direito à sua tristeza, à sua depressão. Porque a depressão conduz a uma reflexão sobre a própria pessoa, sobre o próprio eu, leva-nos a olhar para dentro e a procurarmos ver o que é que se passa dentro de nós.

Enquanto que na paixão, por exemplo, a pessoa está toda voltada para fora e só vê o objecto amado, o objecto do amor. Quando se está apaixonado por uma pessoa, ou por uma ideia, seja lá o que for, a pessoa está voltada para fora. Na depressão, pelo contrário, a pessoa está toda voltada para dentro. E na cultura ocidental nós recusamos muito a depressão, ao contrário do que acontece com os orientais que a aproveitam muito para meditar, para pensar, para reflectir, para atingir o discernimento das coisas. A palavra discernimento significa compreender o sentido. Corresponde mais a descobrir do que propriamente a compreender no sentido racional. E a depressão dá um discernimento, uma compreensão, nesse sentido, de que aliás todos nós nos apercebemos se voltarmos um pouco atrás e virmos como foi a nossa vida. Vemos que os momentos de depressão nos conduziram a modificações importantes na vida.

Muitas vezes há essa reflexão, esse olhar para dentro de que a gente às vezes não se apercebe, de que não damos por isso, mas a verdade é que ele existe, porque a pessoa está voltada para dentro. Nessas alturas, quer seja na adolescência quer seja na idade adulta, está de facto a reflectir sobre todos os seus problemas, os mais íntimos, os mais pessoais e menos voltada para as coisas de fora e para os problemas dos outros. Esse discernimento corresponde mais a um fazer-se luz dentro de nós e portanto a compreendermo-nos melhor através de um fechar de olhos ao que está para fora e voltar o nosso olhar, a nossa compreensão das coisas para dentro.

Isso na infância é fundamental para que a pessoa cresça. A pessoa cresce de facto, desenvolve-se, aperfeiçoa-se à custa desses movimentos de voltar para fora e de voltar para dentro o seu olhar. De uma certa maneira são, movimentos de paixão e movimentos de tristeza. Aliás, muitas vezes a paixão dá lugar a decepções, e isso pode acontecer muito cedo, por exemplo na paixão pelos pais idealizados, numa certa fase da vida, muito infantil. Ainda mesmo antes de entrar para a escola já há ideias nesse sentido de uma idealização muito grande dos pais, que muitas vezes dá lugar a uma decepção, porque os pais afinal não são assim tão amáveis como a criança pensou. A mãe, por exemplo, é-lhe dedicada, mas há momentos em que foge para ir com o pai ao cinema, ou outra coisa qualquer. E nessas alturas a criança sente-se por assim dizer traída, decepcionada.

O mesmo pode acontecer em relação ao pai para quem a criança está muito voltada. Seja do mesmo sexo ou de outro sexo, as coisas não são tão geométricas como às vezes parecem nesta relação de filhos para pais, da menina gostar mais do pai e do menino gostar mais da mãe. De facto há uma certa tendência para que isso seja assim, mas não quer dizer que isso seja em absoluto. O que se sabe é que cada pessoa tem inicialmente só uma mãe, quer seja do sexo masculino ou do feminino, que é o seu primeiro objecto do amor, o primeiro envolvimento que se recebe é de uma mãe, de uma criatura que tem características maternais, que exerce funções maternais, e que em regra é do sexo feminino, mas pode não ser, e que há uma outra pessoa que desempenha funções paternais e que aparece um pouco mais tarde. Funções parentais, quer dizer, funções separadoras desse indivíduo inicial.

E portanto há já uma decepção na altura em que a criança reconhece que aquela figura não é tão amável, não é tão simpática, não é tão tolerante como parecia ao princípio. Este mecanismo de decepção tem a ver com a morte da mãe ou da morte do pai. E a criança pode ter esses pensamentos, porque traz muitas vezes a ideia da situação edipiana. Mas é possível que em nós adultos, ou nas crianças mais crescidas, exista uma ideia de morte, uma raiz, que vem do tempo em que a gente quis ter a mama da mãe para nos matar a fome ou a sede, e ela não está lá, e daí esse ódio terrível por aquela coisa que devia estar lá e não está. E esse ódio, é essa agressividade tão violenta que podia ter sido mais tarde integrada como desejo de morte.

É este o caminho da autonomização da criança… da nossa autonomização, se esses desejos de morte forem atempadamente resolvidos, com as mais diversas formas de amor.

João dos Santos (adaptado)


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quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Jornais e televisões fazem tratamento discriminatório de imigrantes

11. Discrimination.Image by mind on fire via Flickr


António Campos

Os jornais e as televisões portuguesas continuam a fazer um tratamento discriminatório dos imigrantes e das minorias étnicas quando fazem notícia de acontecimentos que os envolvem, de acordo com a Entidade Reguladora para a Comunicação Social.
A Entidade Reguladora para a Comunicação Social, que apresenta hoje um estudo sobre o tratamento dos imigrantes e das minorias étnicas nas notícias, considera que em determinados acontecimentos os jornalistas tendem a infringir regras que estão presentes na constituição, na leis de imprensa e da televisão e no próprio estatuto do jornalista.
O presidente da entidade reguladora, Azeredo Lopes, enuncia uma das situações que suporta esta conclusão.
«A identificação de uma pessoa com base na sua raça, na sua origem geográfica, na sua religião, é para nós inaceitável numa notícia se essa apresentação tiver o efeito de desqualificar grupos de pessoas e não apenas a pessoa envolvida na peça», afirma.
Azeredo Lopes também gostaria que as minorias étnicas fossem notícia pela positiva, mas sublinha que a discriminação não é uma prática generalizada nas redacções, que não justifica por isso uma avaliação negativa.
«Não há casos em grande número que justifiquem uma preocupação excessiva quanto à forma como os nossos media reflectem as comunidades de não nacionais, mas gostava de ver uma dimensão mais positiva», afirma Azeredo Lopes, considerando que deveria ser mostrada uma realidade multicultural da qual «nasce a riqueza das sociedades».

TSF - 15.12.09




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segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Amor e casamento

Love and MarriageImage by Pieter Musterd via Flickr


António Campos

«Porque é que as pessoas se apaixonam e casam? A resposta parece óbvia. O amor
expressa uma atracção física e pessoal que dois indivíduos sentem um pelo outro.
Hoje em dia podemos achar que "o amor não é para sempre", mas pensamos que
"apaixonar-se" deriva de sentimentos e emoções humanas universais. Parece completamente natural que um casal que se apaixona queira viver em conjunto e procure na sua relação uma realização pessoal e sexual.

No entanto esta visão, que parece tão evidente, é na verdade pouco usual. Apaixonar-se não é uma experiência que a maioria das pessoas tenha; e está raramente associada ao casamento. A ideia de amor romântico só se generalizou recentemente no mundo ocidental, e nunca existiu na maioria das outras culturas. Só nos tempos modernos o amor, o casamento e a sexualidade se consideram como estando ligados uns aos outros.

Na Idade Média, e durante séculos depois, as pessoas casavam sobretudo para perpetuar a posse de um título de propriedade de uma família, ou para criar filhos para trabalhar na propriedade da família. Uma vez casados, os indivíduos podem ter-se tomado companheiros próximos; isto aconteceu depois do casamento, e não antes. (...)

O amor romântico surgiu nas cortes como uma característica das aventuras sexuais
extramaritais permitidas entre os membros da aristocracia. Até há dois séculos atrás, estava confinado a esses círculos, e claramente separado do casamento. As relações entre marido e mulher entre os grupos aristocráticos eram frias e distantes. (...)

Entre ricos e pobres, a decisão de casar era tomada pela família e parentes, e não
pelos indivíduos em questão, que tinham pouco ou nada a dizer sobre o assunto.
(Isto ainda acontece em muitas culturas não ocidentais.) Portanto, nem o amor romântico nem a sua associação ao casamento podem ser entendidos como características "dadas" da vida humana, mas como moldadas por influências sociais.»

Anthony Giddens. Sociology. Polity Press. 1989 (adaptado)


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sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Em Portugal castiga-se mais

PunishSpank1903Image via Wikipedia


António Campos

Um investigador belga quis saber o que pensam as crianças sobre as suas famílias. Pediu-lhes que escrevessem sobre o tema. As respostas revelaram que (...) os pais portugueses são os que mais batem. "Tanto, que parece algo quotidiano."
As crianças portuguesas passeiam menos com os pais, ajudam mais nas tarefas agrícolas e mencionam mais vezes castigos corporais. Estas são as principais diferenças entre o que dizem as crianças portuguesas e as espanholas, belgas, francesas e norueguesas que participaram num estudo intitulado "O que pensam as crianças sobre as suas famílias".


Público, 1999-02-05 (adaptado)


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quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Famílias portuguesas poupam menos

DALLAS - JUNE 15: Two-month-old Christian Will...Image by Getty Images via Daylife


António Campos

Depósitos bancários diminuíram nos últimos meses. Ao mesmo tempo, consumidores têm-se contido nos empréstimos, menos para a compra de casa.

Desde Julho, as famílias têm vindo a depositar menos dinheiro, acabando com as subidas consecutivas registadas desde o início da crise. Será devido ao desemprego, admite o Observatório do Endividamento.

Os dados mais recentes do Banco de Portugal mostram que as famílias estão a entregar menos dinheiro à Banca, sob a forma de depósitos. E estão a fazê-lo, todos os meses, desde Julho, depois de mais de um ano de aumentos consecutivos.

Embora seja ainda cedo para se perceber se a diminuição da poupança é passageira ou veio para ficar (só no final do ano se perceberá se a taxa global subiu ou desceu) o facto é que a tendência dos últimos meses se pode ficar a dever ao aumento do consumo, ou à redução da quantidade de dinheiro disponível para guardar.

Catarina Frade, investigadora do Observatório do Endividamento, não tem uma resposta taxativa, mas admite que o aumento do desemprego será uma causa provável para a redução da taxa de poupança. "Se as famílias estivessem a consumir mais, veríamos os indicadores de confiança a melhorar, o que não tem acontecido", justificou.

Qualquer que seja a justificação, contudo, a verdade é que a poupança estava a aumentar mais de 10% por mês, comparando sempre com o mês homólogo, e que nos últimos meses o ritmo abrandou bruscamente. Em Outubro, últimos dados disponíveis, a quantidade de dinheiro depositada pelas famílias tinha crescido apenas 2% face à mesma altura do ano passado. Nesse mês, os bancos geriam 114 mil milhões de euros de depósitos das famílias.

O valor dos depósitos não chega, contudo, para compensar os empréstimos dados às famílias (já para não falar dos concedidos às empresas). Em Outubro, a Banca tinha emprestado aos consumidores um total de 136 mil milhões de euros, a esmagadora maioria dos quais para comprar casa. Portugal é, aliás, um dos países europeus mais endividado para a compra de habitação.

O crédito à habitação foi, de resto, o único a crescer nos últimos meses, ainda que a um ritmo inferior ao tradicional. No consumo, os valores estão estáveis, o que mostra quer a "maior cautela" da parte das famílias quer "restrições mais fortes" à concessão de crédito por parte da Banca, disse Catarina Frade. Tanto que o crédito malparado continua a disparar, no que respeita tanto a empréstimos dados às famílias quanto às empresas.

"É curiosa a maneira como o discurso muda consoante a situação económica", diz Catarina Frade. Durante anos, os portugueses ouviram dizer que estavam a viver acima das possibilidades e a gastar mais do que o que produziam, repetindo-se os apelos à poupança. Mas desde o início da crise, o tom inverteu-se a consumir (para que as empresas tenham quem lhes compre os bens e serviços) passou a ser uma porta de saída para a crise.

Para Catarina Frade, contudo, a grande questão será o mercado de trabalho. "Até a situação das empresas estabilizar, a vida das pessoas vai continuar a piorar. E como já há sinais de recuperação das empresas, poderá haver um aumento das taxas de juro, que vai apanhar as famílias ainda em fase descendente", explicou.

J.N. - 09.12.09

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segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Cultura da pobreza

Young Muslim Girls - Bangkok, city of angelsImage by Sailing "Footprints: Real to Reel" (Ronn ashore) via Flickr


António Campos

A situação de privação em que vivem as pessoas pobres tem múltiplas
consequências. Com o passar do tempo, este contexto de vida vai afectando o pobre em aspectos da sua personalidade. Efeito este tanto mais profundo quanto mais tempo durar (persistência) e mais profunda (intensidade) for a situação de privação.

Modificam-se os hábitos, surgem novos comportamentos, alteram-se os valores,
transforma-se a cultura, ensaiam-se estratégias de sobrevivência, a revolta inicial vai cedendo lugar ao conformismo, vai baixando o nível de aspirações, esbate-se a
capacidade de iniciativa, enfraquece a autoconfiança, modifica-se a rede de relações, ocorre a perda de identidade social e, eventualmente, a perda de identidade pessoal.

Naturalmente, esta não é a história de todos os pobres, mas o percurso a que a
privação profunda e persistente pode levar.

Costa, A. B. (2005) Exclusões Sociais, Viseu, F. Mário Soares, Gradiva (adaptado)

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

O suicídio dos grandes jornais

Front page of the Lancaster Today newspaper, D...Image via Wikipedia


António Campos

Por que será que os jornais impressos enfrentam dificuldades sem precedentes na história das comunicações? Principalmente no Brasil, o que mais se ouve falar é que a crise desses veículos decorre do avanço das novas mídias. Na tentativa de reverter o quadro, muitos diários acabam perdendo ainda mais leitores e assinantes, não lhes restando outra saída senão fechar as portas.

O Monitor Campista, órgão dos Diários Associados com 175 anos de história, é um exemplo disso. O jornal sobreviveu durante décadas graças ao contrato de publicação do Diário Oficial do Município de Campos dos Goytacazes, no Norte fluminense. Como a Justiça decretou o fim da "boquinha" típica dos tempos do velho Chateaubriand, a empresa simplesmente não soube como enfrentar a dura realidade do mercado. Confirmando o ditado, o vício do cachimbo deixou a boca torta.

A indiferença pela análise dos fatos, a ausência de compromissos sociais e o atrelamento a interesses políticos e econômicos contribuem cada vez mais para a derrocada de grande parte dos jornais brasileiros. Simplesmente culpar a internet parece ser uma atitude cômoda, principalmente quando tentam imitá-la em sites de notícias de acesso complicado e que mais parecem colchas de retalhos.

Como escorpiões desesperados

Vale lembrar que o rádio não acabou devido à concorrência da TV e esta não ofuscou o cinema; tampouco reclama da concorrência das novas mídias que assolam o planeta. A radiodifusão se beneficiou das tecnologias para redefinir sua natureza e ressaltar a grande vantagem que tem diante dos novos meios. Nenhum veículo de comunicação de massa consegue ser mais ágil e fácil de acessar que as ondas médias e curtas do velho dial. Isso ficou claro no blecaute que assolou 12 estados brasileiros e parte do território paraguaio. Quando as grandes redes de TV resolveram interromper a programação para noticiar o fato, emissoras de rádio de todo o país já buscavam explicações para o mesmo – tendo a seu favor o popular radinho de pilha.

A televisão, por sua vez, ganhou nova dinâmica com as novas tecnologias, melhorando a qualidade da imagem e buscando a interatividade com os telespectadores. O cinema, que no primeiro momento perdeu público para a TV, passou a produzir séries e longas-metragens para a telinha sem, no entanto, abrir mão das superproduções que só funcionam bem na telona. Hoje, as grandes produções de Hollywood são fartamente divulgadas nos jornais, no rádio, na TV e na internet.

Em vez de se adaptarem às adversidades e tirar proveito de suas particularidades, os jornais impressos insistem nas velhas fórmulas. Seus proprietários e diretores mostram-se incapazes de reagir à concorrência eletrônica com criatividade. Fenômeno semelhante ocorreu com as grandes gravadoras, que simplesmente entraram em pânico diante das novas tecnologias que já nos permitem dispensar o CD. Como escorpiões desesperados na roda de fogo, executivos de jornais antecipam a tragédia como se cometessem suicídio.

Manchetes redundantes

Quem se der ao trabalho de parar diante de uma banca de revistas há de perceber algo de óbvio nas capas dos jornais. Basta um veículo de expressão nacional apontar um caminho para que todos os outros caminhem na mesma direção. Daí a repetição de temas ou mesmo a coincidência de manchetes nem sempre criativas. Publicações regionais ficam de olho nas agências de notícias para não desafinar do diapasão da concorrência. Na tentativa de se tornarem jornais de expressão nacional, ignoram temas locais ou fazem uma cobertura tosca dos fatos que realmente poderiam interessar aos leitores.

As notícias que saem hoje no rádio, na TV e na internet serão manchetes nos jornais de amanhã – e sem nenhum acréscimo analítico ao fato ocorrido.

Falta de visão crítica diante dos grandes acontecimentos, economia a todo custo, demissões de bons profissionais e falta de gente especializada, experiente e contestadora contribuem cada vez mais para a queda de qualidade dos jornais impressos e para a consequente perda de leitores e anunciantes. Com tantos meios de comunicação ao alcance de todos, ainda existem veículos impressos que ignoram fatos relevantes ou manipulam a notícia na ilusão de enganar a opinião pública.

No momento em que a velocidade da informação chega a estressar as novas mídias, publicações impressas teriam a seu favor justamente a possibilidade de analisar a notícia com algum tempo pela frente, aprofundando a reflexão para mostrar os diversos ângulos da realidade. Nenhuma mídia supera a palavra impressa, que tem a seu favor o fato de se perpetuar como documento histórico. Pode-se dizer que, de certa forma, os jornalistas é que escrevem a história.

Chuteiras, em vez de luvas de boxe

Para que isso seja feito, no entanto, seria necessário investir na contratação e na valorização de repórteres e colaboradores éticos e bem-formados, com conhecimentos acima da média. Tal estratégia, no entanto, custaria dinheiro e este vem principalmente dos cofres públicos, por meio de anúncios, matérias pagas, financiamentos, tráfico de influência ou simples atrelamento editorial. Qualquer análise mais aprofundada de certos acontecimentos que interessam aos leitores poderia incomodar o principal anunciante ou parceiro da casa, fechando a torneira de recursos.

Em outras palavras, o estreitamento dos laços com o poder político e econômico fez com que a maioria dos jornais brasileiros perdesse o hábito de pensar e fazer pensar, de cobrar das autoridades em nome da sociedade – sem paixão ideológica e sem que o leitor desconfie das intenções do veículo. Se os brasileiros confiassem plenamente na imprensa, o episódio do mensalão teria resultado numa grande mudança sociopolítica, mas não foi isso o que ocorreu nas últimas eleições. O que dizer, por exemplo, da crise econômica internacional, que acabou mesmo virando "marolinha"? Ou da gripe suína, que ainda mata silenciosamente, mas sobre a qual a imprensa se calou depois do alarde apocalíptico dos primeiros momentos da suposta epidemia? Ou do caso Celso Daniel, que sumiu da mídia sem ser devidamente esclarecido?

O exagero, o sensacionalismo, a espetacularização da notícia e a falta de esclarecimento dos fatos podem até ser compreendidos na televisão ou na internet, principalmente devido à pressa na apuração, ao impacto da imagem em movimento e à constante mudança nas informações. No entanto, pela própria natureza, caberia justamente aos jornais dar a palavra final sobre os grandes temas abordados pela mídia. Ao contrário disso, nossos diários geralmente se deixam levar pela concorrência eletrônica, como quem sobe num ringue de boxe calçando chuteiras, em vez de luvas.

A tentação dos tablóides

Outra saída para a crise dos impressos seria investir nas grandes coberturas, em reportagens especiais e exclusivas sobre temas que possam realmente interessar ao público. Contudo, as empresas de comunicação se distanciaram tanto da notícia que jornalismo investigativo há muito deixou de ser pleonasmo. Esse tipo de trabalho pode custar caro, pois não seria nada ético mandar um repórter viajar sob o patrocínio de terceiros. Mesmo assim, parece comum que alguns profissionais da notícia viajem a convite de empresas, clubes esportivos ou governantes de plantão. Nesse caso, como garantir distanciamento para que se tenha independência crítica nas reportagens?

Na maioria dos grandes jornais, as manchetes de capa quase sempre dizem respeito às editorias de Economia e Política, embora toda pesquisa de opinião demonstre que esses são os temas que menos interessam aos leitores. No entanto, interessam – e muito – aos donos dos jornais, pois é nesse tipo de noticiário que se digladiam os grandes interesses. A prestação de serviços também deixa a desejar, na medida em que se divulga aquilo que é mais do interesse dos veículos – ou dos próprios jornalistas – do que dos leitores. Ainda na tentativa de popularizar os jornais, publicam-se matérias para um suposto público jovem pouco dado à leitura, deixando de atender ao interesse de leitores cativos, hoje considerados velhos e fora de moda.

No momento, empresas que editam grandes jornais se rendem à tentação dos tablóides destinados aos leitores das classes C e D. Esse é o preço que pagam por não terem contribuído de fato na luta contra o analfabetismo e em favor da qualificação do ensino público no país. Até quando esse veio dará ouro, é outra boa pergunta a se fazer. A resposta, certamente, daria outro longo artigo. Diante de tantos equívocos, fica fácil compreender porque é que os grandes jornais agonizam – e seus donos ainda culpam a internet.

Jorge Fernando dos Santos

http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=566JDB00

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A "cumplicidade feminina" como comportamento de género

Woman to Woman album coverImage via Wikipedia


António Campos

Tinha pela primeira vez à minha frente o famoso ToPê, e, na realidade, não era mau. Mas, por qualquer razão, quando as nossas amigas nos falam longamente das suas paixões antes de chegarmos a conhecer o corpo que lhes diz respeito, a expectativa acumulada deixa-nos sempre um sabor a pouco ao confrontarmos horas infindas de liberdade fantasmáticas com o objecto que no início as despoletou. Ou, então, era eu que nessa noite não estava particularmente predisposta para apreciações detalhadas do género, porque o que é certo é que não descansei enquanto o rapaz não se levantou para ir à casa de banho. E só queria que ele se demorasse por lá imenso tempo, que nunca mais voltasse, que, de repente, ninguém estivesse apaixonado por ninguém porque, para variar, desta vez não me interessavam as emoções da Catarina. Precisava dela. Chovia desalmadamente na rua, e eu precisava dela só para mim. E ela sabia. Eu sabia que ela sabia. Tinha visto na minha cara quase tudo o que eu não lhe disse quando desceram os dois do comboio de mãos dadas, numa grande confusão de malas e com o cabaz de vime onde o cão estava a dormir, e nos agarrámos uma à outra na algazarra festiva do costume, até que eu me pendurei do pescoço do ToPê e o beijei calorosamente. Bem-vindo a bordo, pequenino.

- Este é o ToPê - dissera ela.
E pestanejou de uma forma suavemente intencional, mas já não estava a apresentar-me o amante ao fim de longos meses de confidências telefónicas. Estava a medir os sinais mínimos da minha perturbação com todos os sentidos em actividade, e a auscultar, em cada um dos meus gestos, a dimensão do desastre. A Catarina viu-me na plataforma e percebeu no primeiro olhar que afinal não era dela que se tratava, mas atravessado entre nós estava agora um homem de olhos azuis. E gabardine azul, e barba de três dias, o corpo do delito que supostamente nos reunira ali e não podia perceber como de repente era tão importante que qualquer imperativo prosaico o obrigasse a deixar-nos momentaneamente o campo livre. Quando, por fim, o vimos contornar-nos pela direita, incerto e etéreo, inclinámo-nos sobre a mesa numa sincronia perfeita e sorrimo-nos a mensagem cifrada de que o socorro mútuo estava a postos.

- Conta-me tudo - disse ela, e fez-me uma festa na mão.
- Não posso - respondi eu, e apertou-se-me a garganta porque era horrível não poder contar-lhe tudo - Não temos tempo. (...)
- Ai, Catarina - gemi eu de desgosto e solidão, enquanto lá fora o céu de Novembro se desfazia sem fim sobre a cidade e sobre os barcos e as gruas do cais.
- Dói-te muito? - perguntou ela.
- Dói-me tudo - disse eu.»


Clara Pinto Correia, Ponto Pé de Flor. Publicações Dom Quixote, 1994. 8ª edição


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quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Só um em cada cinco tem nível médio de literacia

Literacy class in El AltoImage via Wikipedia


António Campos

Relatório aponta graves deficiências nas competências dos portugueses.

Somente um em cada cinco portugueses possui nível médio de literacia. O que causa prejuízos directos no potencial de desenvolvimento do país. As conclusões constam de um estudo apresentado na Gulbenkian.

Segundo o relatório realizado pela Data Angel, a pedido dos coordenadores do Plano Nacional de Leitura (PNL) e apresentado ontem na Gulbenkian, apenas um em cada cinco portugueses possui o nível médio de literacia. Na Suécia, a correspondência é de quatro em cada cinco suecos.

Literacia é a capacidade de ler e compreender o que se lê para resolver problemas concretos. Esta aptidão em Portugal, refere o relatório, é muito baixa. "Portugal apresenta os níveis mais baixos de competências de literacia de entre todos os países observados", referiu o coordenador do projecto, Scott Murray.

"O conhecimento e as competências das pessoas, quando postos aos serviço da produção, são um forte motor do crescimento económico e do desenvolvimento social". Mas, segundo os dados disponíveis para Portugal, a literacia tem no nosso país "um valor económico reduzido no mercado de trabalho".

"Portugal tem de dedicar muito mais atenção à literacia. As análises do impacto da literacia no desempenho económico durante os últimos 50 anos deixam poucas dúvidas de que o país pagou um preço significativo por não ter aumentado a oferta de competências de literacia ao dispor da economia", aponta o documento.

Por outro lado, continua o estudo, "a exigência em conhecimentos e em competências do mercado de trabalho é baixa, numa perspectiva comparada", e o mercado laboral "não parece compensar as competências de literacia na medida esperada". Os alunos portugueses "têm poucos incentivos para investir tempo e esforço no aumento do seu nível de literacia".

Iniciativas como o Plano Nacional de Leitura ou as Novas Oportunidades são encorajadas, mas Murray sustentou que "são insuficientes".

Convidado a comentar o relatório, o economista João salgueiro contrariou a defesa de mais investimento em Educação. "Se há indicador em que não estamos mal é no volume de recursos que dedicamos à Educação e temos dos piores resultados no desempenho". A causa "está no funcionamento do sistema de Educação e no sistema económico".

A ministra da Educação, Isabel Alçada, apelou para que "toda a sociedade se mobilize para que a melhor oferta de qualificações corresponda a um reconhecimento da parte do tecido empresarial".

J.N. - 03.12.09

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quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Pobreza preocupa mais os portugueses do que as alterações climáticas

Poverty in Colombia.Image via Wikipedia


António Campos

Pobreza, falta de alimentos e de água potável são os principais problemas da actualidade, na opinião dos portugueses, que relegam as alterações climáticas para sexto lugar, depois dos conflitos armados, segundo uma sondagem hoje divulgada em Bruxelas.

No Eurobarómetro sobre atitudes face às alterações climáticas, apenas 28 por cento dos portugueses consideraram que estas são um dos problemas mundiais mais sérios, contra 47 por cento da média europeia (UE27). Três em cada quatro portugueses (75 por cento) responderam que a pobreza e a falta de comida e de água potável são a principal preocupação global actual (69 por cento na UE27).

Segue-se a disseminação de doenças infecciosas, com 39 por cento de respondentes portugueses (32 na UE27), o terrorismo internacional (37 em Portugal, 35 na UE27), uma quebra importante na economia global (31 em Portugal, 39 na UE27), e os conflitos armados (30 em Portugal, 29 na UE27). A proliferação das armas nucleares (11 em PT, 15 na UE27) e o aumento da população mundial (6 por cento em Portugal, 24 na UE27) são as questões menos valorizadas no inquérito.

Na comparação com uma sondagem semelhante feita em Fevereiro, os resultados mostram que o número de portugueses preocupados com as alterações climáticas baixou dois pontos percentuais e a média europeia baixou três. Por outro lado, o número de portugueses que teme a disseminação de uma doença infecciosa subiu 17 pontos, tendência também acompanhada na média europeia, que subiu 14 em relação a Fevereiro.

Já a separação do lixo é a actividade de eleição dos portugueses que dizem agir contra as alterações climáticas, seguindo-se a poupança de energia e de água, segundo o Eurobarómetro hoje divulgado em Bruxelas. Segundo a sondagem, 71 por cento dos portugueses que dizem fazer algo pela luta contra as alterações climáticas separam o lixo, sendo a média europeia (UE27) de 78 por cento. Seguem-se os portugueses que poupam no consumo de energia, desligando o ar condicionado ou o aquecimento, comprando lâmpadas de baixo consumo ou produtos energeticamente eficientes: 55 por cento (63 por cento UE27).

No campo dos transportes, apenas 8 por cento optam por ser amigos do ambiente deslocando-se a pé, de bicicleta ou de transportes públicos (28 na UE27) e só 9 por cento reduziram o uso do automóvel optando, por exemplo, pela partilha de viaturas (24 na EU27). Por outro lado, não foram além dos 4 por cento os que optaram por comprar carros que consomem menos combustível ou que são mais amigos do ambiente (20 na UE27).

A sondagem foi realizada entre 28 de Agosto e 17 de Setembro últimos, tendo sido feitas 26719 entrevistas pessoais em todos os Estados-membros da União Europeia, 1051 das quais em Portugal.

Público.pt - 02.12.09

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Desemprego acima dos 10% atinge 561 mil pessoas

NEW YORK - MARCH 31:  Unemployed people race '...Image by Getty Images via Daylife


António Campos

São já 561 mil os desempregados em Portugal, estima o Eurostat, que aponta para uma taxa de desemprego acima dos dois dígitos. A oposição reagiu ontem aos dados divulgados pelo gabinete estatístico da União Europeia com novas exigências ao Governo. No Parlamento há margem para novos entendimentos que garantam o reforço da protecção social.

O desemprego continua a subir, superou as duas décimas e chegou a 561 mil pessoas em Portugal, estima o Eurostat. Dados não ajustados de sazonalidade - e por isso mais próximos dos que são oficialmente divulgados a nível nacional - apontam para uma taxa de desemprego de 10,3% em Outubro, a quarta maior entre os 16 países da Zona Euro.

Os valores são os mais altos desde, pelo menos, 1983, data de início da série do Eurostat. A estimativa do gabinete de estatísticas europeu para Portugal baseia-se na evolução dos dados enviados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) e nos registos administrativos do Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP).

Não admira, por isso, que os valores relativos aos últimos meses tenham sido revistos em alta - apontando agora para uma taxa de dois dígitos desde Agosto - depois de o INE ter revelado que no terceiro trimestre deste ano o desemprego atingiu 9,8% da população activa. O número de de-sempregados agora divulgado pelo Eurostat está acima do avançado pelo INE para o terceiro trimestre (547,7 mil indivíduos) e muito acima do que foi divulgado pelo IEFP para o mesmo mês de Outubro (517,7 mil).

Em termos ajustados de sazonalidade - ou seja, corrigindo as habituais subidas no Inverno -, a taxa de desemprego é de 10,2% com 558 mil desempregados, revelou o Eurostat. Continuam a ser os valores mais altos de que há registo, e em tendência ascendente, numa altura em que estabilizam na Zona Euro. As mulheres (10,9%) são mais afectadas do que os homens (9,6%) enquanto nos jovens a taxa ajustada de sazonalidade chega aos 18,9%, com quase 90 mil pessoas com menos de 25 anos à procura de trabalho.

Perante os números, a CGTP volta a exigir novas medidas. "Justifica um conjunto de medidas extraordinárias do Governo, desde logo aquela que é prioritária, a alteração da lei, de forma a possibilitar que todos os trabalhadores desempregados tenham acesso ao subsídio de desemprego", disse à agência Lusa Arménio Carlos. O dirigente da CGTP considera que os números "confirmam o falhanço" das medidas anunciadas pelo Governo para combater o desemprego e pede uma "avaliação" das que já foram implementadas.

Também a oposição pressiona no sentido da aprovação de novas medidas. No Parlamento há já novos acordos à vista (ver texto em baixo).

Os dados não ajustados de sazonalidade apontam para mais 5,2 milhões de desempregados na União Europeia no espaço de um ano, 3,3 milhões dos quais na Zona Euro. A taxa de desemprego é mais elevada na Letónia (20,3%), mas é em Espanha que os números absolutos são mais expressivos. Um em cada quatro novos desempregados europeus estão no país vizinho, onde a taxa de desemprego chegou aos 18,9% (19,3% quando ajustada de sazonalidade).

A tendência de aumento do desemprego é generalizada na Europa. Mas a explosão do desemprego não é uma inevitabilidade em todos os países europeus. Na Áustria e na Holanda, a taxa ainda está abaixo dos 5%.

CATARINA ALMEIDA PEREIRA

D.N. 02.12.09


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segunda-feira, 30 de novembro de 2009

A violência na família

family violence.3Image by ahhhhmen via Flickr


António Campos

Porque é que a violência doméstica é tão banal? Há um conjunto de factores envolvidos. Um deles reside na combinação entre a intensidade emocional e a intimidade pessoal características da vida familiar. Os laços familiares estão normalmente impregnados de emoções fortes, que misturam frequentemente amor e ódio. As desavenças que ocorrem no contexto doméstico podem libertar antagonismos que não seriam sentidos da mesma forma noutros contextos sociais.(...)

Uma segunda influência reside no facto de se tolerar e até mesmo aprovar um certo grau de violência no seio da família. Embora a violência familiar socialmente aprovada seja de natureza relativamente limitada, pode facilmente degenerar em formas mais severas de agressão. Haverá poucas crianças na Grã-Bretanha que nunca tenham levado uma bofetada ou apanhado uma tareia - mesmo que leve - de um dos seus progenitores. Estas acções gozam frequentemente da aprovação dos outros e provavelmente não são sequer reconhecidas como "violência". Embora menos explícita, existe (ou existiu no passado) também uma aprovação social da violência entre esposos.

A família é habitualmente descrita com um espaço de afecto, de partilha e de segurança para os seus elementos. No entanto, pode acontecer precisamente o oposto. Alguns estudos mostram que é mais provável uma ser agredida pelo marido em casa do que por um estranho na rua. A intimidade, a proximidade, o elevado grau de expectativas e a impossibilidade de as extravasar, a agressividade em contextos públicos, tornam o lar no palco principal de manifestações e maus-tratos físicos e psicológicos.

As formas mais comuns da violência no seio da família são a agressão da mulher por parte do marido e a violência contra as crianças por parte dos adultos (homens e mulheres). Porque acontece na esfera privada, este tipo de violência tem duas características complementares: é ou foi socialmente tolerada e não tem, ou não teve há alguns anos atrás, grande visibilidade a nível público.

A violência na família pode ter causas externas, como o consumo de álcool e/ou de drogas que propiciam comportamentos violentos. Mas também tem causas internas, que estão ligadas à estrutura do poder entre os elementos da família. As desigualdades sociais e económicas verificadas na sociedade são absorvidas pela família: o homem tem poder sobre a mulher e os adultos têm poder sobre as crianças. Trata-se, portanto, de um fenómeno com raízes estruturais a nível social. A dominação masculina sobre a mulher teve inclusivamente um enquadramento legal em Portugal até 1974, pelo que era socialmente aceite - inclusive pelas próprias mulheres - que os maridos fossem agressivos.

Os maus tratos contra a mulher podem incluir o espancamento, a injúria e a violação. Os maus tratos da mulher contra o homem também são uma realidade, mas têm uma ocorrência residual face à situação oposta e assumem predominantemente a forma de violência psicológica.

As denúncias de violência doméstica em 2005, junto da PSP e da GNR, aumentaram 17% em relação a 2004. No total, foram recebidas 178 novas queixas, sobretudo de mulheres maltratadas pelos companheiros. A partir destas denúncias, a PSP procedeu a um total de 249 detenções, quatro vezes mais do que no ano anterior. A GNR não divulgou o número de detenções.

Os responsáveis daquelas forças policiais, que congregam a quase totalidade das denúncias de violência doméstica, explicam o aumento pela "crescente sensibilização para esta problemática", não só da sociedade civil como dos próprios agentes. (...)

Mas, apesar do aumento das denúncias e de o crime de violência doméstica ser público desde 2000, "o certo, é que continuam a ser muito poucos os casos que chegaram ao fim do julgamento", sublinha Elza Pais, presidente da Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres e da Estrutura de Missão Contra a Violência Doméstica.

As vítimas são sobretudo mulheres, facto que é mais visível fora dos centros urbanos. (...) É o resultado do "enraizamento sociocultural da desigualdade de género", explica Elza Pais, e "que se tem transmitido de geração em geração".
As segundas vítimas de violência doméstica são as crianças. A GNR identificou 382 menores agredidos, mais 21% do que em 2004; a PSP registou 302 indivíduos com menos de 16 anos, menos 23 do que em 2004.

Anthony Giddens e Diário de Notícias, 2006-02-16 (adaptado)


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sexta-feira, 27 de novembro de 2009

A selecção social no trajecto escolar

Slow march to a social revolutionImage by Pandiyan via Flickr


António Campos

Mais de um terço dos estudantes (36,2%) que, em 2008, entraram para o 10º ano possuíam já um nível de qualificação mais elevado que o dos seus pais. E outros 23,9% estavam a caminho de alcançar esta meta, ou seja, cerca de dois terços dos jovens que se encontravam à entrada do ensino secundário já tinham ultrapassado ou estavam prestes a ultrapassar os seus familiares, revela um estudo (...) divulgado pelo Ministério da Educação.

Estes dados dão conta de "um processo intergeracional de aumento das qualificações", frisa-se no estudo desenvolvido pelo Observatório de Trajectos dos Estudantes do Ensino Secundário, com base em inquéritos a 46 175 alunos do 10º ano ou equivalente (correspondente a 44% do universo de alunos). Não são dados que surpreendam face ao cenário de base de Portugal. Ainda no Censos de 2001 eram identificados 10% de analfabetos e dava-se conta de que apenas 15% da população tinha então concluído o ensino secundário. Entre os jovens agora inquiridos, 21,6% têm pais com o secundário completo. Com o superior, a percentagem desce para 18,3 %.

Mas o progresso entretanto registado entre os jovens continua a ser marcado por "processos de selecção social", adverte-se. Por um lado, à entrada do ensino secundário - e, portanto, quando já está ultrapassada a escolaridade obrigatória -, verifica-se "um peso expressivo de alunos oriundos de famílias com recursos escolares e profissões com estatuto socioeconómico elevado". Por outro, o maior ou menor sucesso aparece muito associado à "linhagem".

As diferenças são ainda esmagadoras: os jovens inquiridos "que têm mais frequentemente trajectos escolares marcados por um elevado desempenho escolar [65,8%] são oriundos de famílias vinculadas a profissões altamente qualificadas". Aquela percentagem desce para 37,9% entre os estudantes oriundos de famílias operárias.

Público, 2009-01-14 (adaptado)


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segunda-feira, 23 de novembro de 2009

As formas de ruptura conjugal

Dimmi quando senti il mio silenzio, c’è una po...Image by Ca(non) via Flickr


António Campos

Há diferentes formas de viver a ruptura conjugal - o que ao nível psíquico e individual pode ser considerado "Como um momento emocional, sempre complexo e doloroso, é ao nível sociológico uma realidade vivida em formas muito distintas, distinções estas articuladas a certas regularidades sociais.

Distinguiram-se três grandes grupos de divorciados. No primeiro, que se designou por divórcio-desencontro, incluíram-se os entrevistados que consideravam o divórcio como tendo origem num problema de relação - no seu progressivo esgotamento ou no lento desgaste do vínculo afectivo e amoroso que tinha estado presente no seu início. Aqui, a ruptura conjugal aparece como a afirmação de uma recusa - a de viver sem bem-estar individual e/ou harmonia conjugal - e de uma esperança - a de reencontrar essa felicidade ou esse bem-estar noutro contexto conjugal ou relacional. O divórcio surge como um direito individual a ser accionado (embora como mal necessário) porque é do bem-estar do indivíduo que depende a harmonia do casal e depois da família.

A ausência de responsabilidade, desacompanhamento em relação à família, falta de assistência são algumas das razões dominantes apontadas por um segundo grupo de divorciados para justificar o seu processo de divórcio: o divórcio-culpa do outro. Só que, ao contrário do grupo anterior, são fundamentalmente as mulheres que enunciam este discurso, tenham ou não tomado a iniciativa do divórcio. Os homens acabam por confirmar algumas das práticas de que elas os acusam: menor atenção à família, violência, álcool. O divórcio aparece explicado pelas mulheres pela inadequação dos ex-cônjuges ao papel que deles era esperado, pela sua ausência de sentido de responsabilidade. Os elementos de natureza afectiva não entram como factor explicativo para o fim da relação, a não ser como consequência das características negativas da personalidade do outro.

Fatalidade, destino, amantes - palavras recorrentes nas entrevistas de mulheres separadas que se incluíram num terceiro tipo de divórcio - o divórcio fatalidade. A ruptura conjugal aparece para estas mulheres como algo completamente inesperado, para o qual não pode ser procurada outra explicação pertinente senão a da interferência de algum desígnio do destino. Para os homens esta percepção de "fatalidade" é muito menos acentuada. O divórcio é assim uma "experiência" vivida e sofrida de forma desigual desde o início do processo até às consequências em matéria de recomposição familiar. O contexto social, o sexo, as formas de conjugalidade podem transformar o que uns sofrem como destino em iniciativa libertadora para outros.

Anália Cardoso Torres, "Fatalidade, culpa, desencontro - Formas de ruptura conjugal" in Sociologia - Problemas e Práticas, 1992 (adaptado)

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Alguns novos movimentos sociais

Police trying to encounter the demonstrators a...Image by Farfahinne via Flickr


António Campos

Na actualidade, têm surgido grandes movimentos que contestam a ordem
tradicional das classes e dos estatutos, das relações entre países ricos e países pobres, da reivindicação da liberdade pessoal, etc. Mas, no campo dos comportamentos sexuais, a transformação tem sido mais lenta e difícil. Ainda hoje, quando se fala de desigualdades sexuais ou de diferença, sempre se pensa que é nas características fisiológicas (ou do inconsciente) que tudo assenta. Isto é, na natureza e não na sociedade.

Deve-se ao movimento feminista - como movimento social e teoria crítica da
sociedade - a introdução da questão da construção social do género. O movimento gay (homossexual) segue-lhe as pegadas, questionando, junto com as feministas, a
superioridade masculina, mas acrescentando a crítica ao suposto fundamento natural da heterossexualidade.

Ao inventarem a designação gay, os homossexuais criaram uma identidade social,
sem deixarem que outrem os catalogasse. Esta autodesignação implicou uma ideia: a da sexualidade com qualidade ou propriedade do Eu. Ao mesmo tempo, tanto as
mulheres como os homens gays adiantaram-se aos heterossexuais no desenvolvimento de relações afectivas e/ou sexuais de um tipo novo, porque tiveram de as construir sem os enquadramentos tradicionais do casamento. A sexualidade é algo que, hoje em dia, cada um de nós tem ou cultiva, e já não é uma condição natural.


Almeida, M. V. (2004) Outros destinos, Porto, Campo das Letras (adaptado)



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segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Representação social juvenil

Too much too youngImage by Walt Jabsco via Flickr


António Campos

O campo da juventude é hoje alvo das maiores atenções por parte das sociedades,
tendo a sua importância vindo a aumentar de tal forma que praticamente todas as
entidades, públicas ou privadas, possuem os seus programas ou linhas de produtos
destinados à juventude.
Estruturou-se, em torno da juventude, um conjunto de representações que
sobrevaloriza um leque de atributos supostamente naturais, sendo a pressão tão
grande que é frequente em certas esferas só existirem actividades destinadas a jovens.
A chamada «cultura jovem», misto de práticas de sociabilidade e de consumo,
representações e valores «típicos» desses estratos etários, combinando elementos
originários dos processos de socialização na família, escola, grupos de pares e meios de comunicação social, tornou-se hoje um elemento central nas sociedades
industrializadas.

Sebastião, J. (1998) (adaptado)


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sexta-feira, 13 de novembro de 2009

A velhice nas sociedades modernas

old people enjoying the music at Xihu (Hangzhou)Image by whitecat singapore via Flickr


António Campos

A institucionalização dos sistemas de reformas é o primeiro passo para a autonomia económica dos mais velhos e a emergência da velhice enquanto categoria social. A velhice pensionada é uma situação nova nas sociedades desenvolvidas, e envolve alterações e inovações nos modos de vida das gerações mais velhas.

A emergência da velhice, enquanto problema social, está fortemente relacionada com a institucionalização das reformas. Mas não só. As alterações ao nível da estrutura das relações familiares nas sociedades ocidentais contribuíram também para que se agravasse o problema social da velhice. A solidariedade natural entre gerações, espécie de seguro de vida apostado na geração seguinte, parece estar comprometida por transformações sociais desencadeadas ao longo do século XX. A desfamilização das relações familiares, isto é, o desmoronamento das bases sociais em que assentava o familismo tradicional, interfere na forma como se relacionam pais e filhos e se transmite o património.

Mas a persistência de solidariedades que não deixou de se manifestar na entreajuda entre pais e filhos contraria a visão catastrófica de isolamento da família nuclear nas sociedades urbanas desenvolvidas.

A noção corrente de velhice e envelhecimento negligencia as transformações demográficas mais recentes resultantes da conquista de anos de vida que prolongam a sobrevivência e afectam a constituição e os calendários das fases em que se repartem as biografias.

Contraditoriamente a actual organização económica das sociedades modernas tem contribuído para tornar obsoleto o trabalho dos mais velhos que são precocemente atirados para uma inactividade pensionada. Vive-se durante mais tempo, com mais saúde e vitalidade e fica-se reformado mais cedo.

A circunstância de, nos nossos dias, se conjugarem um envelhecimento demográfico em franco crescimento e um Estado-Providência, cujas competências tendem a expandir-se, favoreceu a importância e a abrangência das políticas sociais de velhice. Estas, de modo geral, têm por objectivos intervir publicamente no sentido de contrariar as tendências de solidão, isolamento e carências várias para que foram sendo remetidas as gerações mais velhas. Afastados dos circuitos de produção, afastados da família, restava-lhes a solidariedade pública.

As políticas sociais têm promovido o aparecimento de equipamentos e produtos vários cujo usufruto é destinado apenas a uma categoria de idades, os idosos. Os pressupostos em que se baseiam, a agregação de pessoas acima de uma certa idade e a homogeneidade dentro desta categoria têm contribuído, ainda que de forma indirecta, para reforçar a segregação que se pretendia à partida contrariar e acentuar os contornos da imagem de velhice enquanto categoria carenciada e segregada. As práticas dos agentes sociais encarregues da gestão pública da velhice e as representações que veiculam têm vindo, também, a reforçar esse estado de segregação.

Os benefícios e os efeitos perversos inerentes à implementação de políticas sociais para a velhice começam a ser visíveis na sociedade portuguesa e, com mais acuidade, em sociedades onde as políticas sociais foram implementadas há mais tempo.

Ana Alexandre Fernandes, in Velhice e Sociedade, (adaptado)


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segunda-feira, 9 de novembro de 2009

...E voltar a nossa vista, o nosso olhar, a nossa compreensão das coisas para dentro

anthony loves children :-)Image by laihiu via Flickr


António Campos

“A autonomização tem muito que ver com a separação. Autonomia da criança, quer dizer, é a autonomia do seu funcionamento psíquico. Quando a criança deixa de ter necessidade de ter alguém que funcione mentalmente por ela e já é capaz de discernir por si própria, de ter opiniões suas, de resolver as coisas pela sua própria cabeça, aí há autonomia. Essa autonomia exige necessariamente uma certa distanciação das figuras parentais, das figuras do pai e da mãe (ou de quem fez esse papel), exige não só distanciação, como até separação, sobretudo na puberdade.”

Mas logo na entrada para a escola dá-se uma crise parecida com a crise da puberdade, o problema da separação põe-se logo desde essa altura, e portanto também a necessidade de funcionar autonomamente. A gente vê as crianças pequenas do jardim escola que ainda não têm autonomia, que têm necessidade de andar agarradas à saia da educadora, ou então de mãos dadas com outros meninos, e os jogos que fazem são muito de roda dançada, de dar as mãos e cantar uma coisa, ou fazer jogos numa roda envolvente, em que essa figura maternal que é a educadora está muito presente.

Ao passo que na escola primária as coisas já se passam de maneira diferente. Já há muito maior autonomia, a criança já é capaz de se distanciar da própria professora, embora este continue a desempenhar um papel bastante maternal, mesmo sendo homem. Quer dizer, a escola é sempre bastante maternal, tem alguma coisa de envolvimento maternal, ou digamos mais claramente, a escola tem alguma coisa de envolvimento, e portanto, é maternal.

A recusa do adulto em reconhecer que a tristeza da criança corresponde a recusa do adulto em reconhecer a própria tristeza infantil e até a sua tristeza actual. Quer dizer, ele também foi vítima disso, ele também teve tristezas que teve de esconder, que teve de disfarçar, que teve de resolver de uma certa maneira, porque os adultos, no seu tempo de criança, também já não lhe concediam o direito à sua tristeza, à sua depressão. Porque a depressão conduz a uma reflexão sobre a própria pessoa, sobre o próprio eu, leva-nos a olhar para dentro e a procurarmos ver o que é que se passa dentro de nós.

Enquanto que na paixão, por exemplo, a pessoa está toda voltada para fora e só vê o objecto amado, o objecto do amor. Quando se está apaixonado por uma pessoa, ou por uma ideia, seja lá o que for, a pessoa está voltada para fora. Na depressão, pelo contrário, a pessoa está toda voltada para dentro. E na cultura ocidental nós recusamos muito a depressão, ao contrário do que acontece com os orientais que a aproveitam muito para meditar, para pensar, para reflectir, para atingir o discernimento das coisas. A palavra discernimento significa compreender o sentido. Corresponde mais a descobrir do que propriamente a compreender no sentido racional. E a depressão dá um discernimento, uma compreensão, nesse sentido, de que aliás todos nós nos apercebemos se voltarmos um pouco atrás e virmos como foi a nossa vida. Vemos que os momentos de depressão nos conduziram a modificações importantes na vida.

Muitas vezes há essa reflexão, esse olhar para dentro de que a gente às vezes não se apercebe, de que não damos por isso, mas a verdade é que ele existe, porque a pessoa está voltada para dentro. Nessas alturas, quer seja na adolescência quer seja na idade adulta, está de facto a reflectir sobre todos os seus problemas, os mais íntimos, os mais pessoais e menos voltada para as coisas de fora e para os problemas dos outros. Esse discernimento corresponde mais a um fazer-se luz dentro de nós e portanto a compreendermo-nos melhor através de um fechar de olhos ao que está para fora e voltar o nosso olhar, a nossa compreensão das coisas para dentro.

Isso na infância é fundamental para que a pessoa cresça. A pessoa cresce de facto, desenvolve-se, aperfeiçoa-se à custa desses movimentos de voltar para fora e de voltar para dentro o seu olhar. De uma certa maneira são, movimentos de paixão e movimentos de tristeza. Aliás, muitas vezes a paixão dá lugar a decepções, e isso pode acontecer muito cedo, por exemplo na paixão pelos pais idealizados, numa certa fase da vida, muito infantil. Ainda mesmo antes de entrar para a escola já há ideias nesse sentido de uma idealização muito grande dos pais, que muitas vezes dá lugar a uma decepção, porque os pais afinal não são assim tão amáveis como a criança pensou. A mãe, por exemplo, é-lhe dedicada, mas há momentos em que foge para ir com o pai ao cinema, ou outra coisa qualquer. E nessas alturas a criança sente-se por assim dizer traída, decepcionada.

O mesmo pode acontecer em relação ao pai para quem a criança está muito voltada. Seja do mesmo sexo ou de outro sexo, as coisas não são tão geométricas como às vezes parecem nesta relação de filhos para pais, da menina gostar mais do pai e do menino gostar mais da mãe. De facto há uma certa tendência para que isso seja assim, mas não quer dizer que isso seja em absoluto. O que se sabe é que cada pessoa tem inicialmente só uma mãe, quer seja do sexo masculino ou do feminino, que é o seu primeiro objecto do amor, o primeiro envolvimento que se recebe é de uma mãe, de uma criatura que tem características maternais, que exerce funções maternais, e que em regra é do sexo feminino, mas pode não ser, e que há uma outra pessoa que desempenha funções paternais e que aparece um pouco mais tarde. Funções parentais, quer dizer, funções separadoras desse indivíduo inicial.

E portanto há já uma decepção na altura em que a criança reconhece que aquela figura não é tão amável, não é tão simpática, não é tão tolerante como parecia ao princípio. Este mecanismo de decepção tem a ver com a morte da mãe ou da morte do pai. E a criança pode ter esses pensamentos, porque traz muitas vezes a ideia da situação edipiana. Mas é possível que em nós adultos, ou nas crianças mais crescidas, exista uma ideia de morte, uma raiz, que vem do tempo em que a gente quis ter a mama da mãe para nos matar a fome ou a sede, e ela não está lá, e daí esse ódio terrível por aquela coisa que devia estar lá e não está. E esse ódio, é essa agressividade tão violenta que podia ter sido mais tarde integrada como desejo de morte.

É este o caminho da autonomização da criança… da nossa autonomização, se esses desejos de morte forem atempadamente resolvidos, com as mais diversas formas de amor.

João dos Santos (adaptado)


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sexta-feira, 6 de novembro de 2009

A velhice nas sociedades tradicionais

PortugalImage via Wikipedia


António Campos

Na maior parte das sociedades tradicionais, as gerações mais velhas permanecem integradas nos sistemas económicos e sociais de produção praticamente até à morte. Partilham tarefas e desempenham funções ainda que as dificuldades comecem gradualmente a surgir e se vão atenuando as responsabilidades e incumbências à medida que diminuem as capacidades físicas.

À medida que caminhamos para os nossos dias a situação de velhice, enquanto condição social reconhecida, emerge e destaca-se no ciclo de vida. A passagem do século XIX para o século xx, a par com alterações económicas e sociais profundas, coincide com a transição demográfica (fenómeno que representa a mudança de um regime demográfico com altas taxas de mortalidade e de natalidade para um outro em que a mortalidade e a natalidade se voltam a equilibrar, mas a níveis muito mais baixos).

Esta alteração do regime demográfico proporcionou às populações dos nossos dias o benefício de um substancial aumento da esperança de vida. Mas o acentuado declínio da fecundidade acarretou um gradual envelhecimento das populações. Os idosos, na acepção demo gráfica, classe de idade das pessoas com mais de 65 anos, não só tendem a ser proporcionalmente em maior número como vivem durante mais tempo, o que significa que pequenos aumentos da esperança de vida não agravam o aumento da população idosa.

Por si, o aumento proporcional de pessoas idosas poderia não vir a constituir-se um problema social apesar de a velhice representar a fase da vida em que as capacidades e resistências físicas vão gradualmente diminuindo. E, embora em certas situações de maior precariedade económica os velhos possam representar uma sobrecarga - ainda que tenhamos que atender à diversidade de estruturas familiares possíveis de reconstituir nos vários complexos histórico-geográficos -, podemos afirmar, sem incorrer em grandes imprecisões, que, nas sociedades ocidentais europeias pré-industriais, a redução da capacidade produtiva do idoso se diluía no conjunto das trocas que se efectuavam entre os elementos do grupo doméstico. Tal capacidade era, em parte, compensada pelo valor da experiência acumulada, fonte de saber a transmitir aos mais novos.

Ocorre, porém, que o aumento da duração média de vida desvalorizou a longevidade de outros tempos, em que a experiência era a base do saber. Por sua vez, o conhecimento em constante desenvolvimento deixou de assentar na simples acumulação resultante da vivência e os mais velhos deixaram de ter o papel de conselheiros sapientes que tradicionalmente foram desempenhando. Nestas condições, e apesar das transformações referidas, o simples aumento de pessoas idosas poderia, ainda assim, não constituir"só por si, um problema social.

A velhice poderia ter outras implicações se os idosos permanecessem a cargo das famílias respectivas, nas sociedades tradicionais, entre os camponeses ou entre as burguesias mais urbanas. Nestes casos, os problemas da velhice eram problemas individuais e sobre eles se fechava o espaço privado da casa e da família. As trocas desenrolavam-se entre as gerações, mas apenas no âmbito estrito das relações familiares. Assim, a velhice surgia publicamente identificada com pobreza, indigência ou doença. Dela se encarregavam as instituições hospitalares e de beneficência.

Esta velhice é ainda uma velhice invisível, que é a situação dominante até meados deste século. Cada um deveria prever os seus dias de velhice, que não eram então muito longos, e essa previsão assentava fundamentalmente no sistema de trocas que se estabeleciam entre as gerações dentro do grupo familiar ou doméstico. Para resolver as situações extremas intervinham as instituições de beneficência social.

Durante o século XIX e o inicio do século XX a velhice permanece invisível porque adquire as formas e os contornos, extremamente contrastados, dos patrimónios familiares, surgindo publicamente apenas as situações de maior penúria, que eram socialmente identificadas com a pobreza. A posse de propriedade era a garantia de uma velhice segura, mas também um assunto de âmbito estritamente familiar. Fora da família a velhice era confundida com mendicidade e invalidez e socorrida da mesma forma que estas pelas instituições de beneficia.



Ana Alexandre Fernandes, in Velhice e Sociedade (adaptado)





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segunda-feira, 2 de novembro de 2009

A decadência da ética

Q magazine Madonna Out side Rodrigo Sá praia B...Image by Rodrigo Sá via Flickr


António Campos

A evolução moral e ética do brasileiro apresenta-se com uma dinâmica assaz interessante, merecedora de estudo profundo por parte dos filósofos, pedagogos e outros profissionais dedicados às ciências humanas. Lembro-me que nos meus áureos tempos de juventude, ministrava-se nas escolas uma disciplina chamada Educação moral e Cívica, dando parâmetros positivos a serem seguidos pelos jovens alunos. Estávamos então, em plena ditadura militar, por volta dos anos 60.

Tínhamos grande respeito pelos nossos professores e acreditávamos que o nosso país a cada dia buscava desenvolver-se. Estávamos e estamos em um processo evolutivo em busca de nossa independência moral, cívica, social, económica e intelectual. Eram jovens com a consciência política em fase de desenvolvimento e buscavam realizar o sonho de ver o país livre do Governo de Excepção, para instalar a Democracia que é o Regime das consciências livres. Sabiam que os homens que dirigiam a política buscavam à sua maneira, o que achavam ser o melhor para o Brasil, um país com milhões de analfabetos.

A ética e a moral estavam fora de cogitações. Estamos no século XXI, quarenta e sete anos depois. O regime é o democrático onde temos liberdade de expressão. Temos o direito de fazer greves, de protestar contra o governo, reivindicar melhoras para a educação, saúde, segurança e etc. Elegemos os nossos governantes, porém, apesar de todo esse avanço há uma carência de moral e ética, principalmente dos políticos escolhidos por nós.

Abrimos diariamente os jornais e somos bombardeados com manchetes que envergonham qualquer cidadão de bem. São notícias que envolvem, não um "Zé ninguém", mais autoridades políticas que se aproveitam dos seus cargos para se locupletarem atendendo a seus apetites vorazes, gananciosos, egoístas e esquecem que estão ali representando o povo brasileiro e em seu nome governam.

São desvios de dinheiro, lobistas pagando contas particulares de senador; Presidente de Comissão de Ética respondendo inquérito por desvio de dinheiro; deputado sendo preso por formação de quadrilha; e pasmem os senhores, Ministro do Supremo Tribunal sendo acusado de receber propina para dar um parecer Jurídico, È vergonhoso! Humilhante!

Quando esperávamos desfrutar de um período em que o convívio humano tivesse como base a harmonia, o respeito, a probidade e a excelência da ética. Vemos justamente o contrário. As pessoas que representam a elite do nosso país, que têm fácil acesso a educação, aos avanços tecnológicos e aos melhores salários, são os primeiros a servirem de exemplo negativo. Pergunto, por que esse retrocesso ético? O que está nos levando a praticar actos contrários a linha de evolução ética que vínhamos trilhando?

Não poderá o mesmo perguntar-se em relação a Portugal?

Eduardo P. Almeida, 2007(adaptado)

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sexta-feira, 30 de outubro de 2009

A diversidade cultural

ASB Polyfest 2008 Mangere College Cook Island ...Image by Richard Sihamau via Flickr


António Campos

O homem recebe do meio, em primeiro lugar, a definição do bom e do mau, do
confortável e do desconfortável. Deste modo, os Chineses preferem os ovos podres e os Oceânicos o peixe em decomposição. Para dormir, os Pigmeus procuram a incómoda forquilha de madeira e os Japoneses deitam a cabeça em duro cepo.

O homem recebe assim, do seu meio cultural, um modo de viver e de pensar. No Japão considera-se delicado julgar os homens muito mais velhos do que parecem. Demonstrou-se que a percepção das cores, dos movimentos ou dos sons está orientada e estruturada de acordo com o modo de existência.

O homem também retira do meio as atitudes afectivas típicas. Entre os Maoris, onde se chora à vontade, as lágrimas correm só no regresso dos viajantes e não à sua partida. Nos Esquimós, que praticam a hospitalidade conjugal, o ciúme desapareceu, tal como na Samoa; em compensação a morte de um inimigo pessoal aceita-se como um acto normal, ao passo que a guerra surge como um cúmulo do absurdo; a morte não parece cruel, os velhos aceitam-na como um benefício e todos se alegram por eles. (...)

A piedade para com os velhos varia consoante os lugares e as condições económicas e sociais: alguns índios da Califórnia estrangulam-nos, outros abandonam-nos nas estradas. O amor e o cuidado da mãe pelos filhos desapareceram nas ilhas do estreito de Torres e nas ilhas Andaman, em que o filho ou a filha são oferecidos de boa vontade aos hóspedes da família como presente ou aos vizinhos em sinal de amizade.

A sensibilidade a que chamamos "masculina" pode ser, de resto, uma característica "feminina", como nos Tchambuli, por exemplo, em que na família é a mulher que assume a direcção e domina.

Malson, Lucien, As crianças selvagens (adaptado)






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sexta-feira, 23 de outubro de 2009

A cultura do medíocre

iLeopardDayImage by Imagine24 via Flickr


António Campos

A par de uma escola cada vez mais informativa e menos formativa caminham os mass media, com especial relevo para essa caixinha mágica chamada televisão. Os notáveis avanços trazidos pela televisão são, hoje, cada vez mais pervertidos, paradoxalmente, pela qualidade dos programas e pelo conteúdo das mensagens transmitidas.

A televisão de hoje, pautada por guerras de audiências, nada mais é do que um repositório de vulgaridades, de mau gosto e de violência. Não sou dos que acham que televisão deve traduzir os gostos mais selectivos de uma elite reduzida. A televisão deve ter um componente informativo, formativo, de entretenimento, de prazer. A televisão deve ser construída a pensar em todos os tipos de audiências. Das mais diferenciadas às menos diferenciadas. (...)

A vulgaridade e a ordinarice mais primária de que alguns dos nossos principais comediantes usam e abusam é também reflexo dos tempos que correm. O sensacionalismo fácil de manchete, a difamação fácil e o boato escorreito, o atentado ao bom nome, fazem parte do quotidiano de grande parte dos mass media. Mas não se pense que são só os mass media os principais culpados de toda esta situação. (...) É, pois, paradoxal como é que exigimos e investimos cada vez mais em educação, e cada vez mais temos uma cultura rasca.

A sociedade de hoje é, cada vez mais, uma sociedade com mais informação, e menos informada. Com mais escolaridade, e com menos educação. Com menos analfabetos, e mais aculturados. Com mais livros, e com menos leitores. Com mais meios, e mais mal utilizados. O rasca, o medíocre, ganhou estatuto. Nos dias de hoje, é ponto assente que, quanto pior, melhor. Quanto mais medíocre, mais divulgado.

O reflexo desta cultura, deste modo de estar, desta forma de a sociedade se relacionar, terá consequências nefastas para as próximas gerações. As tensões sociais, os conflitos potenciais entre indivíduos e classes, os choques de interesses, o predomínio do táctico sobre o estratégico, o clima de violência latente, constituirão muito em breve uma mistura explosiva. Não ter consciência da degradação desta sociedade pretensamente evoluída é o primeiro sinal de decadência. Mudar ou não esta realidade social condicionará definitivamente a nossa vida nas próximas décadas.

Mais do que mudança de governos ou a vitória do partido A ou B. Assumirmos uma nova cultura de equilíbrio, da qualidade, do saber, da excelência, será o primeiro sinal de que vamos saber construir uma sociedade diferente para gerações que se pretendem diferentes.

Jorge Penedo, in A Capital (adaptado)


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sexta-feira, 16 de outubro de 2009

A ajuda da família

Pierre BourdieuImage via Wikipedia


António Campos

A ajuda fornecida pela família reveste-se de formas diferentes nos diferentes meios sociais: a ajuda explícita (conselhos, explicações, etc.), e percebida como tal, cresce à medida que o nível social se eleva, ainda que pareça decrescer à medida que o grau de sucesso escolar aumenta. Acontece que ela constitui apenas a parte visível das "doações" de todo o tipo que as crianças recebem das suas famílias. Se lembrarmos, por exemplo, que o conjunto de laureados que fizeram a sua primeira visita ao museu ainda na infância com a sua família cresce com a origem social - o que constitui apenas um indicador, entre outros, dos estímulos indirectos e difusos dados pela família -, veremos que os jovens das categorias superiores acumulam a ajuda difusa e a ajuda explícita, enquanto que os jovens das classes médias recebem sobretudo uma ajuda directa e os jovens das classes populares, salvo excepção, não podem contar com nenhuma dessas duas formas de ajuda directamente rentáveis escolarmente.

A família tem um papel preponderante no percurso escolar da criança. O seu
posicionamento na estrutura de classes, as suas expectativas quanto ao papel da
escola e da escolarização dos seus filhos, o apoio que quer dar e/ou efectivamente dá a essa mesma escolarização são determinantes: «As atitudes e expectativas das famílias relativamente à escola e ao seu papel no trajecto de vida das suas crianças divergem conforme o posicionamento social dessas mesmas famílias e os seus capitais económico, escolar e cultural.

Pierre Bourdieu, La Noblesse d'État, Minuit, 1989 (adaptado)

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