segunda-feira, 30 de novembro de 2009

A violência na família

family violence.3Image by ahhhhmen via Flickr


António Campos

Porque é que a violência doméstica é tão banal? Há um conjunto de factores envolvidos. Um deles reside na combinação entre a intensidade emocional e a intimidade pessoal características da vida familiar. Os laços familiares estão normalmente impregnados de emoções fortes, que misturam frequentemente amor e ódio. As desavenças que ocorrem no contexto doméstico podem libertar antagonismos que não seriam sentidos da mesma forma noutros contextos sociais.(...)

Uma segunda influência reside no facto de se tolerar e até mesmo aprovar um certo grau de violência no seio da família. Embora a violência familiar socialmente aprovada seja de natureza relativamente limitada, pode facilmente degenerar em formas mais severas de agressão. Haverá poucas crianças na Grã-Bretanha que nunca tenham levado uma bofetada ou apanhado uma tareia - mesmo que leve - de um dos seus progenitores. Estas acções gozam frequentemente da aprovação dos outros e provavelmente não são sequer reconhecidas como "violência". Embora menos explícita, existe (ou existiu no passado) também uma aprovação social da violência entre esposos.

A família é habitualmente descrita com um espaço de afecto, de partilha e de segurança para os seus elementos. No entanto, pode acontecer precisamente o oposto. Alguns estudos mostram que é mais provável uma ser agredida pelo marido em casa do que por um estranho na rua. A intimidade, a proximidade, o elevado grau de expectativas e a impossibilidade de as extravasar, a agressividade em contextos públicos, tornam o lar no palco principal de manifestações e maus-tratos físicos e psicológicos.

As formas mais comuns da violência no seio da família são a agressão da mulher por parte do marido e a violência contra as crianças por parte dos adultos (homens e mulheres). Porque acontece na esfera privada, este tipo de violência tem duas características complementares: é ou foi socialmente tolerada e não tem, ou não teve há alguns anos atrás, grande visibilidade a nível público.

A violência na família pode ter causas externas, como o consumo de álcool e/ou de drogas que propiciam comportamentos violentos. Mas também tem causas internas, que estão ligadas à estrutura do poder entre os elementos da família. As desigualdades sociais e económicas verificadas na sociedade são absorvidas pela família: o homem tem poder sobre a mulher e os adultos têm poder sobre as crianças. Trata-se, portanto, de um fenómeno com raízes estruturais a nível social. A dominação masculina sobre a mulher teve inclusivamente um enquadramento legal em Portugal até 1974, pelo que era socialmente aceite - inclusive pelas próprias mulheres - que os maridos fossem agressivos.

Os maus tratos contra a mulher podem incluir o espancamento, a injúria e a violação. Os maus tratos da mulher contra o homem também são uma realidade, mas têm uma ocorrência residual face à situação oposta e assumem predominantemente a forma de violência psicológica.

As denúncias de violência doméstica em 2005, junto da PSP e da GNR, aumentaram 17% em relação a 2004. No total, foram recebidas 178 novas queixas, sobretudo de mulheres maltratadas pelos companheiros. A partir destas denúncias, a PSP procedeu a um total de 249 detenções, quatro vezes mais do que no ano anterior. A GNR não divulgou o número de detenções.

Os responsáveis daquelas forças policiais, que congregam a quase totalidade das denúncias de violência doméstica, explicam o aumento pela "crescente sensibilização para esta problemática", não só da sociedade civil como dos próprios agentes. (...)

Mas, apesar do aumento das denúncias e de o crime de violência doméstica ser público desde 2000, "o certo, é que continuam a ser muito poucos os casos que chegaram ao fim do julgamento", sublinha Elza Pais, presidente da Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres e da Estrutura de Missão Contra a Violência Doméstica.

As vítimas são sobretudo mulheres, facto que é mais visível fora dos centros urbanos. (...) É o resultado do "enraizamento sociocultural da desigualdade de género", explica Elza Pais, e "que se tem transmitido de geração em geração".
As segundas vítimas de violência doméstica são as crianças. A GNR identificou 382 menores agredidos, mais 21% do que em 2004; a PSP registou 302 indivíduos com menos de 16 anos, menos 23 do que em 2004.

Anthony Giddens e Diário de Notícias, 2006-02-16 (adaptado)


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sexta-feira, 27 de novembro de 2009

A selecção social no trajecto escolar

Slow march to a social revolutionImage by Pandiyan via Flickr


António Campos

Mais de um terço dos estudantes (36,2%) que, em 2008, entraram para o 10º ano possuíam já um nível de qualificação mais elevado que o dos seus pais. E outros 23,9% estavam a caminho de alcançar esta meta, ou seja, cerca de dois terços dos jovens que se encontravam à entrada do ensino secundário já tinham ultrapassado ou estavam prestes a ultrapassar os seus familiares, revela um estudo (...) divulgado pelo Ministério da Educação.

Estes dados dão conta de "um processo intergeracional de aumento das qualificações", frisa-se no estudo desenvolvido pelo Observatório de Trajectos dos Estudantes do Ensino Secundário, com base em inquéritos a 46 175 alunos do 10º ano ou equivalente (correspondente a 44% do universo de alunos). Não são dados que surpreendam face ao cenário de base de Portugal. Ainda no Censos de 2001 eram identificados 10% de analfabetos e dava-se conta de que apenas 15% da população tinha então concluído o ensino secundário. Entre os jovens agora inquiridos, 21,6% têm pais com o secundário completo. Com o superior, a percentagem desce para 18,3 %.

Mas o progresso entretanto registado entre os jovens continua a ser marcado por "processos de selecção social", adverte-se. Por um lado, à entrada do ensino secundário - e, portanto, quando já está ultrapassada a escolaridade obrigatória -, verifica-se "um peso expressivo de alunos oriundos de famílias com recursos escolares e profissões com estatuto socioeconómico elevado". Por outro, o maior ou menor sucesso aparece muito associado à "linhagem".

As diferenças são ainda esmagadoras: os jovens inquiridos "que têm mais frequentemente trajectos escolares marcados por um elevado desempenho escolar [65,8%] são oriundos de famílias vinculadas a profissões altamente qualificadas". Aquela percentagem desce para 37,9% entre os estudantes oriundos de famílias operárias.

Público, 2009-01-14 (adaptado)


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segunda-feira, 23 de novembro de 2009

As formas de ruptura conjugal

Dimmi quando senti il mio silenzio, c’è una po...Image by Ca(non) via Flickr


António Campos

Há diferentes formas de viver a ruptura conjugal - o que ao nível psíquico e individual pode ser considerado "Como um momento emocional, sempre complexo e doloroso, é ao nível sociológico uma realidade vivida em formas muito distintas, distinções estas articuladas a certas regularidades sociais.

Distinguiram-se três grandes grupos de divorciados. No primeiro, que se designou por divórcio-desencontro, incluíram-se os entrevistados que consideravam o divórcio como tendo origem num problema de relação - no seu progressivo esgotamento ou no lento desgaste do vínculo afectivo e amoroso que tinha estado presente no seu início. Aqui, a ruptura conjugal aparece como a afirmação de uma recusa - a de viver sem bem-estar individual e/ou harmonia conjugal - e de uma esperança - a de reencontrar essa felicidade ou esse bem-estar noutro contexto conjugal ou relacional. O divórcio surge como um direito individual a ser accionado (embora como mal necessário) porque é do bem-estar do indivíduo que depende a harmonia do casal e depois da família.

A ausência de responsabilidade, desacompanhamento em relação à família, falta de assistência são algumas das razões dominantes apontadas por um segundo grupo de divorciados para justificar o seu processo de divórcio: o divórcio-culpa do outro. Só que, ao contrário do grupo anterior, são fundamentalmente as mulheres que enunciam este discurso, tenham ou não tomado a iniciativa do divórcio. Os homens acabam por confirmar algumas das práticas de que elas os acusam: menor atenção à família, violência, álcool. O divórcio aparece explicado pelas mulheres pela inadequação dos ex-cônjuges ao papel que deles era esperado, pela sua ausência de sentido de responsabilidade. Os elementos de natureza afectiva não entram como factor explicativo para o fim da relação, a não ser como consequência das características negativas da personalidade do outro.

Fatalidade, destino, amantes - palavras recorrentes nas entrevistas de mulheres separadas que se incluíram num terceiro tipo de divórcio - o divórcio fatalidade. A ruptura conjugal aparece para estas mulheres como algo completamente inesperado, para o qual não pode ser procurada outra explicação pertinente senão a da interferência de algum desígnio do destino. Para os homens esta percepção de "fatalidade" é muito menos acentuada. O divórcio é assim uma "experiência" vivida e sofrida de forma desigual desde o início do processo até às consequências em matéria de recomposição familiar. O contexto social, o sexo, as formas de conjugalidade podem transformar o que uns sofrem como destino em iniciativa libertadora para outros.

Anália Cardoso Torres, "Fatalidade, culpa, desencontro - Formas de ruptura conjugal" in Sociologia - Problemas e Práticas, 1992 (adaptado)

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Alguns novos movimentos sociais

Police trying to encounter the demonstrators a...Image by Farfahinne via Flickr


António Campos

Na actualidade, têm surgido grandes movimentos que contestam a ordem
tradicional das classes e dos estatutos, das relações entre países ricos e países pobres, da reivindicação da liberdade pessoal, etc. Mas, no campo dos comportamentos sexuais, a transformação tem sido mais lenta e difícil. Ainda hoje, quando se fala de desigualdades sexuais ou de diferença, sempre se pensa que é nas características fisiológicas (ou do inconsciente) que tudo assenta. Isto é, na natureza e não na sociedade.

Deve-se ao movimento feminista - como movimento social e teoria crítica da
sociedade - a introdução da questão da construção social do género. O movimento gay (homossexual) segue-lhe as pegadas, questionando, junto com as feministas, a
superioridade masculina, mas acrescentando a crítica ao suposto fundamento natural da heterossexualidade.

Ao inventarem a designação gay, os homossexuais criaram uma identidade social,
sem deixarem que outrem os catalogasse. Esta autodesignação implicou uma ideia: a da sexualidade com qualidade ou propriedade do Eu. Ao mesmo tempo, tanto as
mulheres como os homens gays adiantaram-se aos heterossexuais no desenvolvimento de relações afectivas e/ou sexuais de um tipo novo, porque tiveram de as construir sem os enquadramentos tradicionais do casamento. A sexualidade é algo que, hoje em dia, cada um de nós tem ou cultiva, e já não é uma condição natural.


Almeida, M. V. (2004) Outros destinos, Porto, Campo das Letras (adaptado)



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segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Representação social juvenil

Too much too youngImage by Walt Jabsco via Flickr


António Campos

O campo da juventude é hoje alvo das maiores atenções por parte das sociedades,
tendo a sua importância vindo a aumentar de tal forma que praticamente todas as
entidades, públicas ou privadas, possuem os seus programas ou linhas de produtos
destinados à juventude.
Estruturou-se, em torno da juventude, um conjunto de representações que
sobrevaloriza um leque de atributos supostamente naturais, sendo a pressão tão
grande que é frequente em certas esferas só existirem actividades destinadas a jovens.
A chamada «cultura jovem», misto de práticas de sociabilidade e de consumo,
representações e valores «típicos» desses estratos etários, combinando elementos
originários dos processos de socialização na família, escola, grupos de pares e meios de comunicação social, tornou-se hoje um elemento central nas sociedades
industrializadas.

Sebastião, J. (1998) (adaptado)


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sexta-feira, 13 de novembro de 2009

A velhice nas sociedades modernas

old people enjoying the music at Xihu (Hangzhou)Image by whitecat singapore via Flickr


António Campos

A institucionalização dos sistemas de reformas é o primeiro passo para a autonomia económica dos mais velhos e a emergência da velhice enquanto categoria social. A velhice pensionada é uma situação nova nas sociedades desenvolvidas, e envolve alterações e inovações nos modos de vida das gerações mais velhas.

A emergência da velhice, enquanto problema social, está fortemente relacionada com a institucionalização das reformas. Mas não só. As alterações ao nível da estrutura das relações familiares nas sociedades ocidentais contribuíram também para que se agravasse o problema social da velhice. A solidariedade natural entre gerações, espécie de seguro de vida apostado na geração seguinte, parece estar comprometida por transformações sociais desencadeadas ao longo do século XX. A desfamilização das relações familiares, isto é, o desmoronamento das bases sociais em que assentava o familismo tradicional, interfere na forma como se relacionam pais e filhos e se transmite o património.

Mas a persistência de solidariedades que não deixou de se manifestar na entreajuda entre pais e filhos contraria a visão catastrófica de isolamento da família nuclear nas sociedades urbanas desenvolvidas.

A noção corrente de velhice e envelhecimento negligencia as transformações demográficas mais recentes resultantes da conquista de anos de vida que prolongam a sobrevivência e afectam a constituição e os calendários das fases em que se repartem as biografias.

Contraditoriamente a actual organização económica das sociedades modernas tem contribuído para tornar obsoleto o trabalho dos mais velhos que são precocemente atirados para uma inactividade pensionada. Vive-se durante mais tempo, com mais saúde e vitalidade e fica-se reformado mais cedo.

A circunstância de, nos nossos dias, se conjugarem um envelhecimento demográfico em franco crescimento e um Estado-Providência, cujas competências tendem a expandir-se, favoreceu a importância e a abrangência das políticas sociais de velhice. Estas, de modo geral, têm por objectivos intervir publicamente no sentido de contrariar as tendências de solidão, isolamento e carências várias para que foram sendo remetidas as gerações mais velhas. Afastados dos circuitos de produção, afastados da família, restava-lhes a solidariedade pública.

As políticas sociais têm promovido o aparecimento de equipamentos e produtos vários cujo usufruto é destinado apenas a uma categoria de idades, os idosos. Os pressupostos em que se baseiam, a agregação de pessoas acima de uma certa idade e a homogeneidade dentro desta categoria têm contribuído, ainda que de forma indirecta, para reforçar a segregação que se pretendia à partida contrariar e acentuar os contornos da imagem de velhice enquanto categoria carenciada e segregada. As práticas dos agentes sociais encarregues da gestão pública da velhice e as representações que veiculam têm vindo, também, a reforçar esse estado de segregação.

Os benefícios e os efeitos perversos inerentes à implementação de políticas sociais para a velhice começam a ser visíveis na sociedade portuguesa e, com mais acuidade, em sociedades onde as políticas sociais foram implementadas há mais tempo.

Ana Alexandre Fernandes, in Velhice e Sociedade, (adaptado)


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segunda-feira, 9 de novembro de 2009

...E voltar a nossa vista, o nosso olhar, a nossa compreensão das coisas para dentro

anthony loves children :-)Image by laihiu via Flickr


António Campos

“A autonomização tem muito que ver com a separação. Autonomia da criança, quer dizer, é a autonomia do seu funcionamento psíquico. Quando a criança deixa de ter necessidade de ter alguém que funcione mentalmente por ela e já é capaz de discernir por si própria, de ter opiniões suas, de resolver as coisas pela sua própria cabeça, aí há autonomia. Essa autonomia exige necessariamente uma certa distanciação das figuras parentais, das figuras do pai e da mãe (ou de quem fez esse papel), exige não só distanciação, como até separação, sobretudo na puberdade.”

Mas logo na entrada para a escola dá-se uma crise parecida com a crise da puberdade, o problema da separação põe-se logo desde essa altura, e portanto também a necessidade de funcionar autonomamente. A gente vê as crianças pequenas do jardim escola que ainda não têm autonomia, que têm necessidade de andar agarradas à saia da educadora, ou então de mãos dadas com outros meninos, e os jogos que fazem são muito de roda dançada, de dar as mãos e cantar uma coisa, ou fazer jogos numa roda envolvente, em que essa figura maternal que é a educadora está muito presente.

Ao passo que na escola primária as coisas já se passam de maneira diferente. Já há muito maior autonomia, a criança já é capaz de se distanciar da própria professora, embora este continue a desempenhar um papel bastante maternal, mesmo sendo homem. Quer dizer, a escola é sempre bastante maternal, tem alguma coisa de envolvimento maternal, ou digamos mais claramente, a escola tem alguma coisa de envolvimento, e portanto, é maternal.

A recusa do adulto em reconhecer que a tristeza da criança corresponde a recusa do adulto em reconhecer a própria tristeza infantil e até a sua tristeza actual. Quer dizer, ele também foi vítima disso, ele também teve tristezas que teve de esconder, que teve de disfarçar, que teve de resolver de uma certa maneira, porque os adultos, no seu tempo de criança, também já não lhe concediam o direito à sua tristeza, à sua depressão. Porque a depressão conduz a uma reflexão sobre a própria pessoa, sobre o próprio eu, leva-nos a olhar para dentro e a procurarmos ver o que é que se passa dentro de nós.

Enquanto que na paixão, por exemplo, a pessoa está toda voltada para fora e só vê o objecto amado, o objecto do amor. Quando se está apaixonado por uma pessoa, ou por uma ideia, seja lá o que for, a pessoa está voltada para fora. Na depressão, pelo contrário, a pessoa está toda voltada para dentro. E na cultura ocidental nós recusamos muito a depressão, ao contrário do que acontece com os orientais que a aproveitam muito para meditar, para pensar, para reflectir, para atingir o discernimento das coisas. A palavra discernimento significa compreender o sentido. Corresponde mais a descobrir do que propriamente a compreender no sentido racional. E a depressão dá um discernimento, uma compreensão, nesse sentido, de que aliás todos nós nos apercebemos se voltarmos um pouco atrás e virmos como foi a nossa vida. Vemos que os momentos de depressão nos conduziram a modificações importantes na vida.

Muitas vezes há essa reflexão, esse olhar para dentro de que a gente às vezes não se apercebe, de que não damos por isso, mas a verdade é que ele existe, porque a pessoa está voltada para dentro. Nessas alturas, quer seja na adolescência quer seja na idade adulta, está de facto a reflectir sobre todos os seus problemas, os mais íntimos, os mais pessoais e menos voltada para as coisas de fora e para os problemas dos outros. Esse discernimento corresponde mais a um fazer-se luz dentro de nós e portanto a compreendermo-nos melhor através de um fechar de olhos ao que está para fora e voltar o nosso olhar, a nossa compreensão das coisas para dentro.

Isso na infância é fundamental para que a pessoa cresça. A pessoa cresce de facto, desenvolve-se, aperfeiçoa-se à custa desses movimentos de voltar para fora e de voltar para dentro o seu olhar. De uma certa maneira são, movimentos de paixão e movimentos de tristeza. Aliás, muitas vezes a paixão dá lugar a decepções, e isso pode acontecer muito cedo, por exemplo na paixão pelos pais idealizados, numa certa fase da vida, muito infantil. Ainda mesmo antes de entrar para a escola já há ideias nesse sentido de uma idealização muito grande dos pais, que muitas vezes dá lugar a uma decepção, porque os pais afinal não são assim tão amáveis como a criança pensou. A mãe, por exemplo, é-lhe dedicada, mas há momentos em que foge para ir com o pai ao cinema, ou outra coisa qualquer. E nessas alturas a criança sente-se por assim dizer traída, decepcionada.

O mesmo pode acontecer em relação ao pai para quem a criança está muito voltada. Seja do mesmo sexo ou de outro sexo, as coisas não são tão geométricas como às vezes parecem nesta relação de filhos para pais, da menina gostar mais do pai e do menino gostar mais da mãe. De facto há uma certa tendência para que isso seja assim, mas não quer dizer que isso seja em absoluto. O que se sabe é que cada pessoa tem inicialmente só uma mãe, quer seja do sexo masculino ou do feminino, que é o seu primeiro objecto do amor, o primeiro envolvimento que se recebe é de uma mãe, de uma criatura que tem características maternais, que exerce funções maternais, e que em regra é do sexo feminino, mas pode não ser, e que há uma outra pessoa que desempenha funções paternais e que aparece um pouco mais tarde. Funções parentais, quer dizer, funções separadoras desse indivíduo inicial.

E portanto há já uma decepção na altura em que a criança reconhece que aquela figura não é tão amável, não é tão simpática, não é tão tolerante como parecia ao princípio. Este mecanismo de decepção tem a ver com a morte da mãe ou da morte do pai. E a criança pode ter esses pensamentos, porque traz muitas vezes a ideia da situação edipiana. Mas é possível que em nós adultos, ou nas crianças mais crescidas, exista uma ideia de morte, uma raiz, que vem do tempo em que a gente quis ter a mama da mãe para nos matar a fome ou a sede, e ela não está lá, e daí esse ódio terrível por aquela coisa que devia estar lá e não está. E esse ódio, é essa agressividade tão violenta que podia ter sido mais tarde integrada como desejo de morte.

É este o caminho da autonomização da criança… da nossa autonomização, se esses desejos de morte forem atempadamente resolvidos, com as mais diversas formas de amor.

João dos Santos (adaptado)


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sexta-feira, 6 de novembro de 2009

A velhice nas sociedades tradicionais

PortugalImage via Wikipedia


António Campos

Na maior parte das sociedades tradicionais, as gerações mais velhas permanecem integradas nos sistemas económicos e sociais de produção praticamente até à morte. Partilham tarefas e desempenham funções ainda que as dificuldades comecem gradualmente a surgir e se vão atenuando as responsabilidades e incumbências à medida que diminuem as capacidades físicas.

À medida que caminhamos para os nossos dias a situação de velhice, enquanto condição social reconhecida, emerge e destaca-se no ciclo de vida. A passagem do século XIX para o século xx, a par com alterações económicas e sociais profundas, coincide com a transição demográfica (fenómeno que representa a mudança de um regime demográfico com altas taxas de mortalidade e de natalidade para um outro em que a mortalidade e a natalidade se voltam a equilibrar, mas a níveis muito mais baixos).

Esta alteração do regime demográfico proporcionou às populações dos nossos dias o benefício de um substancial aumento da esperança de vida. Mas o acentuado declínio da fecundidade acarretou um gradual envelhecimento das populações. Os idosos, na acepção demo gráfica, classe de idade das pessoas com mais de 65 anos, não só tendem a ser proporcionalmente em maior número como vivem durante mais tempo, o que significa que pequenos aumentos da esperança de vida não agravam o aumento da população idosa.

Por si, o aumento proporcional de pessoas idosas poderia não vir a constituir-se um problema social apesar de a velhice representar a fase da vida em que as capacidades e resistências físicas vão gradualmente diminuindo. E, embora em certas situações de maior precariedade económica os velhos possam representar uma sobrecarga - ainda que tenhamos que atender à diversidade de estruturas familiares possíveis de reconstituir nos vários complexos histórico-geográficos -, podemos afirmar, sem incorrer em grandes imprecisões, que, nas sociedades ocidentais europeias pré-industriais, a redução da capacidade produtiva do idoso se diluía no conjunto das trocas que se efectuavam entre os elementos do grupo doméstico. Tal capacidade era, em parte, compensada pelo valor da experiência acumulada, fonte de saber a transmitir aos mais novos.

Ocorre, porém, que o aumento da duração média de vida desvalorizou a longevidade de outros tempos, em que a experiência era a base do saber. Por sua vez, o conhecimento em constante desenvolvimento deixou de assentar na simples acumulação resultante da vivência e os mais velhos deixaram de ter o papel de conselheiros sapientes que tradicionalmente foram desempenhando. Nestas condições, e apesar das transformações referidas, o simples aumento de pessoas idosas poderia, ainda assim, não constituir"só por si, um problema social.

A velhice poderia ter outras implicações se os idosos permanecessem a cargo das famílias respectivas, nas sociedades tradicionais, entre os camponeses ou entre as burguesias mais urbanas. Nestes casos, os problemas da velhice eram problemas individuais e sobre eles se fechava o espaço privado da casa e da família. As trocas desenrolavam-se entre as gerações, mas apenas no âmbito estrito das relações familiares. Assim, a velhice surgia publicamente identificada com pobreza, indigência ou doença. Dela se encarregavam as instituições hospitalares e de beneficência.

Esta velhice é ainda uma velhice invisível, que é a situação dominante até meados deste século. Cada um deveria prever os seus dias de velhice, que não eram então muito longos, e essa previsão assentava fundamentalmente no sistema de trocas que se estabeleciam entre as gerações dentro do grupo familiar ou doméstico. Para resolver as situações extremas intervinham as instituições de beneficência social.

Durante o século XIX e o inicio do século XX a velhice permanece invisível porque adquire as formas e os contornos, extremamente contrastados, dos patrimónios familiares, surgindo publicamente apenas as situações de maior penúria, que eram socialmente identificadas com a pobreza. A posse de propriedade era a garantia de uma velhice segura, mas também um assunto de âmbito estritamente familiar. Fora da família a velhice era confundida com mendicidade e invalidez e socorrida da mesma forma que estas pelas instituições de beneficia.



Ana Alexandre Fernandes, in Velhice e Sociedade (adaptado)





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segunda-feira, 2 de novembro de 2009

A decadência da ética

Q magazine Madonna Out side Rodrigo Sá praia B...Image by Rodrigo Sá via Flickr


António Campos

A evolução moral e ética do brasileiro apresenta-se com uma dinâmica assaz interessante, merecedora de estudo profundo por parte dos filósofos, pedagogos e outros profissionais dedicados às ciências humanas. Lembro-me que nos meus áureos tempos de juventude, ministrava-se nas escolas uma disciplina chamada Educação moral e Cívica, dando parâmetros positivos a serem seguidos pelos jovens alunos. Estávamos então, em plena ditadura militar, por volta dos anos 60.

Tínhamos grande respeito pelos nossos professores e acreditávamos que o nosso país a cada dia buscava desenvolver-se. Estávamos e estamos em um processo evolutivo em busca de nossa independência moral, cívica, social, económica e intelectual. Eram jovens com a consciência política em fase de desenvolvimento e buscavam realizar o sonho de ver o país livre do Governo de Excepção, para instalar a Democracia que é o Regime das consciências livres. Sabiam que os homens que dirigiam a política buscavam à sua maneira, o que achavam ser o melhor para o Brasil, um país com milhões de analfabetos.

A ética e a moral estavam fora de cogitações. Estamos no século XXI, quarenta e sete anos depois. O regime é o democrático onde temos liberdade de expressão. Temos o direito de fazer greves, de protestar contra o governo, reivindicar melhoras para a educação, saúde, segurança e etc. Elegemos os nossos governantes, porém, apesar de todo esse avanço há uma carência de moral e ética, principalmente dos políticos escolhidos por nós.

Abrimos diariamente os jornais e somos bombardeados com manchetes que envergonham qualquer cidadão de bem. São notícias que envolvem, não um "Zé ninguém", mais autoridades políticas que se aproveitam dos seus cargos para se locupletarem atendendo a seus apetites vorazes, gananciosos, egoístas e esquecem que estão ali representando o povo brasileiro e em seu nome governam.

São desvios de dinheiro, lobistas pagando contas particulares de senador; Presidente de Comissão de Ética respondendo inquérito por desvio de dinheiro; deputado sendo preso por formação de quadrilha; e pasmem os senhores, Ministro do Supremo Tribunal sendo acusado de receber propina para dar um parecer Jurídico, È vergonhoso! Humilhante!

Quando esperávamos desfrutar de um período em que o convívio humano tivesse como base a harmonia, o respeito, a probidade e a excelência da ética. Vemos justamente o contrário. As pessoas que representam a elite do nosso país, que têm fácil acesso a educação, aos avanços tecnológicos e aos melhores salários, são os primeiros a servirem de exemplo negativo. Pergunto, por que esse retrocesso ético? O que está nos levando a praticar actos contrários a linha de evolução ética que vínhamos trilhando?

Não poderá o mesmo perguntar-se em relação a Portugal?

Eduardo P. Almeida, 2007(adaptado)

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