3. Santos e Ritual
Aquilo que denominei ciclos míticos do
tempo, poderá ser complementado com o relato de um certo número de ritos,
teológicos e sociais, celebrados ao longo do ano.
Os santos constituem uma invenção com
muito sucesso em Portugal, como de resto em toda a parte do mundo católico
romano. Muitos têm poderes curativos, outros aparecem associados a determinadas
instituições e em alguns casos com a justiça e a honestidade. Em geral, pode-se
dizer que são todos resultado do investimento de ideias num símbolo material,
que serve uma finalidade de memória numa tradição rural e oral de
conhecimentos. Sem nos esquecermos que o saber iconoclasta tem largas tradições
na Europa, interessa interpretar o significado destes símbolos num determinado
tempo histórico. Uma vez mais nos vemos confrontados com a materialidade do
trabalho do campo, pela qual um grande número de recursos está ou tem estado
liberto do controlo humano. Um desses recursos é a saúde, e, para velar por ela
podem-se encontrar um grande número de santos e de cultos em todo o território
cristão de Portugal. Os santos têm a sua especialidade própria e a história da
sua vida é associada a uma capacidade curativa. S. Bartolomeu, por exemplo, que
foi esfolado e frito no século I D.C., é o paradeiro das doenças de pele, mas é
igualmente, o advogado dos marinheiros noutros locais, sendo ainda
completamente ignorado noutros pontos do país. Assim sendo, penso que o que interessa
é verificar que as ideias das pessoas são antropomórficas e distribuídas por
uma vasta gama de santos com implantação desigual no território cristão.
Algumas vezes um santo exerce diversas funções, noutros casos a história da sua
vida é atribuída a qualquer outra imagem. Em geral, os santos, embora
profundamente enraizados na tradição, não são historicamente identificados pelo
povo, embora os seus poderes sejam largamente conhecidos. Trata-se de uma área,
por assim dizer, em que a invenção histórica é mais importante que a definição
teológica, uma vez, que o que as pessoas procuram neles é, não o seu grau de
santidade, mas o seu grau de eficiência em relação a determinado grupo social.
É evidente que tem havido alguma intervenção política em relação a certos
santos ou em torno dos seus milagres, dando relevo a uma determinada actividade
sobrenatural em detrimento de outras. Contudo, o que julgo ser relevante, é o
facto de existir uma imaginação sociológica que vai criar um fenómeno que ajuda
a regular, suplementar ou resolver um determinado número de problemas materiais
que afligem as pessoas. Ou simplesmente tem a função, ou expressa a necessidade
de um encontro ou reunião periódica, como celebração prática da dimensão legal
que regula as relações entre as pessoas e os recursos, nomeadamente justiça ou
igualdade, como referi quando falei das leis canónicas. Para uma sociedade que
durante muitos séculos teve acesso aos recursos através de laços pessoais, o
santo pode servir eficazmente a finalidade da práticas e da concentração das
virtudes necessárias para alcançar os dois senhores: o terreno e o eterno. Para
além disto, os santos representam ainda um modo de manipular a realidade ou até
mesmo de mobilizar politicamente as massas, meios que, à semelhança de
feitiçaria e da magia, são utilizados quando outros mais pragmáticos deixam de
existir. Se tal acontecer, poder-se-á então explicar as diferentes descrições
históricas dos milagres e as diferentes capacidades atribuídas aos santos
através do tempo e do espaço.
O ritual é já uma questão diferente.
Acompanha os ciclos de vida individual e os seus parâmetros são fixados pela
Igreja Romana. Quando falo de ritual neste contexto, quero significar a
organização sacramental da vida que julgo contribuir para a definição das
relações sociais. Rito significa também ajudar as pessoas a saber o que está
certo e o que está errado, com quem devem estabelecer alianças e como evitar
outras, pois é isto, na verdade, o conteúdo da doutrina.
É através do Baptismo que a filiação do
indivíduo é tornada pública e reconhecida, que se define quem são os seus
parentes, colocando-o assim dentro de uma escala de categorias permitidas e
interditas com vista ao estabelecimento de alianças matrimoniais. A definição
da filiação contribui também para o estabelecimento dos direitos patrimoniais.
Finalmente, o baptismo concede aos indivíduos uma paternidade extra, pois fixa
um tipo de parentesco ritual que se combina com os vínculos biológicos,
variando em importância através dos tempos. A paternidade ritual cria uma
ligação de facto entre pais, padrinhos e afilhados. Este facto vem a ser
expresso mais tarde na vida em trocas de riqueza, primeiro entre padrinhos e
pais, mais tarde entre padrinhos e afilhados; estes últimos irão, por vezes,
trabalhar e dar assistência aos seus padrinhos por dever moral rectificado por
um crédito de aceitação entre todos os intervenientes. Em resumo, o baptismo é
um rito classificatório que torna pública a filiação, tanto legítima como ilegítima,
alarga os laços de parentesco e coloca o indivíduo dentro de uma escala
possível de categorias matrimoniais.
O Baptismo introduz também o indivíduo num
sistema de relação oficial sancionado tacitamente pela Igreja; a entrada
oficial naquilo que se pode chamar comunidade aldeã é dificultada ou mesmo
impedida, se o indivíduo não pertence à estrutura da Igreja: os não baptizados,
por exemplo, não poderão contrair matrimónio, o que significa que lhes é
interdito o direito legal à procriação. E não pode contrair matrimónio porque
não pertence à comunidade daqueles que vivem e trabalham dentro dos limites
geográficos da aldeia. Este status tende a permanecer muito rígido
enquanto o sistema de trabalho se basear em laços pessoais, é fácil ver a
relação existente na cadeia do não baptizado, não casado, sem vida sacramental,
sem terra, jornaleiro e, finalmente classificado de «pobre» e alcunhado de
«mouro», ou seja, de inimigo da religião e da Igreja Católica Romana. No
momento actual em que a maior parte das pessoas possui a sua própria terra,
este risco de iniciação é, obviamente, mais praticado, pois que a existência de
um património traz consigo a necessidade de uma classificação clara de vínculos
e alianças.
O Casamento é um rito classificatório semelhante,
como já referi noutra ocasião. Depois da filiação ter sido claramente definida
e registada em livro próprio, em 1867 mesmo os avós eram registados, e assim
clarificada a rede de casamentos possível, o problema surge quando se procede a
circulação de pessoas no território. O Casamento dispersa os homens e as
mulheres pela terra ou por outros lugares, fixa uma nova categoria de parentes
– os afins – e estabelece a base para a transmissão dos recursos produtivos,
eliminando ao mesmo tempo tabus sexuais criados para o controlo da fertilidade
humana. Ao mesmo tempo este rito, que declara que os bens de um homem ou de uma
mulher passam a estar sob uma administração única e serão transmitidos aos
filhos, com quem trabalharão toda a vida, tira a possibilidade de
desentendimento ao casal e de ruptura do casamento, pois que, afinal foi Deus
que os uniu, ao proclamarem o desejo dessa união. O mesmo Deus ajudará com
riqueza a descendência apta a trabalhar, enquanto a promessa for mantida, mas
torná-los-á pobres no caso de rompimento. Na realidade, durante anos não se
registaram praticamente divórcios entre a população rural e existe também a
aceitação pragmática de que a separação, quando acontece de facto, destroi a
unidade laboral e o ciclo de desenvolvimento não atinge o ponto de transmissão
de conhecimentos, recursos materiais e cuidados. Um novo modo de organização do
trabalho, com os membros mais idosos da família tem de ser estabelecido, ou
então restar-lhes-á o trabalho solitário da terra, só com a ajuda das criança.
O Casamento torna-se a materialidade da produção de trabalhadores e da sua
formação, constituindo um bureau de pessoal, uma vez que submete toda a
capacidade de organização laboral ao pai e os cuidados das crianças à mãe. Em
muitos locais o Casamento abre as portas à riqueza, quer através de dotes que
dão possibilidade ao novo casal de se estabelecer, quer pelo estabelecimento de
acordos patrimoniais para o futuro. É possível observar como o casamento e a
produção de um primeiro filho pelo filho mais velho da casa irá definir um
direito mais claro à herança que outras vias.
Entre Baptismo e Matrimónio, considerados
como práticas religiosas, têm lugar os rituais da Confissão, Comunhão ou
Eucaristia e a Confirmação, os dois primeiros praticados pela primeira vez por
cada criança entre os 7 e os 10 anos, e depois repetidos pelo menos uma
vez por ano até à morte. Às crianças ser-lhes-á administrada a doutrina ou
verdade revelada que, juntamente com a definição da lei canónica, pertence à ordem
natural das coisas, tal como foi estabelecida pela divindade. Isto é, as
crianças são introduzidas num corpo oral de conhecimentos que tem como
finalidade estruturar um conjunto de relações sociais os valores através dos
quais estas são veiculadas. Esta doutrina começa com a definição de que a
felicidade é um valor a ser alcançado, que todos nós desejamos, mas que não é
possível obter sem se pertencer a Deus, isto é, a um sistema de graça e
circulação divinas. É esse Deus, essa vontade exterior, que providenciará
felicidade se os homens se mantiverem dentro dos parâmetros de comportamento
permitidos: aceitar Deus na sua categoria de Criador, admitir que os seres
humanos não valem rigorosamente nada porque são pecadores, que têm de ser
redimidos através do sacrifício de Cristo; redenção essa, a cargo do Espírito
Santo, e que, por tudo isto é necessário mantermo-nos afastados do pecado
através da prática de um certo número de virtudes, nomeadamente: humildade,
ajuda mútua, castidade, autocontrolo, fortaleza e diligência. De facto, a
doutrina é uma combinação de definições de relações, tanto teológicas como
práticas, em que as obrigações materiais surgem sancionadas ou perdoadas
através de acções que pertencem à dimensão mítica do tempo. Por outras palavras,
a doutrina é um corpo de conhecimentos que, oralmente repetido por toda a
população, estabelece a base de um código de conduta que acaba por constituir
um sistema fechado de conhecimentos que, em conjunto com a distribuição divina
da riqueza dos senhores e dos pais aos trabalhadores e à geração seguinte, e
pela manipulação do mundo material em relação com o tempo mítico, constitui um
universo de referência dentro do qual as práticas religiosas são simplesmente
um resultado público razoável desta organização racional da produção. Em tudo
isto, os ritos do clero ajudam a administração dos laços mútuos entre as
dimensões material e ideal utilizadas no trabalho do campo por meio do poder da
palavra escrita e da explicação dos textos sagrados – a memória do povo, o
padre.
O corpus total de conhecimentos que
tem orientado a conduta dos camponeses foi preservado até há bem pouco tempo
(anos 60) como texto sagrado, ao qual só é possível ter acesso através de
estudos no seminário. E mesmo assim, toda a ciência era administrada a um
simples padre. Há toda uma série de classificações de pescas em relação com o
saber, e, consequentemente, como o poder através da palavra, daí as hierarquias
do clero, que vão dos diáconos aos padres, abades, reitores, doutores, bispos e
cardeais. Cada uma delas tem direitos diferentes sobre as pessoas, no que se
refere às definições das suas relações e da sua permanência no corpo dos fiéis,
isto é, entre aqueles que têm acesso à comunhão, à terra e ao trabalho, assim
como ao lugar que cada um ocupará na vida do além. O mistério tem constituído a
pedra basilar do sagrado: a palavra escrita que se apresenta como verdade
revelada num mundo de tradição oral, com um argumento teológico num mundo de
ordem natural pragmático, salvo da natureza e definido como divino, palavra
essa que define acesso aos recursos, aos outros seres humanos e a um sistema de
circulação da riqueza que, no fim, misturado como está com a verdade revelada,
o camponês tem de compreender, pois é ele o trabalhador. Por esta razão, o
mistério é revelado através da confiança na pessoa que o explica: padres rurais
que possuem bens, comem e bebem como os demais e até muitas vezes se acasalam e
produzem filhos. Isto é, a humanização do poder político que tem dominado a terra
e controlado a riqueza tornou-se para eles um sistema ideal de relações que se
adequa bem aos novos detentores da terra, o campesinato português que se
estabeleceu recentemente em terra própria. Uma vez que a relação com os meios
de produção permaneceu idêntica, o sistema de prática religiosa tem conhecido
uma expansão à medida que aumenta a participação activa na produção rural de
bens económicos, para a qual é desejável um bom ajustamento das leis civil e
canónica. Assim, não é só o clero que se humaniza, também a prática do ritual é
mais divulgada em paralelo com o controlo dos recursos que o camponês de
Portugal conseguiu obter. Controlo, todavia, baseado num sistema laboral para o
qual a lei canónica e a verdade revelada, ou ordem divina, se continuam a
aplicar espantosamente como racionalidade reprodutiva. (…)
Raul Iturra
Jul.2011
do Aventar