sexta-feira, 26 de julho de 2013

Pedofilia



 

…ensaio destemido….mas necessário….para pais e avós…

Quem lê os meus textos sabe bem que tenho arremetido contra um facto sexual, punido por lei, o abuso sexual de menores por parte de adultos que apenas procuram o seu bem-estar sexual e emotivo, violando crianças que nem têm desenvolvimento emotivo nem intelectual para entender o que acontece. Apenas sofrem fisicamente no minuto do facto, desenvolvendo, emotivamente uma desconfiança nos adultos que não conhecem. Acaba por ter uma vida adulta dura, triste, desconfiada, como tenho analisado em outros textos sobre a pedofilia. Após ter revisto a minha própria produção sobre o agir pedófilo, após rever as provas que tenho, concluí que o abuso de menores é um crime que merece prisão para quem o comete, e atenção psicológica para quem o sofre. No meu livro Yo, Maria delTotoral, publicado no Chile pela Editora da Universidade Autónoma de Chile, 2008, e em Portugal por Estrolabio, 2011, reparei que é um facto que acontece ao longo de muitos anos e nunca tinha sido considerado lesivo nem criminoso. No caso da rapariga abusada em Maria delTotoral, acaba por viver uma vida de vergonha, especialmente porque, quem abusa dela é o irmão da sua mãe, com o saber e consentimento dela. Não apenas esse saber, como a punição da rapariga se não faz o que a sua mãe manda.

Parece-me haver dois delitos que encurralam a vida da rapariga: o incesto intermediado pela mãe; e o incesto consanguíneo no facto da pedofilia. Aliás, toda a pedofilia que acontece entre parentes, leva consigo esse outro delito, finamente punido pela lei de 2009. O Promotor Carlos Fuentes, comenta para o caso do Brasil: Actualmente se observa, através dos indicadores oficiais e da média, um expressivo aumento nos casos de crimes ligados à pedofilia, não porque estejam necessariamente ocorrendo em maior número, mas principalmente porque as campanhas de esclarecimento (v. g. a campanha “Proteja”, do Governo do Estado de Minas Gerais, a campanha “Todos contra a Pedofilia”, da CPI da Pedofilia, entre outras…) têm obtido bons resultados em conscientizar a população da gravidade de tais delitos, e da necessidade da apuração e do atendimento das vítimas.
O Hospital Pérola Byington, de São Paulo/SP, que é o maior centro de atendimento de vítimas de violência sexual da América Latina, apresenta-nos algumas estatísticas que revelam o aumento significativo dos atendimentos relativos a caso de violência sexual contra crianças e adolescentes. De acordo com Tatiana Hartz (Psicóloga e Bacharela em Direito, especializada no atendimento de vítimas de abuso sexual):

“A Pedofilia é a paralisia mais frequente e mais perturbadora do ponto de vista humano. É um transtorno de personalidade, consequentemente um transtorno mental que se caracteriza pela preferência em realizar, activamente ou na fantasia, práticas sexuais com crianças ou adolescentes. Pode ser homossexual, heterossexual ou bissexual, ocorrendo no interior da família e conhecidos ou entre estranhos. A pedofilia pode incluir apenas, brincar jogos sexuais com crianças (observar ou despir a criança ou despir-se na frente dela), a masturbação, aliciamento ou a relação sexual completa ou incompleta. Embora a pedofilia seja uma patologia, o pedófilo tem consciência do que faz, sendo a prática do abuso sexual fonte de prazer e não de sofrimento. São pessoas que vivem uma vida normal, têm uma profissão normal, são cidadãos acima de qualquer suspeita, famoso “gente boa”, é mais provável um pedófilo ter um ar “normal” do que um ar “anormal”, escrito na Revista editada pelo Hospital Pérola de Byinton, Minais Gerais.

Esta é a primeira abordagem que faço sobre os midia, a Internet e os pacotes que a Internet desenvolve, como as páginas do Facebook, Linkedin e Sónico que reproduzem fotos, mensagens, cartas emotivas e convénios entre as pessoas para se encontrarem, formas de se comunicar. Parece-me a melhor forma de procurar companhia, entre as quais intimidades. Não apenas por causa de amizade entre adultos, mas também como a exibição do corpo de rapazes e raparigas.
Sem dúvida que existem estas páginas para trocar ideias, histórias, mas principalmente intimidades amorosas. Aliás, na Bélgica foi descoberta uma rede de pedofilia, disfarçada de férias de crianças, organizadas por grupos benfeitores, como sacerdotes, grupos católicos, até ao dia que, ao se saber no Vaticano, Ratzinger teve que intervir e chamar a atenção sobre o facto. A rede passava por Portugal: na sua visita diplomata ao nosso país, Bento XVI teve que intervir, encontrar-se com sacerdotes de várias ordens, para por a casa em ordem: a pedofilia era uma doença infecciosa entre os Padres e os estudantes mais novos dos internatos que eles regiam. Para imaginar o que acontecia, é suficiente ver o filme de Pedro Almodóvar, de 2004.

Raul Iturra

Julho 2011
do, Aventar 

sexta-feira, 19 de julho de 2013

Práticas Religiosa em Portugal (IV)



 

4. Pontos de ruptura: aplicação variável das categorias religiosas ao trabalho.

É evidente que o paradigma denso e global que tenho vindo a apresentar como modo de resumir uma questão tão lata, tem tido e continua a ter inúmeras falhas. Quer isto dizer que, apesar do facto da ordem das coisas serem criadas pelas ideias construídas pelos camponeses e teologicamente subscritas pela Igreja, existe uma série de factos históricos que levam as populações a redefinir, de tempos a tempos, as suas crenças e práticas religiosas.
Até 1867, a propriedade, enquanto relação social, era essencialmente uma categoria do foro divino, tendo sido gradualmente humanizada em virtude do impulso liberal durante o século XIX. O laço pessoal necessário para se obter terra, vizinhança e tecnologia passou a amalgamar-se com a nova possibilidade de aquisição de terra pelos trabalhadores. Assiste-se a um movimento conducente à regulamentação civil da terra e do trabalho; a vontade individual ou a vontade autónoma com base contratual torna-se corrente, e objectos e produtos podem circular por vínculo à qualidade e não por vínculo ao dono da terra. A vontade autónoma tem, todavia, limitações ao nível da organização doméstica do trabalho, nos casos em que a ordem divina, baseada em princípios éticos, continua a regulamentar os comportamentos. Assim, a lógica das práticas religiosas é constituída por esta combinação, a diferentes níveis, da reprodução social e desta lógica, e, uma vez que se compõe de princípios éticos, está obviamente, incluída na regulamentação civil do comportamento social. Como já foi afirmado por Adam Smith (1759 e 1776), a produção da riqueza mais não é do que uma obrigação moral.

O fenómeno da propriedade tem, para os camponeses, uma influência nos conceitos de paternidade e de casamento. Há mais pessoas que se unem pelos laços do património em termos relativos, do que anteriormente. Isto quer dizer que o sistema de reprodução que tem combinado casamento, celibato e bastardia como estratégias para a comunidade do grupo social, se inclina mais para o casamento e menos para a bastardia, enquanto que o celibato deve ser tratado actualmente num capítulo diferente, a par da emigração. Entretanto, esta tendência tem trazido para a aldeia um novo conceito de paternidade que difere na forma, mas  não no conteúdo do conceito estabelecido pela religião oficial. Passa-se a poder distinguir o pai biológico do pai social e do pai ritual. O primeiro, é responsável pela gravidez da mulher, tornando-se muitas vezes, também pai social através do casamento; o segundo, é aquele que se responsabiliza pela família, na qualidade de marido da mãe; enquanto que o terceiro é pai delegado, que substitui o pai biológico, quando este não pode ser pai social. Por outras palavras, durante um longo período e até 1867, data da publicação do primeiro Código Civil Português – e antes das suas reformas – , muitos homens e mulheres não contraíam casamento e, quando tinham filhos, registavam a descendência como ilegítima de pai e mãe. Quando os filhos ilegítimos passam a ter direito aos bens do pai porque reconhecidos como filho ou filha, o nome do pai é retirado do registo nessa qualidade, passando a aparecer como padrinho. Isto é, vai estabelecer-se uma filiação espiritual que não confere direitos de herança à descendência, mas que vela, contudo, para que seja assistida com os devidos cuidados. Mais tarde, e ainda hoje isto acontece, os padrinhos dos bastardos passaram a ser normalmente os meio-irmãos do pai ou mesmo os seus filhos adultos através do casamento. Desta forma, as pessoas adicionais produzidas por motivos de mão-de-obra ou de paixão, são também protegidas por razões morais, embora de forma a não comprometer o património; no entanto, estão ambos salvaguardados. Os princípios da reprodução abençoada pelo casamento, e outros princípios a ela associados, são assegurados moralmente de outro modo e assim “a falta é reparada”.

Podemos citar como outros exemplos de manipulação, o casamento proibido entre pessoas com um determinado grau de parentesco, excepto pais, filhos e irmãos, que constitui a grande maioria de matrimónio em muitas aldeias, ao ponto do casamento com primos ter constituído regra em certas épocas históricas, ou a importação de maridos para engravidar as mulheres quando os homens da aldeia emigram, indo assim ao encontro não só da apropriação dos recursos disponíveis como do desenvolvimento do ciclo doméstico.
Muito mais exemplos poderiam ser mencionados, porém a minha intenção resume-se na ideia das práticas religiosas como resultado de um sistema de relações sociais e de relações de propriedade, nos casos em que estas são simplesmente uma prática pública das normas e valores que constituem a racionalidade do trabalho camponês. É por isso que o factor religioso é importante em Portugal: é um modo de pensar, uma mentalidade para organizar a vida na base de um processo assente em princípios divinos e manipulados, todavia, sempre que necessário pela interacção social.

(FIM)

Raul Iturra
Jul. 2011
do Aventar

sexta-feira, 5 de julho de 2013

Práticas religiosas em Portugal (III)



 

3. Santos e Ritual

Aquilo que denominei ciclos míticos do tempo, poderá ser complementado com o relato de um certo número de ritos, teológicos e sociais, celebrados ao longo do ano.

Os santos constituem uma invenção com muito sucesso em Portugal, como de resto em toda a parte do mundo católico romano. Muitos têm poderes curativos, outros aparecem associados a determinadas instituições e em alguns casos com a justiça e a honestidade. Em geral, pode-se dizer que são todos resultado do investimento de ideias num símbolo material, que serve uma finalidade de memória numa tradição rural e oral de conhecimentos. Sem nos esquecermos que o saber iconoclasta tem largas tradições na Europa, interessa interpretar o significado destes símbolos num determinado tempo histórico. Uma vez mais nos vemos confrontados com a materialidade do trabalho do campo, pela qual um grande número de recursos está ou tem estado liberto do controlo humano. Um desses recursos é a saúde, e, para velar por ela podem-se encontrar um grande número de santos e de cultos em todo o território cristão de Portugal. Os santos têm a sua especialidade própria e a história da sua vida é associada a uma capacidade curativa. S. Bartolomeu, por exemplo, que foi esfolado e frito no século I D.C., é o paradeiro das doenças de pele, mas é igualmente, o advogado dos marinheiros noutros locais, sendo ainda completamente ignorado noutros pontos do país. Assim sendo, penso que o que interessa é verificar que as ideias das pessoas são antropomórficas e distribuídas por uma vasta gama de santos com implantação desigual no território cristão. Algumas vezes um santo exerce diversas funções, noutros casos a história da sua vida é atribuída a qualquer outra imagem. Em geral, os santos, embora profundamente enraizados na tradição, não são historicamente identificados pelo povo, embora os seus poderes sejam largamente conhecidos. Trata-se de uma área, por assim dizer, em que a invenção histórica é mais importante que a definição teológica, uma vez, que o que as pessoas procuram neles é, não o seu grau de santidade, mas o seu grau de eficiência em relação a determinado grupo social. É evidente que tem havido alguma intervenção política em relação a certos santos ou em torno dos seus milagres, dando relevo a uma determinada actividade sobrenatural em detrimento de outras. Contudo, o que julgo ser relevante, é o facto de existir uma imaginação sociológica que vai criar um fenómeno que ajuda a regular, suplementar ou resolver um determinado número de problemas materiais que afligem as pessoas. Ou simplesmente tem a função, ou expressa a necessidade de um encontro ou reunião periódica, como celebração prática da dimensão legal que regula as relações entre as pessoas e os recursos, nomeadamente justiça ou igualdade, como referi quando falei das leis canónicas. Para uma sociedade que durante muitos séculos teve acesso aos recursos através de laços pessoais, o santo pode servir eficazmente a finalidade da práticas e da concentração das virtudes necessárias para alcançar os dois senhores: o terreno e o eterno. Para além disto, os santos representam ainda um modo de manipular a realidade ou até mesmo de mobilizar politicamente as massas, meios que, à semelhança de feitiçaria e da magia, são utilizados quando outros mais pragmáticos deixam de existir. Se tal acontecer, poder-se-á então explicar as diferentes descrições históricas dos milagres e as diferentes capacidades atribuídas aos santos através do tempo e do espaço.

O ritual é já uma questão diferente. Acompanha os ciclos de vida individual e os seus parâmetros são fixados pela Igreja Romana. Quando falo de ritual neste contexto, quero significar a organização sacramental da vida que julgo contribuir para a definição das relações sociais. Rito significa também ajudar as pessoas a saber o que está certo e o que está errado, com quem devem estabelecer alianças e como evitar outras, pois é isto, na verdade, o conteúdo da doutrina.

É através do Baptismo que a filiação do indivíduo é tornada pública e reconhecida, que se define quem são os seus parentes, colocando-o assim dentro de uma escala de categorias permitidas e interditas com vista ao estabelecimento de alianças matrimoniais. A definição da filiação contribui também para o estabelecimento dos direitos patrimoniais. Finalmente, o baptismo concede aos indivíduos uma paternidade extra, pois fixa um tipo de parentesco ritual que se combina com os vínculos biológicos, variando em importância através dos tempos. A paternidade ritual cria uma ligação de facto entre pais, padrinhos e afilhados. Este facto vem a ser expresso mais tarde na vida em trocas de riqueza, primeiro entre padrinhos e pais, mais tarde entre padrinhos e afilhados; estes últimos irão, por vezes, trabalhar e dar assistência aos seus padrinhos por dever moral rectificado por um crédito de aceitação entre todos os intervenientes. Em resumo, o baptismo é um rito classificatório que torna pública a filiação, tanto legítima como ilegítima, alarga os laços de parentesco e coloca o indivíduo dentro de uma escala possível de categorias matrimoniais.

O Baptismo introduz também o indivíduo num sistema de relação oficial sancionado tacitamente pela Igreja; a entrada oficial naquilo que se pode chamar comunidade aldeã é dificultada ou mesmo impedida, se o indivíduo não pertence à estrutura da Igreja: os não baptizados, por exemplo, não poderão contrair matrimónio, o que significa que lhes é interdito o direito legal à procriação. E não pode contrair matrimónio porque não pertence à comunidade daqueles que vivem e trabalham dentro dos limites geográficos da aldeia. Este status tende a permanecer muito rígido enquanto o sistema de trabalho se basear em laços pessoais, é fácil ver a relação existente na cadeia do não baptizado, não casado, sem vida sacramental, sem terra, jornaleiro e, finalmente classificado de «pobre» e alcunhado de «mouro», ou seja, de inimigo da religião e da Igreja Católica Romana. No momento actual em que a maior parte das pessoas possui a sua própria terra, este risco de iniciação é, obviamente, mais praticado, pois que a existência de um património traz consigo a necessidade de uma classificação clara de vínculos e alianças.

O Casamento é um rito classificatório semelhante, como já referi noutra ocasião. Depois da filiação ter sido claramente definida e registada em livro próprio, em 1867 mesmo os avós eram registados, e assim clarificada a rede de casamentos possível, o problema surge quando se procede a circulação de pessoas no território. O Casamento dispersa os homens e as mulheres pela terra ou por outros lugares, fixa uma nova categoria de parentes – os afins – e estabelece a base para a transmissão dos recursos produtivos, eliminando ao mesmo tempo tabus sexuais criados para o controlo da fertilidade humana. Ao mesmo tempo este rito, que declara que os bens de um homem ou de uma mulher passam a estar sob uma administração única e serão transmitidos aos filhos, com quem trabalharão toda a vida, tira a possibilidade de desentendimento ao casal e de ruptura do casamento, pois que, afinal foi Deus que os uniu, ao proclamarem o desejo dessa união. O mesmo Deus ajudará com riqueza a descendência apta a trabalhar, enquanto a promessa for mantida, mas torná-los-á pobres no caso de rompimento. Na realidade, durante anos não se registaram praticamente divórcios entre a população rural e existe também a aceitação pragmática de que a separação, quando acontece de facto, destroi a unidade laboral e o ciclo de desenvolvimento não atinge o ponto de transmissão de conhecimentos, recursos materiais e cuidados. Um novo modo de organização do trabalho, com os membros mais idosos da família tem de ser estabelecido, ou então restar-lhes-á o trabalho solitário da terra, só com a ajuda das criança. O Casamento torna-se a materialidade da produção de trabalhadores e da sua formação, constituindo um bureau de pessoal, uma vez que submete toda a capacidade de organização laboral ao pai e os cuidados das crianças à mãe. Em muitos locais o Casamento abre as portas à riqueza, quer através de dotes que dão possibilidade ao novo casal de se estabelecer, quer pelo estabelecimento de acordos patrimoniais para o futuro. É possível observar como o casamento e a produção de um primeiro filho pelo filho mais velho da casa irá definir um direito mais claro à herança que outras vias.

Entre Baptismo e Matrimónio, considerados como práticas religiosas, têm lugar os rituais da Confissão, Comunhão ou Eucaristia e a Confirmação, os dois primeiros praticados pela primeira vez por cada criança entre os 7 e os 10 anos, e depois repetidos pelo  menos uma vez por ano até à morte. Às crianças ser-lhes-á administrada a doutrina ou verdade revelada que, juntamente com a definição da lei canónica, pertence à ordem natural das coisas, tal como foi estabelecida pela divindade. Isto é, as crianças são introduzidas num corpo oral de conhecimentos que tem como finalidade estruturar um conjunto de relações sociais os valores através dos quais estas são veiculadas. Esta doutrina começa com a definição de que a felicidade é um valor a ser alcançado, que todos nós desejamos, mas que não é possível obter sem se pertencer a Deus, isto é, a um sistema de graça e circulação divinas. É esse Deus, essa vontade exterior, que providenciará felicidade se os homens se mantiverem dentro dos parâmetros de comportamento permitidos: aceitar Deus na sua categoria de Criador, admitir que os seres humanos não valem rigorosamente nada porque são pecadores, que têm de ser redimidos através do sacrifício de Cristo; redenção essa, a cargo do Espírito Santo, e que, por tudo isto é  necessário mantermo-nos afastados do pecado através da prática de um certo número de virtudes, nomeadamente: humildade, ajuda mútua, castidade, autocontrolo, fortaleza e diligência. De facto, a doutrina é uma combinação de definições de relações, tanto teológicas como práticas, em que as obrigações materiais surgem sancionadas ou perdoadas através de acções que pertencem à dimensão mítica do tempo. Por outras palavras, a doutrina é um corpo de conhecimentos que, oralmente repetido por toda a população, estabelece a base de um código de conduta que acaba por constituir um sistema fechado de conhecimentos que, em conjunto com a distribuição divina da riqueza dos senhores e dos pais aos trabalhadores e à geração seguinte, e pela manipulação do mundo material em relação com o tempo mítico, constitui um universo de referência dentro do qual as práticas religiosas são simplesmente um resultado público razoável desta organização racional da produção. Em tudo isto, os ritos do clero ajudam a administração dos laços mútuos entre as dimensões material e ideal utilizadas no trabalho do campo por meio do poder da palavra escrita e da explicação dos textos sagrados – a memória do povo, o padre.

O corpus total de conhecimentos que tem orientado a conduta dos camponeses foi preservado até há bem pouco tempo (anos 60) como texto sagrado, ao qual só é possível ter acesso através de estudos no seminário. E mesmo assim, toda a ciência era administrada a um simples padre. Há toda uma série de classificações de pescas em relação com o saber, e, consequentemente, como o poder através da palavra, daí as hierarquias do clero, que vão dos diáconos aos padres, abades, reitores, doutores, bispos e cardeais. Cada uma delas tem direitos diferentes sobre as pessoas, no que se refere às definições das suas relações e da sua permanência no corpo dos fiéis, isto é, entre aqueles que têm acesso à comunhão, à terra e ao trabalho, assim como ao lugar que cada um ocupará na vida do além. O mistério tem constituído a pedra basilar do sagrado: a palavra escrita que se apresenta como verdade revelada num mundo de tradição oral, com um argumento teológico num mundo de ordem natural pragmático, salvo da natureza e definido como divino, palavra essa que define acesso aos recursos, aos outros seres humanos e a um sistema de circulação da riqueza que, no fim, misturado como está com a verdade revelada, o camponês tem de compreender, pois é ele o trabalhador. Por esta razão, o mistério é revelado através da confiança na pessoa que o explica: padres rurais que possuem bens, comem e bebem como os demais e até muitas vezes se acasalam e produzem filhos. Isto é, a humanização do poder político que tem dominado a terra e controlado a riqueza tornou-se para eles um sistema ideal de relações que se adequa bem aos novos detentores da terra, o campesinato português que se estabeleceu recentemente em terra própria. Uma vez que a relação com os meios de produção permaneceu idêntica, o sistema de prática religiosa tem conhecido uma expansão à medida que aumenta a participação activa na produção rural de bens económicos, para a qual é desejável um bom ajustamento das leis civil e canónica. Assim, não é só o clero que se humaniza, também a prática do ritual é mais divulgada em paralelo com o controlo dos recursos que o camponês de Portugal conseguiu obter. Controlo, todavia, baseado num sistema laboral para o qual a lei canónica e a verdade revelada, ou ordem divina, se continuam a aplicar espantosamente como racionalidade reprodutiva. (…)

Raul Iturra
Jul.2011
do Aventar