sexta-feira, 28 de outubro de 2011

amigos e companheiros

Best Friends TogetherImage via Wikipedia



António Campos


a solidariedade é o bem mais prezado.

Dois conceitos de difícil definição. Dois conceitos relacionados com os sentimentos, com a interacção social. Conceitos diferentes para adultos e crianças, para classe social, para o tempo que passa e se escorre entre a cronologia da História e os hábitos definidos ao longo do tempo.

Normalmente, o conceito de amigo, é ser solidário com problemas, alegrias, amarguras, amores e desencantos das pessoas com quem convivemos em momentos e alturas diferentes. Por outras palavras, eu diria que é estar ao dispor de seres humanos que amamos e dos quais dependemos nas ideias, no trabalho e, especialmente, na educação das crianças que, por causa da nossa amizade de adultos, passam a ser não apenas pequenos que entendem em conjunto a interacção social, a dependência dos adultos e a disciplina que estes lhes incutem. Este comportamento separa já os dois conceitos que refiro: amigos e companheiros. A subordinação às formas de ser, agir, ouvir e aceitar, faz das crianças amigas e companheiras. O adulto, com maior experiência de interacção na vida social e na cronologia histórica acumulada no tempo, torna possível separar as duas palavras: amigo, dependente; companheiro, fidelidade sem condições. Acrescentaria ainda que, como conceito, amigo define uma hierarquia que depende do lugar social que a pessoa ocupa ou do lugar que alcançou na vida. Além desta ideia, tenho a ousadia de dizer que, perdida a hierarquia, a pessoa que se diz amiga acaba por não ter ninguém que o acompanhe: Difícil querer definir amigo.

Amigo é quem te dá um pedacinho do chão, quando é de terra firme que precisas, ou um pedacinho do céu, se é o sonho que te faz falta. Amigo é mais que ombro que aconchega, é mão estendida, mente aberta, coração pulsante, costas largas. É quem tentou e fez, e não tem o egoísmo de não querer compartilhar o que aprendeu. É aquele que cede e não espera retorno, porque sabe que o acto de compartilhar um instante qualquer contigo já o alimenta, satisfaz. É quem já sentiu ou um dia vai sentir o mesmo que você. É a compreensão para o seu cansaço e a insatisfação para a sua reticência.

É aquele que entende seu desejo de voar, de sumir devagar, a angústia pela compreensão dos acontecimentos, a sede pelo “porvir”. É ao mesmo tempo espelho que te reflecte, e óleo derramado sobre suas águas agitadas. É quem fica enfurecido por enxergar seu erro, querer tanto o seu bem e saber que a perfeição é utopia. É o sol que seca suas lágrimas, é a polpa que adocica ainda mais seu sorriso.

Este comentário, define essa interacção individual, hierarquizada na interacção amigável. Queria, ainda, recordar o leitor, as minhas lembranças das relações de Durkheim, Lenine, Marcel Mauss e a orientação que o saber de Marx soube entregar, enquanto todos estavam ainda vivos e em interacção, “espelho que te reflecte, e óleo derramado sobre a água agitada”, esses tempos partilhados enquanto as relações sociais mudavam na Europa.
As crianças aprendem as relações de amizade sem comentários, esses que eu ofereço ao leitor em jeito de companheira (ou nota de nota de roda pé). Companheira, enquanto queria definir companheiro ou a pessoa que substitui o amigo que partiu e desenvolve o seu legado, como Durkheim fez de Marx e Mauss de Durkheim e Lenine. Companheiro é quem desenvolve a amizade “companheiro é mais que ombro amigo, é mão estendida, mente aberta, coração pulsante, costas largas. É quem tentou e fez, e não tem o egoísmo de não querer compartilhar o que aprendeu.”

Queria acabar apenas com uma ideia: perdido o poder, o companheirismo suporta a amizade que parece ter fugido quando mais dela se necessita.

É-me imperativo perguntar, após escrita e como nota de fim: afinal, onde estão os amigos? (…)
(adaptado)
 Raul Iturra
Dez2010


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sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Os mitos

"O Basto" - estátua de guerreiro lus...Image via Wikipedia



António Campos


"Boa parte de nossa infelicidade nasce do fato de vivermos rodeados por mitos. Deixamos que aflorem e construímos em cima deles a nossa desgraça"

Boa parte de nossa infelicidade ou aflição nasce do fato de vivermos rodeados (por vezes esmagados ou algemados) por mitos. Nem falo dos belos, grandiosos ou enigmáticos mitos da Antiguidade grega. Falo, sim, dos mitinhos bobos que inventou nosso inconsciente medroso, sempre beirando precipícios com olhos míopes e passo temeroso. Inventam-se os mitos, ou deixamos que aflorem, e construímos em cima deles a nossa desgraça.

Por exemplo, o mito da mãe-mártir. Primeiro engano: nem toda mulher nasce para ser mãe, e nem toda mãe é mártir. Muitas são algozes, aliás. Cuidado com a mãe sacrificial, a grande vítima, aquela que desnecessariamente deixa de comer ou come restos dos pratos dos filhos, ou, ainda, que acorda às 2 da manhã para fritar (cheia de rancor) um bife para o filho marmanjo que chega em casa vindo da farra. Cuidado com a mãe atarefada que nunca pára, sempre arrumando, dobrando roupas, escarafunchando armários e bolsos alheios sob o pretexto de limpar, a mãe que controla e persegue como se fosse cuidar, não importa a idade das crias. Essa mãe certamente há de cobrar com gestos, palavras, suspiros ou silêncios cada migalhinha de gentileza. Eu, que me sacrifiquei por você, agora sou abandonada, relegada, esquecida? E por aí vai...

Ou o mito do bom velhinho: nem todo velho é bom só por ser velho. Ao contrário, se não acumularmos bom humor, autocrítica, certa generosidade e cultivo de afetos vários, seremos velhos rabugentos que afastam família e amigos. Nem sempre o velho ou velha estão isolados porque os filhos não prestam ou a vida foi injusta. Muitas vezes se tornam tão ressequidos de alma, tão ralos de emoções, tão pobres de generosidade e alegria que espalham ao seu redor uma atmosfera gélida, a espantar os outros.

E o mito do homem fortão, obrigado a ser poderoso, competente, eterno provedor, quando esconde como todos nós um coração carente, uma solidão fria, a necessidade de companhia, de colo e de abraço – quando é, enfim, apenas um pobre mortal.

Falemos ainda no mito da esposa perfeita, aquela da qual alguns homens, enquanto pulam valentemente a cerca, dizem: "Minha mulher é uma santa". Sinto muito, mas nem todas são. Eu até diria que, mais vezes do que sonhamos, somos umas chatas. Sempre reclamando, cobrando, controlando, não querendo intimidades, ocupadas em limpar, cozinhar, comandar, irritar, na crença vã de que boa mulher é a que mantém a casa limpa e a roupa passada. Seria bem mais humano ter braços abertos, coração cálido, compreensão, interesse e ternura.

O mito de que a juventude é a glória demora a ruir, mas deveria. Pois jovem se deprime, se mata, adoece, sofre de perdas, angustia-se com o mercado de trabalho, as exigências familiares, a pressão social, as incertezas da própria idade. A juventude – esquecemos isso tantas vezes – é transformação por vezes difícil, com horizontes nublados e paulatina queda de ilusões. É fragilidade diante de modelos impossíveis que nos são apresentados clara ou subliminarmente o tempo todo.

Enfim, a lista seria longa, mas, se a gente começar a desmitificar algumas dessas imagens internalizadas, começaremos a ser mais sensatamente felizes. Ou, dizendo melhor: capazes de alegria com aquilo que temos e com o que podemos fazer numa vida produtiva, porque real.


Lya Luft é escritora
Dez.2010

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sexta-feira, 14 de outubro de 2011

As desigualdades são a maior insegurança

Padrão dos Descobrimentos. The Monument to the...Image via Wikipedia

António Campos


No final de Novembro, com poucos dias de intervalo, Portugal foi palco de dois acontecimentos que mostram bem como existem, em linhas gerais, duas narrativas em disputa sobre o que se entende por segurança. O primeiro foi a Cimeira da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), que teve lugar em Lisboa a 19 e 20 de Novembro, e o segundo a Greve Geral de 24 de Novembro, a maior que o país conheceu em toda a sua história. A Aliança Atlântica privilegia uma concepção de segurança como resposta político-militar a ameaças que, em qualquer parte do globo, ponham em causa os interesses estratégicos dos seus Estados-membros. O movimento de contestação às políticas de austeridade que se traduziu na Greve Geral entende a segurança como a construção de sociedades de bem-estar, processo em que é dada prioridade ao combate às desigualdades socioeconómicas.

A primeira narrativa toma como um dado a existência, e até a multiplicação, de ameaças à segurança (das convencionais às sanitárias e ambientais), não actuando sobre as suas causas e acabando por recorrer a meios que tendem até a agravar os problemas A segunda narrativa procura intervir sobre as causas fundamentais da insegurança que corrói as sociedades (das assimetrias de rendimentos à injustiça fiscal, ao desemprego ou à pobreza), inserindo-se numa história de movimentos sociais que tem sido responsável pelas configurações de sociedades mais estáveis e morais, mais coesas e seguras, que conhecemos.

Sobretudo em momentos de crise como o que atravessamos, em que se tornam mais evidentes as escolhas envolvidas na afectação de recursos escassos e em que tendem a aumentar as respostas securitárias à legítima manifestação da discordância, seria útil que se deixasse de pensar, à boleia do que é veiculado pela generalidade da comunicação social, que do lado do conceito de segurança da OTAN está um qualquer consenso global sobre como garantir a paz e só do lado da concepção dos movimentos sociais existe uma posição não consensual, que traduz e gera conflitos internos. Mesmo correndo o risco de alguma simplificação, é importante que se compreenda que ambas as formas de entender a segurança correspondem a visões do mundo e à defesa de princípios e interesses que conflituam… com outros princípios e interesses. E que se compreenda também que em ambas as narrativas estão presentes leituras actualizadas da globalização neoliberal, que não estão presas a qualquer perspectiva do passado (a Guerra Fria ou o pré-crise), mesmo quando divergem, por exemplo, na necessidade de promover ou combater os mecanismos de desenvolvimento do capitalismo financeiro.
Atente-se em alguns aspectos da concepção de segurança mundial que está patente no «Novo Conceito Estratégico» aprovado em Lisboa na Cimeira da OTAN, intitulado«Compromisso Activo, Defesa Moderna». Em primeiro lugar, formaliza-se a associação entre defesa e segurança, alargando a esfera de actividade: da resposta aos ataques convencionais até à gestão de crises e à segurança colectiva. Daqui decorre a extensão, virtualmente à escala global, do perímetro geográfico de actuação para fora do espaço do Atlântico Norte, mesmo que a organização continue a definir-se como regional (formalizam-se práticas anteriores).

Aos novos espaços de actuação da organização juntam-se as novas parcerias e as novas alianças com diferentes actores políticos, militares e civis, bem como a definição das «novas ameaças» à «segurança do século XXI»: armas convencionais, nuclear, terrorismo, grupos extremistas, pirataria, ciber-ataques, actividades ilegais transnacionais (tráfico de armamento, narcóticos e seres humanos), ataques a vias de comunicação e de transporte de recursos estratégicos (controlo da energia, comércio…), bem como perigos para a saúde ou decorrentes das alterações climáticas, da escassez de água, etc. A Aliança Atlântica entende que todas estas «ameaças» vão «moldar o ambiente de segurança futura em áreas importantes» para os seus Estados-membros, ou seja, que a defesa dos interesses estratégicos (políticos, económicos…) destes países poderá suscitar, para todas essas ameaças, intervenções político-militares a oscilar entre a concertação, a persuasão e o conflito aberto.

Há que reconhecer que o instrumento político-militar forjado por este «Novo Conceito» está bem ajustado à geopolítica da globalização. A aposta num conceito ágil e capaz de se moldar à «instabilidade» e às «incertezas» do mundo contemporâneo não é uma indefinição ou fraqueza existencial, é uma opção estratégica e eficaz − preocupante. É uma resposta bem adaptada a dar segurança ao mundo líquido dos mercados financeiros, ao mundo dos conflitos pelo controlo dos recursos naturais «estratégicos» e ao mundo das alianças em constante (e imprevisível) reconfiguração. Um instrumento flexível, a meio caminho entre a substituição do «mundo unipolar» pela«renovação da nova liderança dos Estados Unidos» [1] e as novas disputas de hegemonia por parte de potências emergentes, como a China, de cujo desenvolvimento económico não resultará necessariamente um mundo multipolar.

Mas serão estes os verdadeiros perigos para a insegurança com que as sociedades hoje se confrontam e será o instrumento político-militar o mais adequado para lhes dar resposta? Será possível encarar o problema do fundamentalismo sem pôr fim à islamofobia ou sem resolver os problemas socioeconómicos das sociedades onde ele cresce, quando essas zonas são tratadas como interesses estratégicos devido ao acesso a recursos energéticos? Será possível resolver de forma justa conflitos sobre a água enquanto este bem escasso for tratado como recurso estratégico pelo qual se luta, e que ganhe o mais forte, em vez de ver visto como um bem comum? Será possível cuidar da saúde da humanidade com remédios político-militares quando a montante não se dá prioridade à garantia de que todos os cidadãos estão bem nutridos e têm acesso universal e gratuito a cuidados de saúde de qualidade?

Para o movimento sindical e social que ganhou corpo na Greve Geral de 24 de Novembro, o maior perigo para a segurança das sociedades, em particular a europeia, é actualmente essa concertação entre os governos nacionais e as instâncias da União Europeia para impor políticas cada vez mais austeritárias, que condenam as economias, sobretudo as periféricas, a espirais recessivas e que são acompanhadas de um aumento galopante das desigualdades socioeconómicas.

De acordo com este ponto de vista, a insegurança − a falta de autonomia, a angústia, o medo − tem como causa o processo de disputa do Estado pelo neoliberalismo que tem vindo a desviar os recursos e as finalidades dos poderes públicos, a que estão obrigados pelo contrato social democrático, para permitir a acumulação do capital financeiro e o aprofundamento das desigualdades socioeconómicas. O projecto neoliberal fá-lo através de rendimentos cada vez mais assimétricos, e não redistribuídos, de políticas fiscais que continuam a recusar-se a taxar o sistema financeiro (apesar de ser o responsável pela crise) e pela destruição activa dos mecanismos de segurança que as sociedades conseguiram construir através das leis laborais e dos serviços públicos (educação, saúde, segurança social…). O maior desafio à segurança do século XXI é a defesa do Estado social, do chamado modelo social europeu, que está a ser destruído pela própria União Europeia.

É a clarificação de posições divergentes que dignifica a informação e o debate de ideias e que permite que os cidadãos participem na democracia como coisa sua. A imagem meramente ritualista dos acontecimentos, seja ela positiva ou negativa, que ignora os seus contextos e o que de substantivo neles está em jogo, assemelha-se, na melhor hipótese, a esses alimentos-lixo que podem dar alguma satisfação momentânea mas são vazios de nutrientes ou, na hipótese pior (mas realista), esconde a imposição mediática de falsos consensos políticos que só traduzem uma relação de poder. E, nas condições actuais, bem se sabe de que lado está o poder, o dos que tudo podem fazer, sem nunca pagarem por isso, porque outros são sempre chamados a pagar a factura. Até que um dia a devolvam ao remetente, de preferência com juros de mora e indemnização por danos causados.


Notas
[1] Barack Obama, «Renewing American Leadership», Foreign Affairs, Julho de 2007.

por Sandra Monteiro
Dez.2010


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sexta-feira, 7 de outubro de 2011

A maior desgraça de uma nação pobre é que em vez de produzir riqueza, produz ricos. Mas ricos sem riqueza…

Mia Couto (Mozambican writer)Image via Wikipedia



António Campos


A maior desgraça de uma nação pobre é que em vez de produzir riqueza, produz ricos. Mas ricos sem riqueza.

Na realidade, melhor seria chamá-los não de ricos mas de endinheirados. Rico é quem possui meios de produção. Rico é quem gera dinheiro e dá emprego.

Endinheirado é quem simplesmente tem dinheiro. ou que pensa que tem. Porque, na realidade, o dinheiro é que o tem a ele.A verdade é esta: são demasiados pobres os nossos "ricos". Aquilo que têm, não detêm. Pior: aquilo que exibem como seu, é propriedade de outros. É produto de roubo e de negociatas.

Não podem, porém, estes nossos endinheirados usufruir em tranquilidade de tudo quanto roubaram. Vivem na obsessão de poderem ser roubados. Necessitavam de forças policiais à altura. Mas forças policiais à altura acabariam por lança-los a eles próprios na cadeia. Necessitavam de uma ordem social em que houvesse poucas razões para a criminalidade. Mas se eles enriqueceram foi graças a essa mesma desordem (...)

 Rico é quem possui meios de produção. Rico é quem gera dinheiro» dá emprego. Endinheirado é quem simplesmente tem dinheiro. Ou que pensa que tem. Porque, na realidade, o dinheiro é que o tem a ele. A verdade é esta: são demasiado pobres os nossos “ricos”. Aquilo que têm, não detêm. Pior, aquilo que exibem como seu é propriedade de outros. É produto de roubo e de negociatas. Não podem, porém, estes nossos endinheirados usufruir em tranquilidade de tudo quanto roubaram. Vivem na obsessão de poderem ser roubados.

Necessitariam de forças policiais à altura. Mas forças policiais à altura acabariam por os lançar a eles próprios na cadeia. Necessitariam de uma ordem social em que houvesse poucas razões para a criminalidade. Mas se eles enriqueceram foi graças a essa mesma desordem.

O maior sonho dos nossos novos-ricos é, afinal, muito pequenito: um carro de luxo, umas efémeras cintilâncias. Mas a luxuosa viatura não pode sonhar muito, sacudida pelos buracos das avenidas. O Mercedes e o BMW não podem fazer inteiro uso dos seus brilhos, ocupados que estão em se esquivar entre chapas muito convexos e estradas muito côncavas. A existência de estradas boas dependeria de outro tipo de riqueza Uma riqueza que servisse a cidade. E a riqueza dos nossos novos-ricos nasceu de um movimento contrário: do empobrecimento da cidade e da sociedade.

As casas de luxo dos nossos falsos ricos são menos para serem habitadas do que para serem vistas. Fizeram-se para os olhos de quem passa. Mas ao exibirem-se, assim, cheias de folhos e chibantices, acabam atraindo alheias cobiças. O fausto das residências chama grades, vedações electrificadas e guardas privados. Mas por mais guardas que tenham à porta, os nossos pobres-ricos não afastam o receio das invejas e dos feitiços que essas invejas convocam.

Coitados dos novos ricos. São como a cerveja tirada à pressão. São feitos num instante mas a maior parte é só espuma. O que resta de verdadeiro é mais o copo que o conteúdo. Podiam criar gado ou vegetais. Mas não. Em vez disso, os nossos endinheirados feitos sob pressão criam amantes. Mas as amantes (e/ou os amantes) têm um grave inconveniente: necessitam ser sustentados com dispendiosos mimos. O maior inconveniente é ainda a ausência de garantia do produto. A amante de um pode ser, amanhã, amante de outro. O coração do criador de amantes não tem sossego: quem traiu sabe que pode ser traído.

Os nossos endinheirados-às-pressas não se sentem bem na sua própria pele. Sonham em ser americanos, sul-africanos. Aspiram ser outros, distantes da sua origem, da sua condição. E lá estão eles imitando os outros, assimilando os tiques dos verdadeiros ricos de lugares verdadeiramente ricos. Mas os nossos candidatos a homens de negócios não são capazes de resolver o mais simples dos dilemas: podem comprar aparências, mas não podem comprar o respeito e o afecto dos outros. Esses outros que os vêem passear-se nos mal-explicados luxos. Esses outros que reconhecem neles uma tradução de uma mentira. A nossa elite endinheirada não é uma elite: é uma falsificação, uma imitação apressada.

A luta de libertação nacional guiou-se por um princípio moral: não se pretendia substituir uma elite exploradora por outra, mesmo sendo de uma outra raça. Não se queria uma simples mudança de turno nos opressores. Estamos hoje no limiar de uma decisão: quem faremos jogar no combate pelo desenvolvimento? Serão estes que nos vão representar nesse relvado chamado “a luta pelo progresso”? Os nossos novos ricos (que nem sabem explicar a proveniência dos seus dinheiros) já se tomam a si mesmos como suplentes, ansiosos pelo seu turno na pilhagem do país.

São nacionais mas só na aparência. Porque estão prontos a serem moleques de outros, estrangeiros. Desde que lhes agitem com suficientes atractivos irão vendendo o pouco que nos resta. Alguns dos nossos endinheirados não se afastam muito dos miúdos que pedem para guardar carros. Os novos candidatos a poderosos pedem para ficar a guardar o país. A comunidade doadora pode irás compras ou almoçar à vontade que eles ficam a tomar conta da nação. Os nossos ricos dão uma imagem infantil de quem somos. Parecem criancas que entraram numa loja de rebuçados. Derretem-se perante o fascínio de uns bens de ostentação.

Servem-se do erário público como se fosse a sua panela pessoal. Envergonha-nos a sua arrogância, a sua falta de cultura, o seu desprezo pelo povo, a sua atitude elitista para com a pobreza. Como eu sonhava que Moçambique tivesse ricos de riqueza verdadeira e de proveniência limpa! Ricos que gostassem do seu povo e defendessem o seu país. Ricos que criassem riqueza. Que criassem emprego e desenvolvessem a economia. Que respeitassem as regras do jogo. Numa palavra, ricos que nos enriquecessem. Os índios norte-americanos que sobreviveram ao massacre da colonização operaram uma espécie de suicídio póstumo: entregaram-se à bebida até dissolverem a dignidade dos seus antepassados. No nosso caso, o dinheiro pode ser essa fatal bebida. Uma parte da nossa elite está pronta para realizar esse suicídio histórico. Que se matem sozinhos. Não nos arrastem a nós e ao país inteiro nesse afundamento.

Mia Couto
Dez 2010

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