quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

A autodestruição da globalização neoliberal?

DSC01971Image via Wikipedia



António Campos



 “Face à depressão da procura agregada na Europa e nos Estados Unidos, os governos viram-se naturalmente para os mercados exportadores para aliviar o desemprego interno. Mas os países não podem ter todos, simultaneamente, excedentes comerciais. A tentativa de os alcançar levará a uma depreciação competitiva da moeda e ao proteccionismo.

Como Keynes, inteligentemente, observou, ‘se as nações aprenderam a alcançar o pleno emprego como políticas domésticas… não existiria um motivo para que um país precisasse de impor os seus produtos a outros ou rejeitar as ofertas dos seus vizinhos’. O comércio entre países ‘deixaria de ser o que é, um recurso desesperado para manter o emprego em casa forçando as vendas nos mercados estrangeiros e restringindo as compras’. Em vez disso, passaria a ser um ‘intercâmbio voluntário e sem impedimentos de bens e serviços em condições de vantagem mútua’.

Por outras palavras, a actual turbulência relacionada com as moedas e o comércio é o resultado directo do nosso falhanço em resolver os nossos problemas de emprego.”

Robert Skidelsky no Negócios. É um dos mais lúcidos economistas ou não fosse ele o principal estudioso do pensamento de Keynes. Isto permite-me sublinhar um ponto: a actual configuração da globalização pode bem estar em processo de autodestruição devido à austeridade generalizada, que alimenta o desemprego e erode o Estado Social. Acontece que um Estado social robusto, segundo indica alguma investigação empírica, é uma condição para a legitimidade da abertura comercial. Os neoliberais têm de ter cuidado com o que desejam.

A liberalização financeira e a abertura comercial desregrada são o problema. A refragmentação da economia global poderá ser necessária para que possam emergir modelos com maior enfâse na procura e na criação de emprego. Não resisto a invocar Keynes:

“Simpatizo com aqueles que querem minimizar, em vez de maximizar, as interdependências económicas entre as nações [ou os blocos regionais…]. Ideias, conhecimento, ciência, hospitalidade, viagens – estas são as coisas que, pela sua natureza, devem ser internacionais. Mas deixemos que os bens sejam produzidos localmente sempre que seja razoável e conveniente, e, sobretudo, asseguremos que a finança seja nacional. No entanto, aquele que querem reduzir as interdependências devem ser lentos e cautelosos. Não se trata de arrancar a planta pela raiz, mas de orientá-la lentamente para que cresça noutra direcção.”

Os acordos de Bretton Woods, que fixaram o quadro do pós-guerra, parcialmente inspirados pelas ideias de Keynes, previam mecanismos de controlo de capitais (a finança nacional) e criaram condições para que os países definissem o seu espaço de desenvolvimento através de uma abertura comercial gerida (orientar a planta). Só faltou o crucial bancor, parte de um projecto de gestão politica supranacional que evitasse a acumulação de défices e de superávites comerciais persistentes.

Temos de imaginar soluções razoáveis e convenientes para o trilema da economia política internacional e para a insustentável acumulação de brutais desequilíbrios, expressão da perversa configuração da globalização. A planta europeia também deveria poder crescer noutra direcção, antes que alguém a arranque. O proteccionismo pragmático é um bom antídoto contra a emergência da xenofobia e do nacionalismo agressivo, filhos das utopias (neo)liberais…

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do Ladrões de Bicicletas de noreply@blogger.com (João Rodrigues)

Out 2010


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segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Felizmente há a França

Crowds of French patriots line the Champs Elys...Image by The Library of Congress via Flickr



António Campos


Quando milhões de franceses se movimentaram para protestar contra o aumento da idade da reforma dos 60 para os 62 anos, não faltou quem lhes viesse com as ameaças do costume: Olhem que aqui ao lado, na Alemanha, é aos 67... Vejam lá, não refilem muito, senão ainda vos pode acontecer o mesmo... Vá lá, sejam realistas... Não queiram viver acima das vossas possibilidades...

Mas os franceses, honra lhes seja feita, são gente bem menos submissa que os alemães, e menos cegos à nudez do rei quando este calha de ir nu. E assim, quando um jornalista televisivo confrontou um manifestante anónimo com aquela argumentação, recebeu como resposta que a produtividade francesa era hoje o dobro do que há vinte anos, pelo que não havia nada de irrealista nas suas reivindicações.

Ora acontece que nos vinte anos anteriores a produtividade cresceu ainda mais - como não podia deixar de crescer dados os enormes e espantosos avanços tecnológicos a que temos assistido. Ou seja: entre 1970 e 2010, a produtividade mais que quadruplicou. Ou seja, para quem não está a ver o alcance deste facto: cada hora de trabalho humano vale hoje por quatro horas em 1970.

Este número poderá mudar se considerarmos factores de ponderação como o factor demográfico, num sentido, ou no sentido oposto a entrada para o grupo dos países desenvolvidos de outros que não faziam parte dele há 40 anos. Um facto subsiste: o Mundo está hoje muito mais rico do que estava há 40 anos. Se o ócio é um luxo e custa caro, somos suficientemente ricos para o pagar; e parece que em todo mundo ninguém entende isto a não ser os franceses.


Se abstraíssemos do politicamente possível e considerássemos apenas o objectivamente possível, podíamos ter hoje horários de trabalho de dez horas semanais; ou salários quatro vezes mais altos; ou reformas aos 45 anos; ou um qualquer compromisso que combinasse estes bens segundo a vontade de cada um e a vontade democraticamente expressa dos povos. Uma jornalista portuguesa de direita ironizava, não há muitas semanas, com aqueles "atrasados" que ainda sonham com a Suécia dos anos 70. Cometeu aqui um erro de diagnóstico: não sonhamos, exigimos; e não queremos a Suécia dos anos 70: queremos muito mais e muito melhor.

Se isto parece utópico, tal não se deve a qualquer impossibilidade objectiva, mas sim a uma impossibilidade política. Nem os mercados, nem nenhuma lei natural alguma vez determinaram a distribuição da riqueza ou do ócio. Hoje, como há dez mil anos, o melhor bocado cabe sempre ao mais forte. E se hoje a maioria dos seres humanos não recebe o dividendo que lhe cabe do progresso económico e tecnológico das últimas décadas, isto deve-se a um facto e a um facto só: há poder a mais nas mãos erradas e poder a menos nas certas.

Utopia? Não há nada de utópico em "exigir o impossível" quando o impossível só o é politicamente. Se queremos falar de utopia, falemos do discurso da inevitabilidade inaugurado por Reagan e Thatcher e repetido hoje, até à saturação, pelos economistas mediáticos, pelos medinacarreiras, pelos tonibleres e pelos "socialistas" da Terceira Via - todo ele um jogo perverso de utopias que visa convencer-nos que o impossível é possível e o possível impossível.

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De noreply@blogger.com (JOSÉ LUIZ SARMENTO)
Out 2010


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sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

De Wall Street à periferia de Maputo

Maputo market, Praça dos Combatentes - Mercado...Image via Wikipedia

António Campos


Dos protestos populares que tiveram lugar nos bairros da periferia de Maputo no início de Setembro, a opinião pública portuguesa, mesmo a mais informada, ter-se-á apercebido apenas de um reduzido número de elementos: a causa da insatisfação generalizada (o aumento dos preços do arroz, pão e outros bens essenciais); a intensidade dos protestos e a violência da repressão policial subsequente (que causou 13 mortos e centenas de feridos); e o desfecho, desta feita favorável às pretensões dos manifestantes (o anúncio, por parte do governo moçambicano, de 25 medidas visando reduzir o custo de vida, entre as quais o congelamento do preço dos produtos alimentares em causa).

Difíceis ou impossíveis de descortinar por entre a espuma dos dias, tal como habitualmente veiculada pela maior parte da comunicação social, foram os factores estruturais subjacentes a este episódio. E estes foram, e são, de diversa ordem. Paulo Granjo, num excelente artigo na edição portuguesa do Le Monde Diplomatique (Outubro), chama a atenção para um dos aspectos da questão: o cisma entre a maior parte da população moçambicana e a classe política. Uma crise de representatividade no contexto de uma economia e de uma sociedade crescentemente duais, em que o progressivo desmantelamento das estruturas de solidariedade comunitárias e tradicionais não se tem feito acompanhar pelo preenchimento, por parte do Estado “moderno”, das funções sociais que dele são esperadas.

Porém, o facto da cadeia ter quebrado precisamente pelo elo dos preços dos produtos alimentares, tem, ele próprio, causas estruturais mais amplas. Recuemos no tempo até 2008, àquela que foi uma crise alimentar mundial de proporções inusitadas – por mais que tal possa ter passado em grande medida despercebido nos países do ‘Norte’. Nessa altura, o aumento dos preços dos alimentos reflectiu-se, por exemplo, no facto do índice de preços alimentares da FAO - um índice compósito que incorpora os preços internacionais dos cereais, arroz, açúcar, óleos e gorduras, leite e derivados e carne – ter quase duplicado face ao valor de 2003-2004. Entre as consequências, um acréscimo em mais de 150 milhões no número de pessoas em situação de fome a nível mundial, para além de protestos ou motins em mais de 30 países - como recorda este artigo do The Guardian.

Ora, após um período de relativa acalmia, estamos novamente perante a iminência de uma nova crise mundial dos preços dos alimentos - de que os tumultos de Maputo terão constituído um dos primeiros sintomas. O índice da FAO está já muito próximo do nível de 2008 e são já muitas as vozes que alertam para o perigo iminente e para as suas potenciais consequências.

Tanto em 2008 como agora, quais as causas destes aumentos dos preços dos alimentos? Johnston e Bragawi, do Centre for Development Policy Research de Londres, enumeram-nas neste resumo de um simpósio sobre o tema. Algumas são conjunturais: choques climáticos, como secas ou inundações. Mas as principais são de natureza estrutural. Falarei de algumas delas em próximas postas. Para já, assinalo apenas que, em lugar de destaque, surge a crescente entrada de fundos especulativos no mercado internacional dos produtos alimentares. Muito longe de contribuir para qualquer suposta “eficiência” na determinação dos preços, neste como noutros mercados, a combinação de açambarcamento e especulação associada à penetração do capital financeiro tem, nesta como em muitas outras áreas, consequências sociais e humanas devastadoras. Da ganância bolsista ao desespero nas periferias do Sul, vai apenas um passo: o descontrolo e desregulação dos mercados.

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terça-feira, 14 de dezembro de 2010

A anestesia pelo Blog “Ladrões de bicicletas”

Old Europe, New Europe, Core EuropeImage via Wikipedia



António Campos


Como sabemos, a política recessiva que o Governo se propõe executar em 2011 foi saudada em todos os quadrantes neo-liberais, mas com esta ressalva: só resulta se houver “reformas estruturais”. E o Ministro das Finanças pressurosamente concordou.

Mas não se trata de reformar tudo o que for preciso para tributar a “economia paralela”, aceder com rapidez às contas bancárias sempre que haja suspeita de evasão fiscal, e muito menos encerrar o “paraíso fiscal” da Madeira. Nem se trata de preparar políticas de inovação consensualizadas com os actores relevantes para promover a melhoria da competitividade das pequenas e médias empresas (a esmagadora maioria) cujos empresários têm regra geral baixas qualificações, ausência de visão estratégica e falta de lucidez para reconhecer que só teriam a ganhar em competir pela diferença. Aliás, ao defender a redução de salários, a CIP já assumiu que os empresários que representa (felizmente há excepções) apenas sabem competir com baixos custos salariais (obviamente, os carros de luxo do patrão e da família, entre muitos “outros custos”, são migalhas irrelevantes).

Não, para os neo-liberais, fazer “reformas estruturais” significa fragilizar o mais possível os que apenas têm o trabalho para viver: reduzir o poder negocial dos assalariados, aumentar a precariedade dos contratos, introduzir a arbitrariedade no despedimento, reduzir (em montante e em tempo) o apoio financeiro aos desempregados, mercantilizar a saúde, expandir os fundos de pensões para lançar os descontos no jogo da “economia casino”, privatizar os CTT, etc.
De facto, o que une a CIP quando clama pela redução dos salários no sector privado, o Ministro das Finanças quando pressiona para que se esqueça o acordo sobre o aumento do salário mínimo, a OCDE quando recorda que é preciso desmantelar negociações colectivas entre patrões e sindicatos, o FMI e decisores da UE, o que os une a todos é a ideologia neo-liberal.

Acreditam que o crescimento das economias é fundamentalmente determinado pelo que acontece do lado da oferta, em particular no mercado de trabalho. Obviamente, tratam o trabalho como qualquer mercadoria. Por isso sempre disseram que a causa do desemprego na Europa, em nível elevado já antes da presente crise, resulta da “rigidez” do mercado de trabalho e da existência de um “insustentável” Estado Providência.

Acontece que essas explicações são pura ideologia, uma amálgama de ideias inspiradas nos clássicos do século XIX (ver aqui) que nunca foram adequadamente sustentadas por estudos académicos. Para desespero de algumas mentes brilhantes que se dedicam a torturar as estatísticas até que estas validem as suas ideias pré-concebidas. Pouco lhes importa que a Grande Depressão ou a presente crise já os tenha desmentido (afinal, onde está a grande inflação com que ainda há pouco nos queriam assustar?).

Como conclui David Howell num estudo bem fundamentado onde critica a visão neo-liberal do mercado de trabalho, “Há uma explicação menos elegante mas mais convincente, … uma explicação que nos diz terem sido os trabalhadores menos qualificados que pagaram o preço de uma procura agregada débil, de reestruturações sectoriais e mudanças demográficas, da mobilidade acrescida da produção industrial e do capital financeiro, e da desregulamentação do mercado de trabalho.”

É pois com a ideologia neo-liberal que as televisões estão a tentar convencer-nos que facilitar o desemprego é bom para a economia portuguesa. É uma pena, mas tem de ser. O sacrifício dos desempregados e da classe média-baixa é necessário para aplacar os “mercados financeiros”. E se os (ainda) empregados aceitarem de bom grado descer os seus salários nominais (reparem que nunca mostram as contas), acabarão por relançar o crescimento económico … mesmo sem que haja procura!

A população está a ser intoxicada com a retórica do “é inevitável e é para o nosso bem”, ao mesmo tempo que se insinua: e se houver protestos ainda vai ser pior. É que os mercados financeiros têm aversão a manifestações. Gera incerteza sobre os ganhos esperados.
Porém, algo me diz que desta vez a anestesia vai ter mais dificuldade em pegar. É apenas uma intuição porque estamos no domínio da incerteza radical. Como se resolverá a tensão política entre a Alemanha e a periferia da UE (este artigo coloca bem a questão)? Em Portugal, e no resto da periferia, será possível converter o protesto social em alternativa de governo?

É tempo de pensar o impensável (ler isto). Ou, como diz o “Manifesto dos economistas aterrorizados”, é tempo de discutir a refundação da construção europeia.

PUBLICADA POR JORGE BATEIRA


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quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Erros Judiciários e Negligência Estatística

the hall of justiceImage by martins.nunomiguel via Flickr



António Campos


Não sei se Carlos Cruz, Ferreira Diniz, Hugo Marçal e José Abrantes são inocentes ou culpados. Não sei se são todos inocentes, não sei se são todos culpados, e não sei se alguns deles são inocentes e os outros culpados. Esta minha dúvida é perfeitamente correcta no plano formal, uma vez que obedece ao princípio da presunção de inocência até trânsito em julgado . Essa correcção não impedirá, contudo, que caia sobre a mim a ira de quem tem sempre certezas e que mais facilmente perdoa a quem tem a certeza contrária do que a quem manifesta dúvidas.

O pior é que também tenho dúvidas sobre a culpa de Leonor Cipriano, dúvidas estas que se mantêm mesmo depois de a condenação dela ter transitado em julgado. Ao manifestar esta dúvida já não me estou a manter no âmbito do Direito, mas a extravasar para o terreno muito mais escorregadio da Justiça.

Todos sabemos que o Direito e a Justiça não coincidem completamente; e sabemos, além disso, que é extremamente improvável que alguma venham a coincidir em qualquer parte do mundo. Mas esta consciência da realidade não nos dispensa, a nós cidadãos, nem aos legisladores, nem aos juízes, de procurar alargar o mais possível a zona de intersecção entre os dois terrenos. A perversidade da justiça portuguesa está antes de mais nada na fuga sistemática a este dever.

Quod non est in acta non est in mundo. Isto é o mesmo que dizer que o juiz só pode decidir com base no que está no processo. Para que um qualquer sistema de justiça funcione, este princípio é, infelizmente, indispensável. Digo "infelizmente" porque basta reflectir um pouco para ver que podem resultar dele muitas injustiças; digo indispensável porque da sua ausência resultariam muitas mais, e piores.

O que não se deve é fazer dele uma leitura perversa, da qual resulta que a justiça e a verdade substancial não contam para nada, e que para que tudo esteja bem resolvido basta que bata certo no papel. A acta não é o mundo, mas o que se inclui ou exclui dela tem consequências no mundo. A decisão de incluir umas coisas no processo e excluir outras é o campo onde se joga a intersecção do Direito com a Justiça. E se esta intersecção for demasiado restrita; se os operadores judiciais caírem na deformação profissional de ver no Direito um fim em si mesmo e não um instrumento ao serviço da Justiça; se chegam mesmo a ver na Justiça um empecilho e um incómodo para o funcionamento suave e decoroso da (apropriadamente chamada) máquina judicial - uma espécie de mosquito zumbidor que distrai os digníssimos magistrados da tranquila e douta redacção dos seus acórdãos e sentenças - então bem podemos perguntar para que raio serve o Direito.

A ideia de que o Direito se esgota em si mesmo leva directamente à ideia de que o erro judiciário é impossível. Se não há mundo para além da acta, e se o que está na acta bate certo, então não se pode falar de erro. Leonor Cipriano talvez esteja inocente no mundo real, mas isso que interessa se é indubitavelmente culpada no papel? A sentença transitou em julgado, não transitou? Então porque carga de água é que andam para aí alguns maluquinhos a manifestar dúvidas sobre um processo que já está terminado e a ganhar poeira nos arquivos?

Talvez porque as grades da cadeia em que ela está não são feitas propriamente de papel. Mas isto não é facto que possa entrar na cabeça dos nossos magistrados. Não está na acta, portanto não está no mundo.

É propositadamente que escrevo aqui sobre a Leonor Cipriano em vez de continuar a escrever sobre os condenados no processo Casa Pia. Este está ainda demasiado presente para que o possa tratar com a frieza que entendo necessária.

Um inocente punido é um horror sem nome, e no entanto o que mais me horroriza não é a possibilidade (mera possibilidade, entenda-se) de esta ou aquela pessoa ser condenada injustamente. Mais horrível que esta possibilidade é a certeza, baseada na lei das probabilidades, de que neste preciso momento há inocentes a cumprir pena. Quantos e quais, não sabemos.

E é nesta ignorância que reside o horror maior. No nosso país não há estudos exaustivos nem estatísticas fiáveis. Se quisermos comparar números com os dos EUA, por exemplo, não poderemos fazê-lo. Há números para os EUA, desdobrados estado a estado, idade a idade, etnia a etnia, tipo de crime a tipo de crime. Mas não os há para o nosso país.


Que saibamos, a situação em Portugal tanto pode ser melhor, como igual, como pior do que a situação em qualquer outro país, incluindo o Afeganistão ou a Somália. No limite e em tese, é claro. É mesmo possível, também no limite e também em tese, que em Portugal todos os condenados estejam inocentes.

Ou melhor, possível não é, pelas mesmas razões probabilística por que não é possível que sejam todos culpados. Mas só por estas. E estas não bastam.

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Out.2010

JOSÉ LUIZ SARMENTO

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terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Economia da depressão?

How to Overcome DepressionImage by kevindooley via Flickr



António Campos


Vale a pena ler o artigo de Ana Matos Pires sobre saúde mental e sobre os meios ou sobre a falta deles em plena austeridade assimétrica. Enfim, ainda há quem, como Pacheco Pereira no Público, consiga escrever que “os ricos terão depressões e os pobres desespero” (cito de memória). O que é que isto quererá dizer? Que as depressões são uma espécie de bem de luxo? O “desespero” não será depressivo? Realmente, o que afirma Pereira pouco interessa.

Portugal é o maior consumidor de antidepressivos da União. Será que, como parece indicar alguma investigação internacionalsobre os determinantes sociais da saúde, isto pode ter alguma relação com o impacto da crise socioeconómica permanente num país tão abismalmente desigual, num país com tão cavadas divisões de classe, num país com estruturas tão propensas à geração de sofrimento social, por exemplo, na esfera laboral, que se crava nos corpos e nas mentes dos indivíduos e se calhar até mais nos que ocupam posições subalternas? Um sistema que gera sofrimento no trabalho, um país com horários intermináveis e más condições de trabalho para muitos, relações laborais autoritárias e muita insegurança laboral; fora do trabalho nem se fala: o desemprego corrói a auto-estima.

Estes custos sociais do capitalismo medíocre estão estudados? Há alguma tradição de investigação que se debruce sobre o contributo da estrutura socioeconómica para os problemas de saúde mental em Portugal? Sabemos que somos dos países onde as pessoas se sentem mais infelizes e menos confiam umas nas outras, uma armadilha social típica de sociedades desiguais. Isto está tudo ligado? É tudo infinitamente mais complicado, tão complicado que é impossível identificar padrões e mecanismos com alguma segurança? Alguns psiquiatras têm aflorado estas questões nos jornais, mas de forma muito impressionista.

Out.2010
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João Rodrigues


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quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

A relação finança - fome

zoriah_kenya_famine_kakuma_refugee_camp_irc_in...Image by Zoriah via Flickr



António Campos


Retomando o tema do meu último post(a relação entre a penetração do capital financeiro e a crise alimentar mundial - ou, de forma sumária, o nexo finança-fome), gostaria agora de acrescentar algumas notas.

A primeira é para assinalar que, aquando da crise de 2008, o Nuno Teles discutiu já este tema nos Ladrões de Bicicletas.(...)

A segunda é para sublinhar que embora também existam causas “reais” para o aumento dos preços mundiais dos alimentos ao longo dos últimos anos, estas não explicam a crise de 2008, nem a que está actualmente iminente(...). Se estivéssemos perante um crescente desequilíbrio de longo prazo entre a procura e a oferta reais, correctamente antecipado pelos “mercados”, não haveria motivos razoáveis para o aumento dos preços ter sido tão brusco a partir de 2006-07, nem para estes terem decaído significativamente a partir de meados de 2008. Seria de esperar, isso sim, um aumento mais ou menos constante dos preços, eventualmente seguido da sua estabilização. Ora, aquilo a que assistimos é uma muito significativa tendência de aumento a par de uma forte e crescente volatilidade.

Existem efectivamente factores “reais” que têm tido algum impacto sobre a tendência – e a eles havemos de regressar numa próxima oportunidade. Mas o que explica a maior parte do aumento e da volatilidade nos últimos 4-5 anos é mesmo o afluxo massivo de capital financeiro com intenções especulativas. Como explica Jayati Ghosh neste artigo, esse afluxo deveu-se a um movimento, de proporções gigantescas, em busca de posições em activos baseados em mercadorias como o
ouro ou os produtos alimentares, no contexto do rebentamento de bolhas especulativas em sectores como o imobiliário. Por sua vez, a queda dos preços no final de 2008 deveu-se à necessidade de muitos destes investidores aumentarem os seus níveis de liquidez para fazer face às perdas ocorridas no auge da crise financeira. E voltamos agora a assistir à recuperação em pleno da tendência de aumento dos preços (e à iminência de crises de insegurança alimentar), à medida que estes investidores restabelecem progressivamente as suas posições, beneficiando das gigantescas injecções de liquidez que os bancos centrais proporcionaram ao sistema financeiro. Na ausência de novas regras, o crédito concedido não está a financiar a recuperação económica, mas sim a voltar a alimentar a especulação financeira.

Como também explica Ghosh no artigo referido em cima, para tudo isto contribuiu sobremaneira a Lei da Modernização dos Contratos de Futuros sobre Mercadorias, introduzida em 2000 nos EUA (onde se situa o epicentro do mercado mundial de produtos alimentares). Ao abolir os limites quantitativos sobre os contratos de futuros sobre mercadorias, permitir a entrada no mercado por parte de compradores e vendedores sem qualquer relação com a oferta e procura “reais” e eliminar todos os requisitos em matéria de supervisão, esta Lei veio na prática criar uma gigantesca e volátil procura “fictícia” no mercado de futuros – que se reflecte prontamente nos preços do mercado “spot” (aos quais estão sujeitos os vendedores e compradores “reais” de alimentos).

Desregulação, especulação, aumento e volatilidade dos preços dos alimentos. A fome é política.

adaptado nos segundo e terceiro parágrafo, com a devida vénia- Out.2010

(Alexandre Abreu) Do Ladrões de Bicicletas
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