segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Compreensão do problema social da velhice

the old peopleImage by &y via Flickr


António Campos

Apesar da enorme multiplicidade de situações que a história e a etnologia nos dão a conhecer, é possível afirmar que de um modo geral as pessoas iam envelhecendo sem que isso lhes conferisse um estatuto à parte, isto é, sem que houvesse instituída uma idade a partir da qual se passasse a ser velho. Com o passar dos anos, as transformações que ocorreram nas sociedades industrializadas e o gradual envelhecimento das suas populações proporcionaram as condições para que socialmente se começasse a considerar a velhice como situação problemática a necessitar de apoio social. A velhice tornou-se um problema social e passou a mobilizar gente, meios, esforços e atenções suficientes para que qualquer um disso se aperceba. A ela está vulgarmente associada a ideia de pobreza ou, pelo menos, da escassez de meios materiais, de solidão, doença e também, de alguma forma, de segregação social, corte com o mundo (...).

A sociologia, não só pela história da sua origem, mas também pela evolução que conheceu posteriormente, tende a ser associada à resolução dos problemas sociais do momento. A maior parte dos trabalhos desenvolvidos por Durkheim tinham por objectivo resolver situações de crise na sociedade da época. Na actualidade, um grande número de investigações são orientadas para problemas bem conhecidos de todos como a droga, o desemprego, a criminalidade, a velhice, entre outros. Segundo Pierre Bourdieu:"cada sociedade, em cada momento, elabora um corpo de problemas sociais" tidos por legítimos, dignos de serem discutidos, públicos, por vezes oficializados e, de certo modo, "garantidos pelo Estado". Espera-se do sociólogo um contributo para a resolução dos problemas. Este, à partida, conhece dos fenómenos o que lhe foi socialmente dado a conhecer, isto é, ele identifica os problemas na realidade envolvente, reconhece-os tal como se apresentam aos olhos de todos. Os outros contribuem para confirmar e solidificar o que ele vê, tornando essa realidade uma realidade evidente e coerente (…).

Em certos casos, como o da velhice, por exemplo, o envolvimento afectivo e emocional contribui ainda mais para dificultar a libertação, repercutindo-se na forma como se concebe e explica a realidade social. O problema social da velhice nos nossos dias, por todos conhecido e suficientemente divulgado pelas instâncias políticas e pelos meios de comunicação social, é produto da construção social resultante do confronto de ideias e de interesses entre grupos sociais e entre gerações, de modo a obter o poder da manipulação sobre as classes de idades. Este estado de relações de força é histórica e etnicamente diferenciado. O objecto de estudo do sociólogo é reconstituir estes processos sociais, identificando os agentes que os levam a cabo, as estratégias que utilizam, as gerações e os grupos sociais a que pertencem, de modo a compreender a lógica de exclusão social a partir de um certo limiar de idade (…)

Estamos perante um dos exemplos mais característicos de investigação em que a formulação do objecto de estudo exige a reconstituição da história social do problema em causa. Para Remi Lenoir "a sociologia da velhice, resulta de uma divisão não científica da sociologia que se constituiu em relação ao aparecimento de um problema social". O estudo sociológico da velhice exige começar por romper com as concepções dominantes do que é ser velho, procurando observar, por um lado, as distinções existentes entre diferentes categorias de agentes e, por outro, os contextos em que os fenómenos se desenvolvem, as representações que vão adquirindo forma e os, problemas sociais que vão surgindo. É romper com a visão comum que tem tendência a tratar uma categoria de idades como se fosse um grupo de agentes não diferenciados, dotados das mesmas propriedades substanciais, inscritas numa espécie de essência biológica, conhecidas e reconhecidas por todos, pois remetem para uma representação mental que lhes é comum.

Este itinerário científico é o prosseguido por Remi Lenoir em L' invention du troisieme âge. Segundo este autor o surgimento da terceira idade, categorização segundo a qual se é socialmente considerado velho, é o resultado de um processo de construção da representação da velhice encarada como problema social. Ser velho representa ser diminuído, carenciado, alguém que precisa da nossa solidariedade, da nossa ajuda. Na génese deste processo estão algumas transformações estruturais da sociedade, como a generalização dos sistemas de reforma cuja aplicação se relaciona com modificações nos modos de gestão do trabalho, ou seja, a generalização do trabalho assalariado.

Historicamente, o problema social da velhice coloca-se, de início, associado à miséria em que se encontravam os operários de idade avançada, que por razões fisiológicas de perda de capacidades que lhes reduzia as potencialidades para o trabalho e consequentemente os afastava dos circuitos de produção. A falta de meios de subsistência próprios e de auxílio familiar, que, ou por afastamento, ou por ruptura dos laços de solidariedade, promovia situações de pobreza extrema.

O surgimento das primeiras reformas ficou a dever-se a dois tipos de factores: aos movimentos sindicais, que adquiriram capacidade de se impor, especialmente em locais de grande concentração industrial, e à necessidade de o patronato, e mesmo alguns organismos estatais da época, apaziguarem situações de conflito e mesmo procurarem recompensar o trabalho dedicado de alguns operários.

Com as transformações económicas e sociais da segunda metade do século XX, o capital dominante na determinação da posição social passou a ser o capital escolar. Apesar de a sua aquisição depender, em parte, do empenhamento da família, ele não é um bem transmissível através de herança como o capital fundiário ou financeiro. A herança perde importância a par com a possibilidade de herdar e deserdar. O capital escolar pode ser transformado em capital social, cultural, económico, dependendo para tal do campo em que o agente detentor se move e tem a particularidade de se incorporar no próprio indivíduo. A família, mesmo que bem dotada escolarmente, não tem capacidade de interferir completamente neste processo. Deixa de ser fundamental na transmissão do capital, que é neste caso o capital escolar, afectando profundamente a forma como se relacionavam as gerações.

Lentamente, a par com a emergência de sistemas de reforma inicia-se um processo de transferência de responsabilidades dos filhos para a sociedade, mais concretamente para o Estado, o trabalhador e a entidade empregadora, através de compromissos que adquirem formas variadas. Os filhos vão ficando dispensados do dever sagrado de cuidar dos pais. E, gradualmente, vão-se modificando a natureza e a intensidade dos laços que unem tradicionalmente as gerações (…).

Em síntese, podemos afirmar que o problema fundamental é a institucionalização do encargo social da velhice em que a sociedade em geral se substitui aos filhos e o que eram anteriormente problemas individuais e privados, por isso vividos dentro do âmbito estrito da família, vão escapando para o exterior e sendo assumidos como problemas de todos, que vão precisar de resolução colectiva. É todo um trabalho de mobilização no sentido de levar ao reconhecimento e legitimação do problema como tal, o que pressupõe a existência de grupos interessados em produzir uma nova categoria de percepção do mundo social, levando mesmo a grandes campanhas de promoção de modo a inseri-la dentro das preocupações sociais de momento. Entre os agentes intervenientes neste processo está o Estado, a instância legítima de resolução dos problemas decorrentes da vida pública, que detém um dos maiores poderes, segundo Pierre Bourdieu, que é o de "produzir e impor (nomeadamente pela escola) as categorias de pensamento que aplicamos espontaneamente a todas as coisas do mundo e até ao próprio Estado". Ao apropriar-se da resolução do problema social da velhice o Estado, através das organizações públicas e para-públicas directamente envolvidas e da acção dos agentes que nelas trabalham, tem contribuído fortemente para a institucionalização do problema e a construção das representações do que é ser velho, que lhe estão associadas (…)

A instauração dos sistemas de reforma e, de modo mais amplo, dos sistemas de segurança (de saúde, materno-infantil, etc.) que surgem em todos os países industrializados desde o século XIX consistem, no essencial, na transferência, para mecanismos despersonalizados e burocratizados, dos processos de redistribuição e encargo que anteriormente eram da responsabilidade das famílias ou de outras instâncias similares, mas no contexto da vida privada. No que respeita ao encargo das gerações mais velhas, a passagem faz-se da negociação dos custos e obrigações decorrentes de pessoa a pessoa, no âmbito privado da família, para instâncias despersonalizadas e burocratizadas em que as relações entre os agentes se operam de forma anónima, ignorando mutuamente as suas existências.

Com esta nova forma de gestão dos problemas sociais resultantes da velhice e do envelhecimento demográfico os conflitos de interesses reduzem-se a "confrontações entre responsáveis político-administrativos e especialistas de instituições". A evolução das relações entre gerações é, desta forma, mediatizada por aquilo que se designa vulgarmente por política social.

Fonte : Velhice e Sociedade, Ana Alexandre Fernandes, (adaptado)


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