sexta-feira, 29 de junho de 2012

O Café Marx




... e a Doença de Alzheimer.

«Envelhecer significa a transformação gradual (ou antes, súbita) de um mundo de rostos familiares (quer seja de amigos ou de inimigos) numa espécie de deserto habitado por rostos estranhos. Por outras palavras, não sou eu que me retiro do mundo, é o mundo que se desfaz». (Hannah Arendt)

Goethe definiu o envelhecer como o retirar-se gradualmente da aparência. Porém, quando começou a envelhecer, Hannah Arendt viveu essa separação do mundo, não como retirada do mundo, mas como o próprio mundo a retirar-se à sua volta, ou melhor, como a progressiva dissolução de um mundo de seres prontos a acolher o seu aparecer, através do desaparecimento desses seres. Arendt capta e tematiza uma experiência universal: a morte dos outros próximos, amigos ou inimigos, faz de nós órfãos de mundo: o nosso mundo começa a estreitar-se e a retirar-se gradual ou subitamente até ao seu desaparecimento final.

De certo modo, o crescimento e o envelhecimento são etapas opostas do ciclo vital: o envelhecimento estreita os horizontes do nosso mundo, definidos e traçados pelos adultos – esses estranhos cartógrafos remotos que traçam o mapa do nosso sistema localizado de relações de conflito ou de cooperação no mundo - durante o nosso período de crescimento. Os endereços que coleccionámos durante este período de expansão - com o objectivo de ingressarmos na cosmovisão dos adultos - começam a desaparecer à medida que envelhecemos: cada endereço conquistado por cada um de nós é mais uma localização do nosso eu na rede de relações de um mapa social em expansão, e a perda de um endereço - a morte de um outro, querido ou detestado - implica o retraimento, ou melhor, a contracção desse nosso mundo de outros prontos a acolher o nosso aparecer. A troca de e-mails pode ajudar a compreender a ideia nuclear subjacente à concepção arendtiana do envelhecimento.

Quando envio o meu endereço exacto a um «estranho» com quem teclei algures num chat e recebo a sua resposta, a minha rede de relações alarga-se, na medida em que me tornei visível para mais um outro ser. Mas, se esse outro morrer mais tarde e deixar por isso de me responder, o meu mundo de relações começa a contrair-se. Ora, envelhecer é precisamente tornarmo-nos invisíveis para o mundo, através da morte dos outros que acolhiam o nosso aparecer. Envelhecer é viver essa dolorosa experiência do nosso próprio apagamento: a "morte" rouba-nos os outros prontos a receber a revelação - a manifestação - do nosso ser singular e a ser testemunhas dela. O facto de não podermos manifestar a mais ninguém a nossa auto-revelação amputa-nos da nossa abertura ao mundo. (Fonex: Estou a seguir um caminho muito complexo! Claustrofobia sociológica, a minha e a de Arendt! :::)

A doença de Alzheimer coloca um grande desafio à ontologia fenomenológica que suporta o pensamento político de Hannah Arendt: «O mundo em que os homens nascem contém muitas coisas, naturais e artificiais, vivas e mortas, transitórias e sempiternas, que têm todas em comum o facto de aparecerem e, por essa razão, são feitas para serem vistas, ouvidas, tocadas, saboreadas e cheiradas, para serem percebidas por criaturas sencientes dotadas de órgãos sensoriais apropriados. Neste mundo em que entramos, aparecendo vindos de parte nenhuma, e do qual desaparecemos para parte nenhuma, Ser e Aparência coincidem. A matéria morta, natural e artificial, mutável e imutável, depende para o seu ser, isto é, para a sua dimensão de aparência, da presença de criaturas vivas. Nada nem ninguém existe neste mundo cujo verdadeiro ser não pressuponha um espectador. Por outras palavras, nada do que é, na medida em que aparece, existe no singular; tudo o que é está destinado a ser percebido por alguém. 

Não é o Homem mas sim os homens quem habita o planeta. A pluralidade é a lei da terra» (Arendt). Não pretendo impugnar esta coincidência entre o ser e a aparência, até porque ela não é estranha à dialéctica: o que pretendo fazer é pensar a condição terrível - e anti-humana – do doente de Alzheimer à luz do princípio de que o aparecer é um co-aparecer, na medida em que os outros seres aos quais apareço, aparecem-me, por sua vez. Para Arendt, o sujeito puro espectador não existe: cada um de nós é, ao mesmo tempo, espectador e actor nesse palco que é o mundo comum: «Quem vê quer ser visto, quem ouve quer ser ouvido, quem toca quer ser tocado» (Arendt). (:::)

J Francisco Saraiva de Sousa
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Fev.2011

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Marx, Durkheim e a teoria da infância


Não é a infância de Marx e Durkheim que vou analisar, mas sim, o que eles afirmaram sobre a infância, o meu tema preferido, o da criança.

Pouco se sabe do facto de Émile Durkheim, e a sua equipa, terem usado o método do materialismo histórico na análise da vida social. No entanto, no seu livro datado de 1888, publicado como obra póstuma em 1928, LeSocialisme, Durkheim, faz uma apreciação da obra de Marx, como escreve em Dezembro de 1897, na Revue Philosophique, no seu “Essais sur la conception materialiste de l’histoire”.

Que Durkheim sabia de infância, é um dado adquirido. Que Durkheim se baseou na obra de Marx, é desconhecido. Tepria analisada no meu livro de 2007: O presente, essa grande mentira social. A reciprocidade com mais-valia, Afrontamento, Porto.

No seu livro, também póstumo, de 1925, L’Education Morale, diz que …o filho de um filólogo não herda um único vocábulo. O que a criança recebe dos seus pais, são faculdades muito gerais (…) há uma considerável distância entre as qualidades naturais da infância e a forma especial que devem adquirir para serem utilizadas durante a vida…. Ao longo de mais de duzentas páginas, o autor desenvolve a sua teoria sobre a educação moral e a pedagogia, salientando que a existência de classes sociais, caracterizadas pela importante desigualdade de quem tem e de quem apenas possui a sua capacidade de produção como força de trabalho, torna impossível que contratos justos sejam negociados, entre um possuidor e um não possuidor de meios de produção. O sistema de estratificação social existente constrange uma troca igual de bens e serviços, ofendendo assim as expectativas dos povos das sociedades industriais. A exploração impossibilita (…) uma igualdade necessária para exprimir a vontade… (tradução da minha responsabilidade).

As ideias expressas na página 209 e seguintes, delimitam a sua ideia original do desenvolvimento das capacidades da criança. Para Durkheim, e seus analistas, estas parecem depender da classe social.

No seu texto publicado em 1951, mas escrito entre 1857 e 58 o Grundisse, comenta Marx, apresentando um esquema para o estudo da economia política (tradução e interpretação da minha responsabilidade) … um adulto não pode tornar a ser criança excepto se age como um pequeno, o que até lhe parece impossível, por causa das virtudes e formas estéticas de agir dos mais novos. Formas de comportamento esperadas dos mais novos, que, por causa da época, da relação social, denominada capital ou troca de bens, entre pessoas, são doentes.

Acrescentando Marx e comentando Durkheim: a relação que procura o lucro, retirando mais-valia do trabalho de outrem, e especialmente de crianças, é uma forma doentia de ganhar ou de criar bens. No entanto, na conjuntura analisada, o nascimento das relações entre seres humanos orientadas pela obtenção de lucro e mais-valia, retirada dos não possuidores de bens, as crianças devem passar a ser crianças precoces.

Crítica de Marx e comentário de Durkheim: na nossa sociedade, a infância não tem direito a brincar, nem a desenvolver o seu imaginário, devido ao facto de começar a trabalhar desde muito cedo na indústria para apoiar a sua família. Ideias desenvolvidas ao longo de mais de cinquenta páginas no texto referido, designado também de Fundamentos para a crítica da Economia Política.

A partir destes textos, bem como das ideias do trabalho infantil que não desenvolve intelectualidade na infância, referidas por Marx no seu texto O Capital, Durkheim elabora a sua teoria da pedagogia apresentada no texto de 1925, já citado, bem como em Leçons de Sociologie. Physique de Moeurs et du Droit de 1904 e 1908, publicado em Istambul em 1934 e em França, no ano de 1950.

A análise materialista da História é usada por Marcel Mauss no seu trabalho Ensaio sobre a Dádiva, 1924-1925, publicado na revista anual L’Année Sociologique II Edição, dizendo que Durkheim tem razão ao afirmar que o nosso Estado retira de nós as nossa posses e capacidades por meio das leis e dos impostos: o trabalhador deu a sua vida e o seu trabalho à colectividade por um lado, aos seus patrões por outro (…) não estão quites com eles através do pagamento do salário… (página 187 da edição portuguesa de 1988).

Se apresento este conjunto de ideias é, fundamentalmente, para expandirmos o nosso saber sobre a criança. É preciso procurar entre os autores associados às actividades revolucionárias, como Marx, que, de facto, foi a base teórica para outros agirem, nomeadamente Durkheim e Mauss, mas que, normalmente, os investigadores e a academia, não associam.

Penso que a nossa mentalidade ideológica – classificatória, desdenha Durkheim como analista social e pedagogo, vira as costas à obra de Marx, pois não anda na moda da globalização, e desconhece o socialismo de Marcel Mauss. Estes autores começaram a entender a realidade a partir da análise da actividade e epistemologia da criança. Epistemologia que, por sua causa, me permite, hoje, entender e exprimir aos meus discentes a importância da contextualização através da classe social. Entender a criança, é entender a obra dos autores citados que lutaram e morreram pelas suas ideias. Tal o caso histórico de Durkheim, como o desconhecido da vida de Karl Marx, ou a doença mental de Marcel Mauss provocada pelo terror que os seus descendentes, intelectuais e consanguíneos, pudessem desaparecer na Segunda Guerra Mundial do Século XX, como tinha acontecido na Primeira Grande Guerra, fugindo do real refugiou-se numa calma paranóia.

Marx estuda o lucro obtido pelo trabalho das crianças no início da revolução industrial, época em que ainda não havia máquinas, acabando por serem os mais pequenos a força motriz do tear. Força, entendida pelos donos do tear (proprietários do capital) como brincadeira (efeito de baloiço), executada, pela pequenada, com movimentos repetitivos o dia inteiro (desde as 7 de manhã até à chegada da noite), sem ganhar muito dinheiro. Durkheim, entendia as crianças como pessoas que tinham que aprender o saber dos seus adultos e organizou uma teoria pedagógica para transferir o saber geracional. Marcel Mauss entendia as crianças como seres nativos, com base nos dados fornecidos pelos seus estudantes que realizavam trabalho de campo, seres pequenos, normalmente usados como um sacrifício de entrega à divindade: não eram mortos, participavam numa cerimónia para que as divindades tomassem conta deles e das suas vidas, ideia que Marx já apresentava na sua análise da mais-valia e Durkheim nos seus textos sobre a divindade, especialmente no de 1912: As estruturas elementares da vida religiosa.

Fev.2011
Raul Iturra

sexta-feira, 15 de junho de 2012

Antropologia e Primitivismo Português

 



«A tragédia mental de Portugal presente é que, como veremos, o nosso escol é estruturalmente provinciano». (Fernando Pessoa)

«Quando o carácter adoece e se dilui, é natural que o espírito de iniciativa dê lugar ao imitativo ou simiesco. A degenerescência inferior apaga os valores adquiridos que se conservam, em nós, como que num estado de perpétuo esforço. Sempre que o homem hesita na sua humanidade, aparece o macaco. Este persegue-nos constantemente, vigiando-nos, e aproveitando o primeiro descuido da nossa pessoa, para se lhe substituir». (Teixeira de Pascoaes)

«Nunca os portugueses mostraram queda para as altas especulações filosóficas.» (Sampaio Bruno)

Na história do espírito humano, podemos distinguir dois tipos de épocas: as épocas em que o homem está abrigado e as épocas em que o homem está à mercê das intempéries, sem-abrigo. Nas épocas abrigadas, o homem vive no mundo como se vivesse em sua própria casa, enquanto, nas épocas sem-abrigo, o mundo é uma imensa intempérie e, frequentemente, o homem não tem quatro estacas para erguer uma tenda. A natureza da reflexão antropológica varia em função da época em questão. Nas épocas abrigadas, o homem não é um ser problemático e, por isso, o pensamento antropológico integra-se pacificamente no seio dopensamento cosmológico, mas, nas épocas desabrigadas, o homem torna-se problemático para si mesmo e, em consequência disso, o pensamento antropológico adquire profundidade e independência.

A pré-história da antropologia filosófica fornece todos os materiais para pensar esta conexão entre o tipo de época histórico-espiritual e a natureza do pensamento antropológico, bastando nomear Santo Agostinho que se surpreende com aquilo que no homem não pode ser compreendido como parte integrante do mundo, e o movimento espiritual da gnose, sobretudo o maniqueísmo, que, despojando a criação de valor, nega ao homem um lugar no mundo. Apesar da riqueza cognitiva desta pré-história antropológica, o nascimento da antropologia filosófica está estruturalmente ligado à emergência do capitalismo: «Mundo contingente e indivíduo problemático são realidades que se condicionam uma à outra» (Lukács).

 O mundo contingente de que fala Lukács é, conforme mostraram Marx e Engels, uma criação do capitalismo: o pecado original do capitalismo – a apropriação privada dos bens da natureza e da sociedade - é a manifestação suprema da alienação. A associação teológica da alienação com o pecado original foi vista pelo jovem Lukács nestes termos: «O carácter estranho desta natureza relativamente à primeira, a apreensão moderna sentimental da natureza, não são mais do que a projecção da experiência que ensina ao homem que o mundo ambiente que ele mesmo criou não é para ele um lar, mas uma prisão». A contingência do mundo e o homem problemático são realidades e categorias históricas que se condicionam reciprocamente: a missão histórica - isto é, política - do marxismo foi dar um abrigo ao sem-abrigo.

 Porém, independentemente dos efeitos nefastos da crise financeira e económica de 2008, a concretização de uma política do homem abrigado não é suficiente para garantir a desalienação do homem e do mundo, sobretudo quando conserva uma visão optimista e progressista da história sem a quebra radical da continuidade do capitalismo: quer dizer que o sem-abrigo é uma realidade humana originária - ou melhor, uma realidade bio-antropológica - refractária aos movimentos da história, a menos que o sonho médico totalitário seja capaz de alterar a natureza humana por meios farmacológicos e genéticos. (:::)

No quadro da civilização europeia, o único povo que não criou uma metafísica foi o povo português. O facto de ser um povo sem metafísica (Hegel) é suficiente para classificar os portugueses como homens primitivos e arcaicos que, em vez de produzir a sua própria cultura superior, consomem a cultura alheia sem no entanto a compreender. (:::)

 J Francisco Saraiva de Sousa
Fev.2011
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sexta-feira, 8 de junho de 2012

Falar verdade sobre o comércio ético




Beja Santos

O apelo à responsabilidade, o querer conhecer mais sobre a proveniência dos bens de consumo e aspirar as escolhas que respeitem o ambiente e a justiça social são atitudes bastante recentes. É verdade que a política dos consumidores nasceu no dia em que o cidadão descobriu que lhe faltava informação sobre o mercado, que estava vulnerável à fralda, ao engano e à prepotência dos vendedores. O Estado e a sociedade mobilizaram-se para contrariar o desequilíbrio entre o conhecimento que o fabricante tem do seu produto e que pode explorar em função do desconhecimento do consumidor.

A partir da ascensão do individualismo, da consagração do digital e da sociedade em rede, uma fracção significativa de consumidores passou a interessar-se pelo consumo responsável, pelo consumo sustentável e pelas compras baseadas na ética e na qualidade social. Essa percentagem de cidadãos valoriza as tecnologias limpas, as críticas à globalização predatória e à ética do consumo, estando atentos à responsabilidade social, à agricultura biológica e às práticas sociais iníquas bem como às comunicações comerciais desleais e agressivas.

Como escrevi em “Consumidor Diligente, Cidadão Negligente” (Edições Sílabo, 2010), um dos paradoxos mais chocantes do nosso tempo assenta num consumo diligente que ilude os cuidados da cidadania. Vivemos preocupados em comprar barato e aliviamos a consciência com algumas preocupações sociais e ecológicas. Impõe-se reconciliar o cidadão com o consumidor. O ponto de partida é centrar o pensamento e acção numa visão do consumo como uma questão da cidadania: sem sustentabilidade, o consumo corre o risco de agravar todos os problemas ambientais; vivemos numa sociedade móvel, os fluxos informativos são cada vez mais rápidos e eficientes, como se acaba de ver nas movimentações no Egipto; a sustentabilidade é a conciliação do bem comum e da equidade, do tratamento apropriado dos recursos naturais e do crescimento económico com regras de regulação; a sustentabilidade é política, social e cultural; o consumo social e ambientalmente responsável pode e deve utilizar as tecnologias da sociedade em rede e o sistema político deve reger-se pelo primado do bem público, garantindo a segurança alimentar, a honestidade das comunicações comerciais e os meios formativos com vista a decidir com mais liberdade e critério como se pode ser um bom cidadão por via das práticas do consumo.

Este desafio é um processo complexo: queremos tudo e imediatamente, queremos os opostos como os 4×4 e a protecção da camada do ozono, somos defensores dos hipermercados e do comércio tradicional, somos contra as deslocalizações mas queremos os preços mais baixos em tudo… É este o nosso tempo da moral do indivíduo pragmático e oportunista.

Identificar as empresas que respeitam o biológico, os modos de produção ou de fabrico ambientalmente menos agressivos e as empresas cumpridoras dos direitos humanos é hoje uma questão essencial para garantir a confiança do consumidor na sua participação em todos os vectores da sustentabilidade: os rótulos devem ser inequivocamente ecológicos e sociais; o que se diz ser “natural”, “melhor para o ambiente” ou “respeitador dos direitos dos trabalhadores” precisa de ser veraz e comprovável a todo o instante, todas as alegações ambientais e éticas não podem confundir o consumidor, há que encontrar regras comuns para premiar as empresas responsáveis e punir as empresas prevaricadoras. Só se pode construir a confiança do consumidor enquadrando as grandes questões da informação do que se diz na rotulagem e na publicidade: quais os atributos verificáveis das alegações éticas (impacte ambiental, práticas laborais, bem-estar animal, etc.); definição de quem verifica os conteúdos das alegações éticas. Enquadramento das diferentes funções e responsabilidades dos diferentes interessados pelas alegações.

Só o rigor destes procedimentos é que desenvolverá um aumento de preocupações dos consumidores com os bens e serviços social e ambientalmente responsáveis e as práticas do comércio ético. Há hoje em todo o mundo um conjunto de organizações envolvidas na procura de soluções para potenciar a confiança do consumidor: a Consumers International, a Organização Internacional de Rotulagem do Comércio Justo, a Organização Internacional de Normalização e a própria Organização Comercial do Comércio Justo, entre outras. Procura-se uma metodologia para a implicação das partes interessadas e que permita aos consumidores distinguir os diferentes atributos sociais, económicos e ambientais e a consagração de processos de verificação e certificação. No momento presente, já obteve consenso sobre o que deve ser a avaliação da fiabilidade das alegações éticas, estão identificados sete factores importantes e que são: a veracidade da alegação; as possibilidades de verificar a alegação; o poder definir o que são imagens ou palavras éticas; qual o nível de desempenho do que consta na alegação; a relevância do impacto; a clareza ou o significado da alegação.  

Como é evidente, impõe-se à escala mundial encontrar regras que dêem confiança ao consumidor quando ele decide comprar bens e serviços ditos amigos do ambiente ou processados segundo normas éticas. Quanto maior for a confiança do consumidor maior estímulo haverá no mercado para métodos de produção sustentáveis e de normas éticas. Precisamos urgentemente dessas normas que dêem possibilidade em comparar todos os dados referentes aos impactos positivos das alegações éticas. Não é fácil, e é mesmo dispendioso. Há muitas investigações para fazer e o momento de recessão que se vive não entusiasma muito as empresas e os consumidores. Um bom ponto de partida seria criar um banco de dados com informação que explique aos consumidores as alegações. Postos na web, deviam propiciar acesso público aos termos, a relatórios de quem os verificou e revelar qual a sua base de sustentação, havendo vantagem em que os peritos dessem conselhos sobre os modos como os consumidores podem identificar as alegações verdadeiramente éticas. Estamos a precisar de experiências que catapultem o comércio ético e o consumo sustentável para patamares superiores do chamado consumo de massas. Precisa-se de imaginação para consumir de um modo diferente, com mais equidade e esperança no bem-estar das gerações futuras.

Fev.2011

sexta-feira, 1 de junho de 2012

As diferenças que levam às complementaridades



António Campos


Pensava escrever sobre a observação das diferenças entre homem e mulher. Pensava. Continuei a pensar e consultei amigas. No meu ver, as amigas são complemento de nós homens. Não pela sexualidade, mas pela intimidade que se desenvolve entre gâmetas diferentes, sendo gâmetas cada uma das duas células (masculina e feminina) entre as quais se opera a fecundação dos animais e vegetais.

A minha ideia original era escrever sobre as diferenças entre homem e mulher. No entanto, ao rever os códigos que nos governam, especialmente o Código Civil, reformulado em 2001, não encontrei nem diferenças nem complementaridade. Hoje em dia, a diferença sexual tem apenas uma diferença: a mulher grávida carrega a criança durante nove meses no seu ventre. Ainda assim, esta época moderna leva essa mulher a trabalhar para sustentar o lar en conjunto com o homem que a engravidou, seja marido, companheiro, amancebado ou outro tipo de relação a dois. Seja qual for o tipo de relação, as pessoas complementam-se por causa da economia, especialmente em épocas de crise financeira, como a que hoje em dia vivemos.

Crise financeira que nos complementa, estamos todos submetidos à mesma lei, ao mesmo governo que nos retira o que não temos, porque antes de pagar, as nossas autoridades retiram um novo imposto, baixando os salários e subindo os preços dos produtos alimentares através do aumento do IVA, que o vendedor retira dos preços cobrados aos clientes. Estes impostos, são um complemento da crise económica que vivemos, todos por igual, excepto os proprietários de indústrias ou os financeiros que sabem colocar os seus lucros em empresas que criam mais-valia. É um pequeno número da população que lucra com a necessidade de consumo, do pagamento da educação dos mais novos, da compra de livros que mudam em cada ano escolar, mesmo que a justificação seja a introdução de novos conhecimentos produzidos pela ciência que devem ser ensinados para desenvolver ideias que melhorem as formas de vida do nosso país, que muito atrasado está. Atrasado, porque a classe política está sempre preocupada em semear crises entre os diversos partidos, para assim saber quem apoia a quem. Estes são os complementos que eu referia: parte que se junta (ou falta) a outra, para esta formar um todo completo.

Quanto às diferenças, não se pense que falo de emotividade ou sexualidade. A reacção da primeira amiga que consultei, foi directa: eu sou autónoma e independente, não complemento ninguém. Por outras palavras, tem liberdade moral, intelectual e independência administrativa. Conheço poucas pessoas que possuam estas virtudes. Conseguir ser independente ética e economicamente, parece-me, a mim, ser a procura da solidão das solidões. Conhecendo a pessoa, parece-me que é apenas um dizer para se defender de uma eventual solidão real. Se diz ser autónoma, como pode, porém, amar? Ou procurar amor? Estas são as diferenças que levam à complementaridade entre pessoas que protestam por obrigações e, no entanto, sonham com a companhia e estão sempre acompanhadas. Mas, também, a solidão não as afecta nem ficam abandonadas: acabam por ter ânimo para a autonomia, essa autonomia que todos queríamos ter, mas não conseguimos por sermos seres sociais, precisamos dos outros que nos inspiram confiança, fazendo das diferenças, uma complementaridade. A outra senhora entrevistada falou-me de complementaridade como primeira frase. Pessoa que adora a solidão e se refugia no trabalho permanente.

Quais, pois, as diferenças que levam à complementaridade? Ou, colocando a pergunta de uma outra maneira, será que há diferenças entre seres humanos de uma mesma cultura, uma mesma língua, uma história comum, de leis que governam todos por igual, especialmente se elas são respeitadas e mandadas respeitar? A diferença que complemento é, no meu ver, apenas um sentimento que nos defende de uma solidão não esperada. Solidão que existe quando há outros assuntos a fazer. Ou, apenas, essa dedicação à solidão porque não há outras alternativas para a companhia.

Um assunto parece-me certo: apenas os seres fortes, que cumprem as suas obrigações e não choramingam pela vida que lhes coube viver, são capazes de criar uma abençoada autonomia, criando alternativas perante a vida. Estas ideias são filosofia de alto voo.

No começo, pensava escrever sobre a diferença entre homem e mulher, contudo ao rever os códigos e ao não encontrar nada que não mande a todos serem cidadãos ou indivíduos no gozo dos direitos civis e políticos de um estado livre, mas nós, que vivemos debaixo de ditaduras opressivas ou de pessoas que não acompanham nem com carinho nem com trabalho, somos amantes da autonomia, procuramo-la, aceitamo-la e se acontecer que dois autónomos se encontram… Seria a felicidade das felicidades, com respeito e companhia, especialmente respeito a essa companhia. É assim que, sem dar por isso, enamorei-me e estou sempre acompanhado pela pessoa, ou pela sua relíquia…Esta é a diferença que leva à complementaridade. Amo-te, rapariga autónoma, porque nos complementamos, rimos, divertimo-nos e confrontamos as diferenças com paz, tranquilidade e companhia…

Fev.2011
Raul Iturra