quarta-feira, 23 de maio de 2012

Decrescimento sereno - um conceito polémico





António Campos



Serge Latouche é o grande paladino do modelo de decrescimento sereno e sustentável. As suas teses acabam de aparecer entre nós e seguramente que vão alimentar discussões sobretudo nos meios ligados à ecologia, aos modelos económicos alternativos e à alterglobalização: “Pequeno Tratado do Decrescimento Sereno”, por Serge Latouche, Edições 70, 2011. Outrora, falava-se em reduzir, reutilizar e reciclar. Na sua proposta para o decrescimento sereno convivial e sustentável, Latouche propõe: reavaliar, reconceptualizar, reestruturar, redistribuir, relocalizar, reduzir, reutilizar e reciclar. Vivemos no mundo em que os danos ambientais estão largamente denunciados mas como temos a nossa refeição garantida todos os dias, tudo pretendemos ignorar. Há décadas que se fala nos riscos a prazo de um conjunto de substâncias como os pesticidas, muito pouco se fez; quase todos os dias emanam relatórios perturbadores de entidades respeitáveis, continuamos vergados ao crescimento pelo crescimento, parece que há uma incapacidade generalizada para pôr um travão a este bólide sem condutor, sem marcha atrás e sem travões.

Fazendo fé à argumentação de Latouche, vamos passar em revista os dados fundamentais deste projecto de sociedade de decrescimento que o autor apresenta como a única alternativa que se pode pôr a uma previsível catástrofe ecológica e humana. Primeiro, a despeito de muita indiferença dos meios políticos dominantes, há uma gradual atenção ao decrescimento que já aparece associado à rejeição do crescimento ilimitado o tal que se pauta pelo culto irracional e quase idólatra do crescimento pelo crescimento. Retomando enunciados e olhares que vêm da contestação ambiental e de muitos intelectuais alternativos, o projecto de decrescimento orienta-se para uma sociedade em que se viverá melhor, trabalhando e consumindo menos. O conceito de desenvolvimento sustentável fundamenta-se em ambiguidades e equívocos, tudo leva a crer que os economistas que no fundo suspiram só pelo crescimento pelo crescimento até gostem do conceito, tão neutro que ele é. A economia neoclássica condescende com a necessidade de apregoar a sustentabilidade mas no fundo mantém-se indiferente às leis fundamentais da biologia, da química e da física. Esses economistas negam a bioeconomia ou seja rejeitam pensar a economia no interior da bioesfera. Segundo, a sociedade em que vivemos é a da acumulação ilimitada, nela o importante é criar desejos ao consumidor, dar-lhe crédito para ele nunca deixar de consumir e programar os produtos para que se renove regularmente a necessidade de sua substituição. Chegámos assim a uma pegada ecológica insustentável, vivemos do rendimento e do património. Os excessos cometidos têm sido tão grandes que não há ninguém que não se interrogue se não estamos a preparar o nosso desaparecimento: uma guerra atómica, através de pandemias, esgotando os recursos naturais e destruindo a biodiversidade, mediante alterações climáticas que tornem a existência inviável.

As discussões sobre o modelo económico alternativo prosseguem, mas parece que ninguém quer pôr em causa a lógica de desmesura do sistema económico. Terceiro, para entender o decrescimento é necessário compreender o ciclo dos oito “R” que Latouche preconiza: reavaliar (os valores do passado são incompatíveis com os desafios do presente, precisamos de cooperação, vida social, autonomia como os valores indispensáveis para substituir a competição desenfreada, o consumo ilimitado e a eficiência produtivista); reconceptualizar (porque esta mudança de valores pressupõe uma outra maneira de apreender a realidade); reestruturar (ou seja, adaptar o aparelho de produção a essa mudança de valores o que significa que se terá de pôr em causa e muito provavelmente abandonar o capitalismo); redistribuir (a reestruturação das relações sociais acarretará uma distribuição); relocalizar (produzir localmente uma parte fundamental do que é indispensável para satisfazer necessidades da população); reduzir (para diminuir o impacto na bioesfera das nossas maneiras de produzir e consumir); reutilizar/reciclar (aqui parece estar toda a gente de acordo, é um conceito pacífico). Destes oito “R” três têm um papel estratégico, como escreve Latouche: a reavaliação, porque ela preside a toda a mudança, a redução porque condensa todos os imperativos práticos do decrescimento e a relocalização porque diz respeito à vida quotidiana e ao emprego de milhões de pessoas. Relocalizar será inventar a democracia ecológica local com as suas relações transversais, virtuosas e solidárias, com um elevado grau de auto-suficiência alimentar, mas também económica e financeira.

O que nos remete para um valor profundo da regionalização, ela própria com uma decrescente pegada ecológica graças à produção e ao consumo sustentáveis e uma elevada riqueza em iniciativas locais decrescentes. Quarto, reduzir será contrariar a irracionalidade da globalização, onde camarões dinamarqueses são descascados em Marrocos e regressam à Dinamarca, lagostins escoceses são expatriados para a Tailândia para ser descascados à mão e regressar à escócia para ser cozidos. Esta globalização irracional assenta no uso indiscriminado transporte e na indiferença pela velocidade. Este decrescimento, como é óbvio, carece de um programa político, não pode ser implementado sem uma grande adesão das populações: para reduzir a pegada ecológica; para se aplicar ecotaxas; para se fixarem actividades económicas e pessoas em meio local, para encorajar uma produção o mais local, sazonal, natural e tradicional que for possível; para transformar os ganhos de produtividade em redução do tempo de trabalho e em criação de empregos; para reduzir os desperdícios de energia; e para impulsionar os chamados bens relacionais, como a amizade e o conhecimento. Estamos pois no centro das grandes controvérsias: nesta acepção do decrescimento o que seria o pleno emprego, que modelo capitalista se poderia institucionalizar, isto logo à cabeça. Está aberta a grande discussão.

Em jeito de conclusão, é bom que se diga que os partidários do crescimento são rotulados de todas as enormidades: são contra o progresso, contra o turismo de massas, a inovação e competitividade, por exemplo. Latouche responde que a realização de uma sociedade de crescimento passa necessariamente por um reencantamento do mundo, o que ninguém sabe muito bem o que quer dizer. Querer travar a banalização das coisas requer artistas e entusiastas pelo decrescimento. Resta saber qual a adesão que este modelo alternativo encontrará, qual o entusiasmo a este modo de vida gradual e serenamente decrescente. As grandes discussões vão agora começar.

Beja Santos
Fev.2011

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Adultério

António Campos



Mulher islâmica apedrejada por delito de adultério

Escrever sobre adultério, não é simples nem fácil. A própria definição do verbo o salienta: Violação da fidelidade conjugal. Apesar da definição fornecida antes, ser a mais atribuída ao facto que analiso, também há outras formas que colocam em risco a vida das pessoas, como falsificação ou a adulteração de um produto. Não é apenas um engano social, é um risco para a vida, um eterno suspeitar de que o que adquirimos possa estar fora de prazo, porque o comércio é comércio e para não perder, apagam-se as datas de validade e, como ninguém se importa em consultar as datas, essa adulteração coloca em risco a vida e a saúde da pessoa. Como aconteceu antes de ontem com a minha neta May Malen Isley: foram almoçar ao University Center da nossa Universidade de Cambridge, que, ultimamente, é um fiasco comercial. Foi de imediato levada para o hospital, os antibióticos a salvaram pela prontidão dos pais, a minha filha Camila e o meu genro Félix. No dia seguinte, já estava bem. Não sou homem de fé, mas dou graças à divindade, como aos meus filhos, de terem salvo a única descendência que, por enquanto, têm.

No Islam, a violação à fidelidade conjugal é punida como é possível ver na imagem que ilustra o texto. Está tudo escrito no Alcorão que, de forma impiedosa, trata as faltas, especialmente as das mulheres que podem levar no seu ventre o filho de outrem, com o qual, como diz o livro sagrado mencionado, parte a família ao entrar sangue que não lhe pertence, não tem direitos nem pais. Escolhi esta imagem por corresponder à de um caso, perdido, denunciado pela Amnistia Internacional, a mulher Kabila da Argélia, faleceu de fome, sede e apedrejamento. Quem por ela passasse, tinha a obrigação de lançar pedras para manter a ordem social. Tanto o Islam como o Cristianismo exortam os seus adeptos às acções virtuosas e à vida piedosa. Condenam a falsidade, a desonestidade, a hipocrisia, a injustiça, a crueldade, o orgulho, a ingratidão, a traição, a intolerância, a luxúria, a preguiça, o ciúme, o egoísmo, a apatia, a expressão injuriosa, a ira e a violência. Ambos prescrevem aos seus seguidores fé e confiança em Deus, arrependimento, verdade, pureza, coragem, justiça, caridade, benevolência, simpatia, misericórdia, auto-disciplina e probidade. Pode ler-se no Alcorão Sagrado, capítulo 6, versículo 151.
Os cristãos parecem ser mais piedosos. Acodem ao divórcio desde o Século XIX. No entanto, tem uma definição completa no catecismo romano de Karol Wojtila, 1991:
A.19.1 Adultério e coração do homem
§ 1853
Pode-se distinguir os pecados segundo seu objeto, como em todo ato humano, ou segundo as virtudes a que se opõem, por excesso ou por defeito, ou segundo os mandamentos que eles contrariam. Pode-se também classificá-los conforme dizem respeito a Deus, ao próximo ou a si mesmo; pode-se dividi-los em pecados espirituais e carnais, ou ainda em pecados por pensamento, palavra, ação ou omissão. A raiz do pecado está no coração do homem, em sua livre vontade, segundo o ensinamento do Senhor: “Com efeito, é do coração que procedem más inclinações, assassínios, adultérios, prostituições, roubos, falsos testemunhos e difamações. São estas as coisas que tomam o homem impuro” (Mt 15,19-20). No coração reside também a caridade, princípio das obras boas e puras, que o pecado fere.
§ 2517
O coração é a sede da personalidade moral: “É do coração que procedem más intenções, assassínios, adultérios, prostituições, roubos, falsos testemunhos e difamações” (Mt 15,19). A luta contra a concupiscência da carne passa pela purificação do coração e a prática da temperança:Conserva-te na simplicidade, na inocência, e serás como a criancinhas, que ignoram o mal destruidor da vida dos homens.
A.19.2 Adultério e desejo
§ 2336
Jesus veio restaurar a criação na pureza de sua origem. No Sermão da Montanha, Ele interpreta de maneira rigorosa o plano de Deus: “Ouvistes o que foi dito: ‘Não cometerás adultério’. Eu, porém, vos digo: todo aquele que olha para uma mulher com desejo libidinoso já cometeu adultério com ela em seu coração” (Mt 5,27-28). O homem não deve separar o que Deus uniu.A Tradição da Igreja entendeu o sexto mandamento como englobando o conjunto da sexualidade humana.
Wojtila ou beato João Paulo II, Papa Católico antes de Bento XVI (Joseph Ratzinger), o alemão que governa os católicos actualmente, Karolus Wojtila, dizia eu, não deixa fio sem atar. Só lendo o texto, poderemos apreciar que o Beato Karolus procura a pureza original do cristianismo. No entanto, se o adultério não é perdoado, pelo menos o sacramento, quer dizer, esse acto instituído por Deus para purificar e santificar as almas, como dizem todas as confissões cristãs, o sacramento da confissão, dizia eu, perdoa as faltas.

Mas, que grande falta! Insisto no meu padroeiro de ser a libido e o Iso ou Id, os que comandam o mundo. Hoje em dia a maior parte da população é adúltera, como tem sido estudado pela patrística e como deduz Anália Torres Cardoso nos seus livros, o mais importante, na minha opinião, o de 1996, Celta Editores: Divórcio em Portugal. Ditos e interditos.

Para acabar, comentaria apenas que hoje em dia não há praticamente adultério: as pessoas vivem juntas, não casam, amam-se, mas também, pela calada da noite, têm as suas aventuras que não contam a ninguém para não entrar em vida de bordel. No meu caso, ai deus! Se quem amo me troca por outro, a vida acaba. Especialmente se o adultério é cometido pela mulher que amo, metáfora de pedido de fidelidade se nós amamos também.

A libido comanda o corpo e a mente. Karolus Wojtila sabia-o, mas, com essa sua bondade, falava imenso com o pecador e escrevia encíclicas. A vida a dois é complexa, especialmente se é estrita, como os islâmicos e como os que tomam conta da pureza da sua família. No meu ver, o adultério, do tipo que for, não tem perdão da divindade nem dos grupos sociais que tomam partido por ele, ou por ela ou defendem esse terceiro….

Adultério, para quê se ama? Juntos riem? Juntos brincam? Juntos amam?.

É preciso uma nova patrística… e um amor com libido activa…

Raul Iturra
Fev.2011

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Pobreza e (com)paixão


António Campos


“Se eu dou comida a um pobre, me chamam de santo, mas se eu pergunto por que ele é pobre, me chamam de comunista.” (Dom Hélder Câmara)

A defesa das causas dos pobres é uma tarefa muito árdua. Exige da gente mais do que compreensão, discursos e teorias, mas, sobretudo, compromisso e compaixão. Somos muito preconceituosos para com o sofrimento dos pobres.

Desconhecemos sua realidade e não nos dispusemos a mexer na raiz de nossos problemas: a nossa forma de organizar o mundo. Entre nós é muito forte a ideia de que pobres são coitados, por isto desprovidos de sorte e de bens. Se não lutam, são preguiçosos. Se lutam e exigem, tornam-se perigosos. Mesmo quando passam fome, a gente insiste em dizer que eles ainda são capazes de sonhar.

Só a lucidez da razão e a sensibilidade podem tratar bem das questões da existência e convivência humanas. Na visão ocidental, desenvolvemos a ilusão de que somente a razão nos dará respostas aos problemas humanos. Nem a razão ornamental (que serve de ornamento), nem a razão instrumental (ferramenta para transformar a realidade) são capazes de justificar o sofrimento e a realidade daqueles que excluímos socialmente (os pobres). Os pobres não são invenção, não são uma idéia. Os pobres são reais. Os pobres existem, e sofrem a violação de sua vida e dignidade.

Leonardo Boff, defensor incansável das causas dos pobres e oprimidos, afirma que são três as compreensões que se tem da pobreza. Uma primeira, clássica, é a ideia de que o pobre é aquele que não tem. A estratégia então é mobilizar quem tem para ajudar a quem não tem, através de acções assistencialistas, sem reconhecer a potencialidade dos mesmos. A segunda ideia, moderna, é aquela que descobre os potenciais do pobre e compreende que o Estado deve fazer investimentos para que ele seja profissionalizado e potencializado, com fins à inserção no mundo produtivo. Ambas as posições desconsideram, na visão de Boff, que a pobreza é resultado de mecanismos de exploração, que sempre geram enormes conflitos sociais. Boff acredita que é preciso reconhecer as potencialidades dos pobres não apenas para engrossarem a força de trabalho, mas principalmente para transformarem o sistema social. Os pobres, organizados e articulados com outros atores da sociedade, são capazes de construir uma democracia participativa, económica e social. “Essa perspectiva não é nem assistencialista nem progressista. Ela é libertadora”.

Só a compaixão reveste-se de libertação. Compaixão não é sofrer pelos outros, mas sofrer com eles. O sofrer com os outros permite à gente colocar-se em seu lugar. Enxergar a partir dos seus pontos de vista e de suas realidades. É também deixar-se transformar, permitindo que os nossos mais nobres sentimentos se traduzam em acções concretas a favor dos pobres, fracos e marginalizados.

Poucos vivem a compaixão. Muitos perderam a sensibilidade, o que os impossibilita de viver a caridade e o amor ao próximo. Outros preferem atribuir aos pobres a culpa por sua situação de miséria e vulnerabilidade. Outros discursam democracia, não perguntando se esta propicia as mesmas condições e oportunidades a todos, como ponto de partida. Põe que o ponto de chegada depende de cada um de nós. E muitos, em grande número, tratam como crime a atitude de quem luta por causas humanitárias, quando estas exigem uma mudança na estrutura e organização da sociedade. “As pessoas são pesadas demais para serem levadas nos ombros. Leve-as no coração”, disse Dom Hélder Câmara. Este o sentido maior da compaixão para com os pobres: não os defendemos por serem bons ou anjos, mas porque  são parte de uma sociedade desigual, que não sabe lidar com eles.

Nei Alberto Pies, professor e ativista em direitos humanos.
(imagem via Wikipédia escolhida por mim)
Maio.2012