António Campos
Serge Latouche é o grande paladino do modelo de decrescimento sereno e
sustentável. As suas teses acabam de aparecer entre nós e seguramente que vão
alimentar discussões sobretudo nos meios ligados à ecologia, aos modelos
económicos alternativos e à alterglobalização: “Pequeno Tratado do
Decrescimento Sereno”, por Serge Latouche, Edições 70, 2011. Outrora, falava-se
em reduzir, reutilizar e reciclar. Na sua proposta para o decrescimento sereno
convivial e sustentável, Latouche propõe: reavaliar, reconceptualizar,
reestruturar, redistribuir, relocalizar, reduzir, reutilizar e reciclar.
Vivemos no mundo em que os danos ambientais estão largamente denunciados mas
como temos a nossa refeição garantida todos os dias, tudo pretendemos ignorar.
Há décadas que se fala nos riscos a prazo de um conjunto de substâncias como os
pesticidas, muito pouco se fez; quase todos os dias emanam relatórios
perturbadores de entidades respeitáveis, continuamos vergados ao crescimento
pelo crescimento, parece que há uma incapacidade generalizada para pôr um
travão a este bólide sem condutor, sem marcha atrás e sem travões.
Fazendo fé à argumentação de Latouche, vamos passar em revista os dados
fundamentais deste projecto de sociedade de decrescimento que o autor apresenta
como a única alternativa que se pode pôr a uma previsível catástrofe ecológica
e humana. Primeiro, a despeito de muita indiferença dos meios políticos
dominantes, há uma gradual atenção ao decrescimento que já aparece associado à
rejeição do crescimento ilimitado o tal que se pauta pelo culto irracional e
quase idólatra do crescimento pelo crescimento. Retomando enunciados e olhares
que vêm da contestação ambiental e de muitos intelectuais alternativos, o
projecto de decrescimento orienta-se para uma sociedade em que se viverá
melhor, trabalhando e consumindo menos. O conceito de desenvolvimento
sustentável fundamenta-se em ambiguidades e equívocos, tudo leva a crer que os
economistas que no fundo suspiram só pelo crescimento pelo crescimento até
gostem do conceito, tão neutro que ele é. A economia neoclássica condescende
com a necessidade de apregoar a sustentabilidade mas no fundo mantém-se
indiferente às leis fundamentais da biologia, da química e da física. Esses
economistas negam a bioeconomia ou seja rejeitam pensar a economia no interior
da bioesfera. Segundo, a sociedade em que vivemos é a da acumulação ilimitada,
nela o importante é criar desejos ao consumidor, dar-lhe crédito para ele nunca
deixar de consumir e programar os produtos para que se renove regularmente a
necessidade de sua substituição. Chegámos assim a uma pegada ecológica
insustentável, vivemos do rendimento e do património. Os excessos cometidos têm
sido tão grandes que não há ninguém que não se interrogue se não estamos a
preparar o nosso desaparecimento: uma guerra atómica, através de pandemias,
esgotando os recursos naturais e destruindo a biodiversidade, mediante
alterações climáticas que tornem a existência inviável.
As discussões sobre o modelo económico alternativo prosseguem, mas parece
que ninguém quer pôr em causa a lógica de desmesura do sistema económico.
Terceiro, para entender o decrescimento é necessário compreender o ciclo dos
oito “R” que Latouche preconiza: reavaliar (os valores do passado são
incompatíveis com os desafios do presente, precisamos de cooperação, vida
social, autonomia como os valores indispensáveis para substituir a competição
desenfreada, o consumo ilimitado e a eficiência produtivista); reconceptualizar
(porque esta mudança de valores pressupõe uma outra maneira de apreender a
realidade); reestruturar (ou seja, adaptar o aparelho de produção a essa
mudança de valores o que significa que se terá de pôr em causa e muito
provavelmente abandonar o capitalismo); redistribuir (a reestruturação das
relações sociais acarretará uma distribuição); relocalizar (produzir localmente
uma parte fundamental do que é indispensável para satisfazer necessidades da
população); reduzir (para diminuir o impacto na bioesfera das nossas maneiras
de produzir e consumir); reutilizar/reciclar (aqui parece estar toda a gente de
acordo, é um conceito pacífico). Destes oito “R” três têm um papel estratégico,
como escreve Latouche: a reavaliação, porque ela preside a toda a mudança, a
redução porque condensa todos os imperativos práticos do decrescimento e a
relocalização porque diz respeito à vida quotidiana e ao emprego de milhões de
pessoas. Relocalizar será inventar a democracia ecológica local com as suas
relações transversais, virtuosas e solidárias, com um elevado grau de
auto-suficiência alimentar, mas também económica e financeira.
O que nos remete para um valor profundo da regionalização, ela própria com
uma decrescente pegada ecológica graças à produção e ao consumo sustentáveis e
uma elevada riqueza em iniciativas locais decrescentes. Quarto, reduzir será
contrariar a irracionalidade da globalização, onde camarões dinamarqueses são
descascados em Marrocos e regressam à Dinamarca, lagostins escoceses são
expatriados para a Tailândia para ser descascados à mão e regressar à escócia
para ser cozidos. Esta globalização irracional assenta no uso indiscriminado
transporte e na indiferença pela velocidade. Este decrescimento, como é óbvio,
carece de um programa político, não pode ser implementado sem uma grande adesão
das populações: para reduzir a pegada ecológica; para se aplicar ecotaxas; para
se fixarem actividades económicas e pessoas em meio local, para encorajar uma
produção o mais local, sazonal, natural e tradicional que for possível; para
transformar os ganhos de produtividade em redução do tempo de trabalho e em
criação de empregos; para reduzir os desperdícios de energia; e para
impulsionar os chamados bens relacionais, como a amizade e o conhecimento.
Estamos pois no centro das grandes controvérsias: nesta acepção do
decrescimento o que seria o pleno emprego, que modelo capitalista se poderia
institucionalizar, isto logo à cabeça. Está aberta a grande discussão.
Em jeito de conclusão, é bom que se diga que os partidários do crescimento
são rotulados de todas as enormidades: são contra o progresso, contra o turismo
de massas, a inovação e competitividade, por exemplo. Latouche responde que a
realização de uma sociedade de crescimento passa necessariamente por um
reencantamento do mundo, o que ninguém sabe muito bem o que quer dizer. Querer
travar a banalização das coisas requer artistas e entusiastas pelo
decrescimento. Resta saber qual a adesão que este modelo alternativo
encontrará, qual o entusiasmo a este modo de vida gradual e serenamente
decrescente. As grandes discussões vão agora começar.
Beja Santos
Fev.2011