segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Um texto fundamental de Boaventura de Sousa Santos

Anti-austerity protest in Brussels on Septembe...Image by Surat Lozowick via Flickr



António Campos


“Se nada fizermos para corrigir o curso das coisas, dentro de alguns anos se dirá que a sociedade portuguesa viveu, entre o final do século XX e começo do século XXI, um luminoso mas breve interregno democrático. Durou menos de 40 anos, entre 1974 e 2010. Nos 48 anos que precederam a revolução de 25 de abril de 1974, viveu sob uma ditadura civil nacionalista, personalizada na figura de Oliveira Salazar. A partir de 2010, entrou num outro período de ditadura civil, desta vez internacionalista e despersonalizada, conduzida por uma entidade abstrata chamada “mercados”.

As duas ditaduras começaram por razões financeiras e depois criaram as suas próprias razões para se manterem. Ambas conduziram ao empobrecimento do povo português, que deixaram na cauda dos povos europeus. Mas enquanto a primeira eliminou o jogo democrático, destruiu as liberdades e instaurou um regime de fascismo político, a segunda manteve o jogo democrático mas reduziu ao mínimo as opções ideológicas, manteve as liberdades mas destruiu as possibilidades de serem efetivamente exercidas e instaurou um regime de democracia política combinado com fascismo social. Por esta razão, a segunda ditadura pode ser designada como “ditamole”.

Os sinais mais preocupantes da atual conjuntura são os seguintes. Primeiro, está a aumentar a desigualdade social numa sociedade que é já a mais desigual da Europa. Entre 2006 e 2009 aumentou em 38,5% o número de trabalhadores por conta de outrem abrangidos pelo salário mínimo (450 euros): são agora 804 mil, isto é, cerca de 15% da população ativa; em 2008, um pequeno grupo de cidadãos ricos (4051 agregados fiscais) tinham um rendimento semelhante ao de um vastíssimo número de cidadãos pobres (634 836 agregados fiscais). Se é verdade que as democracias europeias valem o que valem as suas classes médias, a democracia portuguesa pode estar a cometer o suicídio.

Segundo, o Estado social, que permite corrigir em parte os efeitos sociais da desigualdade, é em Portugal muito débil e mesmo assim está sob ataque cerrado. A opinião pública portuguesa está a ser intoxicada por comentaristas políticos e económicos conservadores – dominam os media como em nenhum outro país europeu – para quem o Estado social se reduz a impostos: os seus filhos são educados em colégios privados, têm bons seguros de saúde, sentir-se-iam em perigo de vida se tivessem que recorrer “à choldra dos hospitais públicos”, não usam transportes públicos, auferem chorudos salários ou acumulam chorudas pensões. O Estado social deve ser abatido. Com um sadismo revoltante e um monolitismo ensurdecedor, vão insultando os portugueses empobrecidos com as ladainhas liberais de que vivem acima das suas posses e que a festa acabou. Como se aspirar a uma vida digna e decente e comer três refeições mediterrânicas por dia fosse um luxo repreensível.

Terceiro, Portugal transformou-se numa pequena ilha de luxo para especuladores internacionais. Fazem outro sentido os atuais juros da dívida soberana num país do euro e membro da UE? Onde está o princípio da coesão do projeto europeu? Para gáudio dos trauliteiros da desgraça nacional, o FMI já está cá dentro e em breve, aquando do PEC 4 ou 5, anunciará o que os governantes não querem anunciar: que este projeto europeu acabou.

Inverter este curso é difícil mas possível. Muito terá de ser feito a nível europeu e a médio prazo. A curto prazo, os cidadãos terão de dizer basta! Ao fascismo difuso instalado nas suas vidas, reaprendendo a defender a democracia e a solidariedade tanto nas ruas como nos parlamentos... O crescimento ambientalmente sustentável, a promoção do emprego, o investimento público, a justiça fiscal, a defesa do Estado social terão de voltar ao vocabulário político (...).”

(Adaptado no último parágrafo com as devidas vénias...).

Out.25 2010

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quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Austeridade - um meio ou um fim?

The GuardianImage via Wikipedia



António Campos


E se as medidas de austeridade não tiverem sido adoptadas para responder à crise? E se, pelo contrário, a crise tiver sido provocada para possibilitar a austeridade?

A hipótese está longe de ser remota, a acreditar neste artigo publicado no jornal'The Guardian' a que acedi através do blogue da APEDE. O artigo é recomendado a quem lê inglês; e eu, que subscrevo vivamente essa recomendação, tomo a liberdade de o traduzir aqui para quem não o lê.

Para os conservadores esta não é uma crise financeira, mas a oportunidade que esperavam há muito.
Num exemplo clássico de 'capitalismo do desastre', os cortes estão a ser utilizados para remodelar a economia segundo os interesses dos negócios - e para dar cabo do sector público.

Temos estado a olhar para a lista errada. Ao esforçarmo-nos por adivinhar o que nos vai cair em cima amanhã, tentamos entender a primeira fase do ataque do governo britânico ao sector público: a fogueira das agências autónomas da administração pública*. Quase todas as instituições públicas encarregadas de proteger o ambiente, o bem-estar animal ou os consumidores foram mutiladas ou mortas. Mas isto é apenas metade da história. Olhemos de novo, e desta vez façamos uma lista das agências que sobreviveram.

Se o objectivo do governo fosse destruir agências inúteis ou nocivas, teria começado pela Commonwealth Development Corporation. Esta agência foi fundada para reduzir a pobreza nos países em desenvolvimento, mas, quando o 'New Labour' tentou e falhou a sua privatização, a CDC mudou completamente de objectivo. Agora despeja dinheiro em empresas privadas lucrativas, aproveitando para enriquecer massivamente os seus próprios gestores. [A revista] Private Eye' descobriu que esta agência pagou em 2007 ao seu principal director executivo mais de um milhão de libras. A revista mostrou ainda como a CDC´se envolveu numa série de casos de corrupção. Sem cortes. Sem reformas.

O mesmo vale para o Export Credit Guarantee Department. Na prática, o ECGD subsidia empresas privadas avalizando os seus investimentos no estrangeiro. Chegou a gastar 42% do seu orçamento para promover a venda de armas pela BAE**´. Também gasta dinheiro dos contribuintes na prospecção de petróleo em ambientes vulneráveis. Num caso recente, foi mostrado em tribunal que tinha subscrito contratos obtidos com ajuda de subornos. Sem cortes. Sem reformas.

A Sea Fish Industry Authority [Autoridade para a Indústria da pesca no Mar] existe "para ajudar a melhorar os lucros da indústria pesqueira." Embora se trate duma instituição pública, 10 dos seus onze directores trabalham para a indústria da pesca ou para a da alimentação. A sua missão é "promover o consumo de peixe e marisco", "defender a indústria no debate público" e "influenciar o processo regulatório a favor da indústria." Sem cortes. Sem reformas.

O leitor está a ver o padrão? As instituições públicas cujo objectivo seja responsabilizar as empresas estão a ser varridas do mapa. As instituições públicas cujo objectivo seja inflacionar lucros privados, independentemente das consequências para as pessoas e para o ambiente, passam incólumes.

O que as duas listas sugerem é que a crise económica é o desastre por que os conservadores têm rezado. O programa de cortes do governo tem todo o aspecto dum exemplo clássico de capitalismo do desastre: usar uma crise para reformular a economia no interesse dos negócios.

No seu livro The Shock Doctrine,*** Naomi Klein mostra como o capitalismo do desastre foi concebido pelos neoliberais extremistas da Universidade de Chicago. Estas pessoas acreditavam que a esfera pública devia ser eliminada, que o mundo dos negócios devia ter a liberdade de fazer tudo o que quisesse e que quase todos os impostos e quase toda a despesa social devia ser eliminada. Acreditavam que a total liberdade do indivíduo num mercado completamente livre resultaria numa economia perfeita e em relacionamentos perfeitos. Era um sistema utópico tão fanático como o de qualquer seita religiosa. E era profundamente impopular. Durante muito tempo, os seus únicos apoiantes foram os directores das corporações multinacionais e meia-dúzia de lunáticos no governo dos EUA.

Numa democracia, em condições normais, as pessoas prejudicadas pelo fim da provisão pública teriam sempre mais votos que as pessoas que beneficiassem dele. Portanto o programa de Chicago não podia ser imposto nestas circunstâncias. Como explicou o guru da Escola de Chicago, Milton Friedman, "só uma crise - real ou percepcionada - pode produzir uma mudança real". Quando uma crise nos atinge, explicou ele mais tarde, "uma administração tem entre seis a nove meses para efectuar mudanças de grande vulto; se não actuar decisivamente durante este período, não terá outra oportunidade deste tipo."

A primeira oportunidade deste tipo foi dada pelo golpe de estado do General Pinochet no Chile. O golpe foi planeado por duas facções: os generais e um grupo de economistas formados pela Universidade de Chicago e financiados pela CIA. As suas ideias já tinham sido redondamente rejeitadas pelo eleitorado, mas agora o eleitorado tinha-se tornado irrelevante: Pinochet utilizou a crise que criara para aprisionar, torturar ou matar qualquer dissidente. As políticas da Escola de Chicago - privatização, desregulamentação, cortes brutais nos impostos e nas despesas do Estado - revelaram-se catastróficas. a inflação atingiu os 375% em 1974; a maior taxa do Mundo. Mesmo assim, Friedman insistia que o programa não estava a se suficientemente radical nem suficientemente rápido. Numa visita ao Chile em 1975, persuadiu Pinochet a bater com muito mais força. O resultado foi um crescimento massivo do desemprego e a quase erradicação da classe média. Mas os muito ricos tornaram-se muito mais ricos, e as empresas, quase livres de impostos, desreguladas e engordadas pelas privatizações, tornaram-se muito mais poderosas.

Em 1982, as receitas de Friedman tinham causado um descalabro económico espectacular. O desemprego atingiu os 30%; a dívida explodiu. Pinochet despediu os economistas de Chicago e começou a re-nacionalizar as empresas afectadas, levando a que a economia começasse a recuperar. O chamado milagre económico do Chile só começou depois de serem abandonadas as doutrinas de Friedman. O programa catastrófico da Escola de Chicago empurrou metade da população para níveis abaixo da linha de pobreza e deixou o Chile com uma das taxas de desigualdade mais elevadas do mundo.

Mas tudo isto foi apresentado pelos media corporativos como se tivesse sido um grande êxito. Com a ajuda de sucessivos governos americanos, foram impostos programas semelhantes a países em que a própria crise assegurava que as populações não lhes poderiam opor resistência. Outros ditadores sul-americanos copiaram as políticas económicas de Pinochet, com a ajuda dos desaparecimentos em massa, da tortura e dos assassínios. A crise de endividamento na parte mais pobre do Mundo foi usada pelo FMI e pelo Banco Mundial para impor programas baseados na Escola de Chicago a países que não tinham outra opção para não fosse aceitar a sua ajuda. Os EUA atingiram o Iraque com uma campanha de choque e pavor económico - privatizações, um imposto de rendimento plano****, desregulamentação massiva - ainda com as bombas a cair. Depois de o furacão Katrina destruir New Orleans, Friedman descreveu-o como "uma oportunidade para reformar radicalmente o sistema educativo". Os seus discípulos entraram imediatamente em campo, varrendo o que restava das escolas públicas enquanto os habitantes estavam ocupados em refazer as suas vidas e substituindo-as por charter schools privadas.

A nossa crise é menos extrema, portanto, no Reino Unido, a doutrina do choque não pode ser tão amplamente aplicada. Mas, como David Blanchflower avisou ontem, existe uma forte possibilidade de o programa de cortes precipitar uma crise ainda maior: "É um erro horrível, horrível. O que seria sensato seria fasear os cortes por um longo período." Esta é outra das características típicas do capitalismo do desastre: exarceba as crises que o alimentam, criando assim as suas próprias oportunidades.

Por isso não nos deve surpreender que 35 executivos de empresas escrevessem ontem ao Telegraph preconizando, tal como Friedman, um choque forte e rápido, antes que feche a janela de oportunidade. Esta política poderia reduzir os seus lucros por um curto período, mas quando saíssemos dos nossos abrigos para avaliar os estragos descobriríamos que tínhamos emergido para um mundo diferente, administrado em benefício deles e não no nosso.

Notas:
* Estas agências são financiadas por fundos públicos mas não dependem organicamente do governo. Em inglês são designadas em gíria por’quangos'. Também existem em Portugal, mas não conheço nenhuma gíria para as designar. (N.T)
** BAE Systems: empresa privada do sector aero-espacial dedicada especialmente ao ramo militar. (N.T)
***Publicado em português em 2009, com o título A DOUTRINA DO CHOQUE, pela editora SmartBook. (N.T)
****''Flat tax' no original. (N.T)

JOSÉ LUIZ SARMENTO
Out. 2010
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segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Descartes - A Razão

Portrait of René Descartes, dubbed the "F...Image via Wikipedia



António Campos


Com sua fé racional e metódica, o filósofo francês inaugurou a modernidade varrendo o entulho no terreno da mente.

Considerado por muitos o fundador da filosofia moderna, o francês René Descartes foi um dos mais charmosos heróis e um dos mais atacados vilões na história do pensamento. Matemático brilhante e cientista profundamente inspirado, ele legou à reflexão filosófica certo viés mecanicista que ainda não a abandonou de todo – por isso foi acusado de plantar uma semente de frieza no coração do pensamento ocidental. Contudo, foi esse amante dos números e das combinações geométricas quem produziu o sopro de vida mais revolucionário a enfunar as velas da filosofia desde os tempos de Aristóteles – e não é de espantar que sua jornada intelectual tenha dado frutos mistos. Paladino da razão, ele impôs a si mesmo uma missão demasiado formidável: encontrar um método unificado para a decifração dos múltiplos enigmas do universo, desde as profundezas da física até as alturas da teologia, passando pelos dramas da vida humana. Em sua busca impetuosa por conhecimento, Descartes estudou a trajetória dos astros, dissecou cadáveres, embrenhou-se em selvas algébricas, especulou sobre a natureza divina e tentou solucionar as misteriosas imbricações do corpo e da alma – aplicando a tudo a mesma fé racional e metódica.

Pensador de interesses infinitos, Descartes foi também um dos estilistas mais rematados e menos pedantes na literatura filosófica. Suas obras contêm voos narrativos de dar inveja a muitos ficcionistas – em vez de nos empurrar conclusões prontas, o autor dos clássicos Discurso do Método e Meditações Metafísicas preferiu narrar, passo a passo e com translúcida franqueza, os caminhos e descaminhos de suas reflexões. Ler Descartes é pensar junto com ele – e, mesmo quando discordamos de suas conclusões, é impossível não admirar a sinceridade e o esmero de seu relato. Nisso, ele simboliza o inverso daquela figura tão comum nos dias de hoje: a do especialista hermético, que jamais abandona a proteção e o conforto dos jargões. Espécie de romancista do pensamento abstrato, René Descartes quis dirigir-se de forma franca e compreensível a todos os seres dotados de razão e bom senso – e nisso ele triunfou com maestria poucas vezes igualada. Foi, acima de tudo, o filósofo da clareza.

Descartes - Filósofo, físico e matemático, René Descartes, o pensador que introduziu a dúvida na filosofia, nasceu na França em 1596 e morreu na gélida Estocolmo (Suécia) em 1650.

Cheio de opiniões Descartes nasceu na região francesa de La Touraine em 1596, no seio de uma família abastada. Sua mãe morreu de tuberculose antes que o filho completasse 1 ano; o pai era um ocupadíssimo magistrado que passava a maior parte do ano longe de casa. Pálido, frágil, sempre assolado por tosses e febres, René teve uma infância solitária e hipocondríaca. Aos 8 anos, foi estudar como interno no célebre colégio jesuíta de La Flèche – lá, a agudeza de sua mente logo se tornou tão proverbial quanto sua delicadeza física. Os professores permitiam que ele ficasse na cama até o meiodia, e o pequeno Descartes aproveitava as manhãs para devorar livros atrás de livros, bem acomodado entre travesseiros e lençóis (sem dúvida, um método dos mais eficazes para aquisição de conhecimento). As tardes eram dedicadas ao esporte típico de um cavalheiro: a esgrima. Apesar das tribulações respiratórias, René tornou-se um espadachim de respeito e chegou mesmo a escrever um tratado sobre armas brancas. O gosto pela solidão, a indolência matinal e a dupla habilidade com palavras e com floretes foram traços que o acompanhariam pelo resto da vida.

Entre os doutos jesuítas, Descartes desfrutou os rigorosos benefícios de uma educação clássica: leu os gregos e os latinos, encantou-se bem cedo pela poesia e encontrou na matemática a paixão de sua vida. Ainda muito jovem, contudo, seu entusiasmo erudito deu lugar a um crescente escândalo intelectual. Transitando pelas obras dos grandes filósofos de diversas épocas, Descartes não encontrou soluções definitivas para os enigmas da alma e do universo, mas uma infindável e encarniçada batalha de opiniões: Aristóteles quase sempre discordava de Platão; ambos eram desprezados pelos céticos, que por sua vez caíam na zombaria dos cínicos; e os batalhões de escolásticos medievais – todos igualmente sábios e pios – sequer concordavam em qual seria a melhor forma de provar a existência de Deus... Anos mais tarde ele escreveria em um de seus trechos autobiográficos: “Considerando quantas opiniões diversas, sustentadas por homens excelsos, havia sobre uma única e mesma matéria, eu reputava quase como falso tudo quanto era apenas verossímil... Pois nada se poderia imaginar de tão estranho e de tão pouco crível que algum dos filósofos já não houvesse dito”.

Exasperado com tamanha algazarra, Descartes decidiu abandonar as querelas eruditas e buscar iluminação no “grande livro do mundo”. Em 1618, viajou aos Países Baixos e alistou-se no exército do príncipe de Orange, que combatia uma invasão espanhola (Descartes, que era católico sincero, combateu ao lado dos protestantes – mais uma interessante esquisitice na vida desse andarilho excêntrico). Mais tarde, serviu nas tropas do duque Maximiliano da Bavária, participando nos primeiros embates da Guerra dos Trinta Anos. Nessa época, a filosofia ainda era para ele mais uma inquietação que um ofício. Até que um dia, aos 23 anos, em meio a andanças militares, Descartes teve a revelação que mudou os rumos de sua vida.

No inverno de 1619, as tropas do duque Maximiliano da Baviera estavam estacionadas na aldeia de Ulm, no sul da Alemanha. A neve tombava com abundância e ventos gélidos varriam o lugarejo. O exército inimigo estava bem longe e os soldados não tinham muito que fazer. Para escapar ao frio, Descartes passava a maior parte do tempo enfurnado em um quarto aquecido, aproveitando o ócio para meditar. Como sempre, atormentava- o a velha questão: por que haveria tanta discórdia entre os sábios? Qual seria o método correto para decifrar o universo? No dia 10 de novembro, a resposta subitamente surgiu, na forma de uma metáfora arquitetônica. Descartes imaginou, primeiramente, uma cidade construída ao sabor das gerações humanas, com prédios acumulando-se ao léu. Em seguida, pensou em uma cidade perfeitamente planejada por um único arquiteto, com ruas alinhadas em traçado impecável. Por fim, concluiu: “Não há tanta perfeição nas obras compostas pela mão de diversos mestres, como naquelas em que um só trabalhou. Assim, os edifícios construídos por um só arquiteto são mais belos que aqueles que muitos tentaram reformar... E parece-me que as ideias que avolumaram pouco a pouco, compostas pelas opiniões de muitas pessoas, não se acham tão próximas da verdade quanto o simples raciocínio de um homem de bom senso”.

Autonomia mental ou seja: na busca pela verdade, as ponderações de um único indivíduo podem valer mais que todo o peso das tradições acumuladas. O que Descartes descobriu no aconchego da estufa, enquanto a neve caía lá fora, foi o valor absoluto da autonomia intelectual. Para pensar corretamente, é preciso antes abolir todos os privilégios e toda a autoridade dos mestres; é preciso colocar em cheque todos os pressupostos, todas as filiações, todos os medos, e valerse apenas daquilo que é comum à humanidade inteira: a razão.

O dom de distinguir o falso do verdadeiro existe em todos os homens, argumenta Descartes – o problema é que a maioria deles utiliza esse instrumento de forma rasteira, contentando-se com verdades parciais ou incompletas, que foram herdadas e não conquistadas. Antes de construir seu próprio edifício filosófico, Descartes decidiu varrer o entulho no terreno da mente – e só poderia fazer isso atacando impiedosamente os alicerces de tudo aquilo em que acreditava. Para chegar à mínima das certezas, era preciso mergulhar de cabeça no oceano da dúvida. E eis aí um dos aparentes paradoxos que fazem de Descartes um dos personagens inesquecíveis na saga do pensamento mundial. Racionalista fervoroso, sedento de verdades absolutas, o eclético espadachim de La Touraine duelou a vida inteira contra a incerteza – mas acabou concluindo que só se derrota esse portentoso adversário com as armas que ele próprio nos fornece. Duvidar metodicamente de tudo, até que a mente depare com algum princípio inquestionável – essa é a essência da “dúvida cartesiana”, cerne do método racional, que o filósofo-matemático tratou de aplicar a todas as equações do universo.

Descartes descobriu que, para pensar corretamente, é preciso abolir todos os privilégios e toda a autoridade dos mestres e valer-se daquilo que é comum à humanidade inteira: a razão

O primeiro alvo da dúvida cartesiana são nossas certezas mais imediatas – aquelas fornecidas pelos sentidos. Imerso em reflexão no calor da estufa bávara, Descartes se pergunta: será mesmo verdade que estou aqui, num quarto aquecido, com a neve a tombar copiosamente lá fora? Certamente, é isso que os sentidos afirmam – contudo, quando sonhamos, também acreditamos na realidade do sonho, e só ao acordar descobrimos que tudo foi ilusão... Para ilustrar o escopo radical de sua dúvida, Descartes elabora uma hipótese com delicioso sabor fantástico: imaginemos que o mundo seja governado por um espírito maligno; imaginemos que essa divindade embusteira tenha criado nossa mente com o único intuito de nos enganar; nesse caso, como poderíamos ter certeza quanto ao testemunho de nossos sentidos, ou mesmo quanto às verdades aparentemente óbvias da matemática? “Ora, quem me poderá assegurar que esse deus não tenha feito com que não haja nenhuma terra, nenhum céu, nenhum corpo, nenhum lugar e que, não obstante, eu tenha os sentimentos de todas essas coisas?”, escreve o pensador nas Meditações Metafísicas. “E pode ocorrer mesmo que esse deus tenha desejado que eu me engane todas as vezes em que faço a adição de dois mais três, ou em que enumero os lados de um quadrado”. Ou seja: tudo o que vemos, ouvimos, pensamos e calculamos pode não passar de uma fraude cósmica, e o conhecimento humano talvez seja apenas uma magnífica tirada de humor diabólico.

E é precisamente nesse ponto, quando a consistência do conhecimento está prestes a se dissolver em sonho ou em pesadelo, que Descartes efetua sua estocada magistral: nem mesmo o mais poderoso dos demônios, nem mesmo o mais astuto dos deuses poderia me enganar e me iludir se eu não existisse. Ainda que eu duvide de tudo, não posso duvidar de minha própria dúvida e, por conseguinte, de meu próprio pensamento. Da dúvida extrema, Descartes faz emergir sua primeira certeza, cunhada na frase mais famosa da filosofia: “Penso, logo existo”. O pensamento, e não a matéria, é a evidência de que existimos – sobre essa verdade dura como pedra, arduamente resgatada no naufrágio das falsas certezas, Descartes ergue o monumento reformado de sua filosofia.

Após o período passado no exército, Descartes dedicou o resto da vida à reflexão. Exilou-se na Holanda, onde viveu totalmente sozinho, lendo, pensando, fazendo experimentos dos mais variados e relatando por escrito suas aventuras mentais. Por mais que buscasse a solidão, seus livros correram a Europa atraindo tanto discípulos quanto detratores – e o grande misantropo acabou vitimado por sua própria fama. Em 1649, a rainha Cristina da Dinamarca – que tinha suas veleidades intelectuais, como tantos monarcas da época – resolveu contratar Descartes como instrutor pessoal em assuntos filosóficos. Em uma carta, o pensador recusou educadamente o convite. Cristina insistiu, levemente ofendida. Com medo de incorrer na ira de uma soberana, Descartes acabou cedendo. Cristina exigiu três aulas por semana – todas às 5 da manhã. Por alguns meses, Descartes foi obrigado a acordar de madrugada, no inclemente inverno escandinavo – verdadeiro suplício para um dorminhoco hipocondríaco. Por causa dos caprichos de sua real pupila, o autor das Meditações Metafísicas foi fatalmente derrubado por uma pneumonia em 11 de fevereiro de 1650.

Mais que um método, mais que uma doutrina, ele nos deixou um símbolo. Seu intelecto ao mesmo tempo sereno e atribulado, oscilante entre o sonho e a realidade, sempre em busca de um inatingível graal filosófico, serviria nos séculos seguintes como um farol hipnótico para as mentes inquietas – e como eterno convite ou eterno desafio à coragem de pensar.

LIVROS - Dicionário Descartes, John Cottingham, Jorge Zahar Discurso do Método, Descartes, L&PM P

Texto de José Francisco Botelho | ilustração Estudio Area

Fonte: Revista Vida Simples

Out.2010

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quinta-feira, 18 de novembro de 2010

O outro lado de um ‘milagre estatístico’

Caricature on Ursula von der LeyenImage via Wikipedia


António Campos


No limiar de uma nova cimeira europeia, Berlim surge ao lado de Paris a propor sanções duras para os "pecadores orçamentais" e invoca, para justificar essa dureza, a autoridade da Alemanha como locomotiva e modelo de recuperação económica. Mas na Alemanha fazem-se ouvir vozes a alertar para a manipulação estatística que subjaz a este novo "milagre alemão".

Como em França: o poderoso sindicato metalúrgico alemão punha em causa, na sua manifestação de ontem, o aumento da idade da reforma para 67 anos Stephanie Pillick, Epa.

Os mais loquazes na propaganda sobre o novo "milagre alemão" têm sido a titular da pasta do Trabalho e Assuntos Sociais, Ursula von der Leyen, e o da pasta da Economia e Tecnologia, Rainer Brüderle. Este foi mesmo ao ponto de emitir declarações encorajando o patronato a aumentar os salários porque, em tempos de crise internacional, uma economia exportadora como a alemã ficaria desse modo mais bem defendida e encontraria no mercado interno compensações para a contracção da procura externa.

Os sinais de recuperação

Que as declarações de Brüderle eram algo mais do que simples fanfarronada ("Angeberei", para os alemães mais cépticos), pareciam confirmá-lo ondas de choque positivas, sensíveis para além das fronteiras alemãs, como o recente aumento de 3,9% nos salários da Autoeuropa, em contramão de todas as tendências da economia portuguesa.
Na Alemanha, porém, não faltam vozes críticas que, sem porem em causa a realidade de uma certa recuperação económica, questionam o seu significado, os seus pés-de-barro e a sua dinâmica futura. É esse o caso de um artigo hoje publicado no diário Der Spiegel pelo seu editor de Economia, Sven Böll.
Aí se enumera alguns dos trunfos estatísticos exibidos pelo Governo - para depois os desmantelar, um após outro. Entre os trunfos estatísticos conta-se o facto de ter baixado para 2.950.000 o número de pessoas desempregadas, partindo de um pico recente de cinco milhões. Além disso, o Governo festeja o aumento do número de contribuintes da segurança social para 28 milhões, em comparação com o pico negativo de 26,5 milhões, correspondente àquele máximo do desemprego.

O reverso da medalha

Acontece porém, lembra Böll, que a fria quantificação não responde a interrogações qualitativas, como seria a do tipo de emprego obtido pelas pessoas entretanto dadas de baixa na estatística do desemprego, ou como seria a da dimensão do subemprego ou a da dinâmica social do fenómeno e da sua evolução previsível.
O próprio autor responde parcialmente a algumas destas questões omitidas na versão oficial do "milagre": há cerca de 5 milhões de alemães com empregos de 400 euros e cerca de 2,2 milhões a complementarem com algum biscate a sua ocupação principal.
Além disso, as empresas de trabalho temporário florescem, à custa de 900.000 trabalhadores descartáveis. que apenas são chamados para curtos períodos de trabalho, quando são precisos. Dos titulares de um "emprego", há 1,5 milhões a ganharem um euro por hora, em "terapia ocupacional", como lhe chama o autor, criada pelo Estado para embelezar a estatística.
Existe, por outro lado, desemprego e desemprego. Nos 2.950.000 desempregados inclui-se tanto o desemprego temporário como o desemprego de longa duração. Aquele que mais desceu ultimamemte foi o desemprego temporário - o que significa, por um lado, que o ganho é mais precário do que dizem os números e, por outro, que o desemprego restante é o mais gravoso em termos sociais e o mais difícil de debelar.
A esse respeito, pouco ou nada se fez e uma observação mais cuidadosa poderá mesmo revelar que se mantém a tendência histórica para um agravamento deslizante. Com efeito, acrescenta Böll, é cerca de um milhão o número de pessoas desempregadas há mais de um ano - e "em comparação com o ano anterior o recuo [desse número] cifra-se nuns ridículos 1,1 por cento".

O verdadeiro défice de emprego

Quanto aos 28 milhões de contribuintes para a segurança social, eles representam, é certo, um progresso em relação ao já citado pico negativo de 26,5 milhões, mas não relativamente ao máximo histórico de 29 milhões, registado em 1992. E, será bom lembrá-lo, a sociedade envelheceu entretanto substancialmente, de modo que os 28 milhões de hoje perdem ainda mais se a comparação for feita em termos percentuais.
Para as pessoas que procuram trabalho, para as que desistiram de procurar, para as que encontraram algo inadequado, para as que encontram de vez em quando algo precário e voltam a perdê-lo, para todas essas e outras, conclui o investigador, não fariam falta quase três milhões de empregos, como as estatísticas oficiais insinuam, e sim nove milhões. É esse, na Alemanha de hoje, o número necessário ao pleno emprego.

http://tv1.rtp.pt/noticias/index.php?t=O-outro-lado-de-um-milagre-estatistico.rtp&article=387269&visual=3&layout=10&tm=6


Out.2010
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terça-feira, 16 de novembro de 2010

A filosofia e o consolo do tempo

Portrait of Henri Bergson by J.E. Blanche 1891...Image via Wikipedia


António Campos

O pensamento de Bergson indica um sentido para nos libertarmos da ditadura do tempo
O filósofo francês Henri Bergson dedicou-se, ao longo de sua vida, a tentar compreender o tempo real. Sua principal descoberta, princípio de todas as suas análises e de suas maiores contribuições para a filosofia e para a ciência, foi precisamente o erro estrutural que o saber comete ao definir o tempo como um fenómeno linear e quantificável. Em poucas palavras, sua intuição primeira foi a de que o tempo do relógio e da cronologia, tão caro à nossa vida em sua dimensão prática, não corresponde à verdadeira manifestação da temporalidade, nem à sua verdadeira essência – o tempo da práxis é duração em refração no espaço. Trata-se da ilusão que impulsiona a vida e a técnica, a imagem de um tempo que avança por saltos, intervalos, que se desdobra em linha e se divide em um antes, um agora e um depois.

Mas Bergson não se limitou a essa descoberta. A contrapartida da denúncia da imagem ilusória de um tempo que, ao fim e ao cabo, é tempo-espaço, é a intuição de que a essência da temporalidade se manifesta no mais profundo de nós mesmos. Eis a sua famosa tese da duração real, descoberta na interioridade do eu e ampliada para todos os fenómenos após um minucioso trabalho de desconstrução de conceitos e acesso à experiência, aos dados da sensibilidade e aos fenómenos da memória e da vida. Interessa-nos aqui que a duração real, verdade do tempo e do ser, nos é acessível no contato que podemos ter conosco, ao mergulharmos, num processo de interiorização, na profundidade de nossa pessoa. Ali, a temporalidade manifesta-se como fusão de momentos em progressão, pura heterogeneidade qualitativa marcada por um tom, transformação contínua de momentos interiores uns aos outros. A verdadeira manifestação do tempo dá-se por imagens, entre as quais a da melodia ocupa lugar de honra. Em lugar da espacialidade e do horizonte aberto próprio às imagens visuais, a música representa melhor a verdade do tempo.

“Cronos ensandecido”

Se levarmos em consideração que o tempo da cronologia e do relógio é, com efeito, o tempo elaborado e seguido pela vida contemporânea em sua dimensão social e, sobretudo, em sua dimensão técnica – não sabemos mais dizer onde termina o humano e onde começa o inumano, seja como ramificações tecnológicas, seja como atuações num mundo que é publicização e imagem –, a filosofia de Bergson, uma vez compreendida e incorporada, seria um consolo para os males do tempo por si só. Imaginemos o alívio trazido pela descoberta de que o tempo que não para de passar, corroer, aumentar, o’time is money’ao qual estamos submetidos inexoravelmente, o tempo atrás do qual estamos sempre correndo, que nos angustia, que nos devora, o cronos ensandecido (título do livro de Sérgio Pripas) que nos aflige e nos falta, enfim, que esse tempo do século 21 é uma imagem ilusória! Imagine sabermos, de repente, que o tempo não passa como pensamos, que o antes não condiciona o agora, que o agora não determina o depois, que não podemos saber o antes partindo do depois…

Mas esse consolo aqui sugerido tem um preço: conhecer e aderir a uma única proposta filosófica, o que exigiria, além do enorme esforço para estudá-la, a difícil decisão de abrir mão das outras filosofias, de autores distintos, extremamente instigantes. Além disso, a duração verdadeira, uma vez acessível a nós, nos impõe, de si mesma, a tarefa de agirmos para expressá-la no mundo – a definição mesma de liberdade, segundo Bergson. Assim, a questão que queremos colocar à luz dessas considerações é de outra ordem: a filosofia, como atividade, ou aquilo que podemos, mesmo sob o risco de cometer alguma impropriedade, reunir sob o nome de “atividade filosófica” nos traz algum consolo diante das dificuldades ou das intempéries do tempo?

A resposta mais óbvia seria, talvez, pensar na imagem do filósofo que sai fora do mundo, que se afasta do real, que cai no buraco porque anda examinando as estrelas – esse filósofo não viveria, no sentido mais comum do tempo, e por isso não sofreria… Ele estaria eternamente consolado. Mas Bergson mesmo nos indica outro sentido para nos libertarmos da ditadura do tempo, e que não exige o abandono da vida, o refúgio na ilha da abstração, no mundo dos conceitos. Esse sentido está no ritmo da atividade filosófica, assim como no da arte: ler um belo parágrafo de um clássico, que nos impele a dar voltas em torno dele, nos conduz a outros pensamentos, a novas imagens daquilo mesmo que determinávamos como pedaços do real; enfim, ler e escrever efetiva e ativamente sobre filosofia nos obriga a forçar nosso pensamento e nossa capacidade de criar soluções conceituais (criar conceitos, como diria Gilles Deleuze), significa já, em ato, libertar-se de um tempo dirigido, determinado por um fim, medido por um intervalo. Criar uma obra sem finalidade imediata, imprimir às coisas uma emoção, um sentimento, usar enfim a matéria do mundo para expressar nossa pessoa, sua profundidade que revela algo de universal, significa trazer ao tempo da práxis outro ritmo, outra tensão: imprimir na espacialização da vida social e tecnológica um ritmo que não é o seu. Significa, mais que tudo isso, ampliar o escopo de nossa experiência, que passa a incorporar os efeitos de uma interiorização criativa. Em que essa experiência nos consola? Ela acaba por ser, talvez, mais nossa, nos pertencer de forma mais autêntica e, por isso mesmo, ser mais humana. Se tudo isso ainda parecer excessivamente teórico, terminaríamos dando um exemplo mais concreto: a filosofia é uma atividade praticada por estudantes e estudiosos, professores e mestres, diletantes, até crianças, mas o fato é que, ao poder ser significativamente exercida pelos ditos “velhos” (grandes filósofos da história produziram obras das mais relevantes em idade “avançada”), ela nos liberta de uma das mais difíceis imposições do tempo – a da busca de uma juventude eterna, do tempo perdido. Na filosofia, assim como na arte, o tempo nunca se perde, ele só se cria ou se transforma.


Fonte: Publicado em 01 de abril de 2010 na Revista Cult - Edição 143.
Imagem: Google

Débora Morato Pinto

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sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Afinal, os terroristas quem são?

Parlamento de Portugal - LisboaImage by mattiabergamini via Flickr


António Campos


Assembleia da República, sítio de griteria e acusações: todos responsáveis pelo desgoverno. Ai se Afonso Henriques fosse vivo!

Estes dias que vivemos, parecem-me estarem cheios de tristezas, injustiças e lágrimas, bem como de solidariedades, declarações, debate, uso da razão, uso das emoções. É um falar constante dos acontecimentos que sobre nós caem. Corpos mortos, corpos feridos, fuga do perigo, vida de terror. A resposta à pergunta do título podia ser simples: os que matam sem motivo ou sem motivo aparente provocam depressão a outros seres humanos. Se quisermos uma lista do terror sobre os seres humanos, basta-nos ler o jornal e ver que desde 2002 em Bali, até ao dia 7 de Julho deste ano, ocorreram oito actos denominados terroristas e, consequentemente, tivemos mortos, feridos, seres triste… um mundo dividido.

A pergunta tem outra resposta. Não é para entrar na História da Humanidade, aquando Eva seduz Adão para ser divino, Caim mata Abel, Noé constrói um imenso barco para fugir das águas dos mil dias, as guerras. Ou, definir a luta de classes. Não apenas à Marx de 1864, ou Durkheim de 1888 e também Mauss de 1923: toda a nossa legislação de segurança social, este socialismo de Estado, se inspira no princípio seguinte: o trabalhador deu a sua vida e o seu trabalho à colectividade por um lado, aos seus patrões por outro, os que beneficiaram dos seus serviços não estão quites com ele através do pagamento do salário. Devem-se lhe oferecer , uma certa segurança na vida, contra o desemprego, contra a doença, contra a velhice e a morte, como escreve detalhadamente o nosso sábio Marcel Mauss,  na página 187 da versão portuguesa de 1988 do seu livro Ensaio sobre a Dádiva, Edições 70, 2001, tradução do seu texto de 1924 Essai sur le don. Formes et raison de l’echange dans les sociétés archaïques. Publicado no L´Année Sociologique, Félix Alkan, Paris. Parágrafo fundamental para entender a questão que abre o texto, para ajudar a explicar os factos que nos aterrorizam e nos enchem de raiva, tristeza e incompreensão.

O terrorismo não aparece de entidades desconhecidas. Ele surge do lucro que os grupos mais ricos são capazes de organizar nesta vida, apesar de pretender na vida pública serem do povo, eleitos pelo e para o povo. Não é em vão que um dos atentados, o mais recente, acontece na abertura da cimeira dos G 8, o dia que começam os trabalhos dos oitos grupos sociais mais ricos do mundo para pensar como acumular processos de mais-valia entre o operariado e assim desenvolver tecnologia, ganhar três recentes e violentas guerras, retirar riqueza da força de trabalho universal, serem capazes de juntar água e azeite em Gaza, etc. Os Presidentes Socialistas não são derrubados: todos são socialistas hoje em dia e, quando houve um primeiro nos anos 70 do Século XX, foi assassinado. De comunistas, nem falar: o muro de Berlim caiu nos anos 80 do Século XX e o Papado conseguiu deter invasões dentro da Europa nos anos 90: Karol Wojtila, como hoje sabemos, telefonou para um número do Kremlin e a Polónia ficou livre…

A luta de classes, também defendida por Émile Durkheim em 1882 e 1903, consiste em desfazer a força de trabalho, retirar os seus meios de transporte, impingir medo numa população que procura companhia, reciprocidade, colaboração, poupança, trabalho, desenvolvimento, carinho, reprodução, família. Descanso nos dias devidos e obras-primas nos de trabalho. Essa é a população atingida para ferir o lucro dos mais ricos, destruir a tecnologia e tornar a construir o que antigamente apenas as guerras desfaziam: a materialidade da vida. Vi a 7 de Julho um Londres de milhares de habitantes, voltar a pé na denominada hora de ponta. Sem uma queixa, sem um pranto, sem revolta. Diferente de Atocha, que derrubou a gestão de um dos 8, ou de Nova Iorque, que até ao dia de hoje semeia o pânico na população, enquanto mantém uma guerra que é aceite e participada, pelo denominado G8, terrorismo. Conceito calmamente não exibido nos media, nos dias seguintes, os de volta ao trabalho.

Terrorismo pago pelo próprio povo que caminha em novos impostos, em mortos, em feridos a cuidar. Ideias e factos para comentar desde muito cedo com os mais novos, retirar-lhes o medo, explicar as diferenças de comportamento entre islâmicos e cristãos e o respeito que estas ideias causam. Esta deveria ser a primeira aula de toda a pequenada em qualquer língua. Na medida em que o trabalho retira mais-valia ao autor da obra, acumula lucro a grupos governados pelo G8, que a seguir, reconstrói a tramóia operária na base do conceito Pátria e Nação, paga das poupanças dos que, no dizer de Mauss, não estão quites com o seu Estado.

A dor é grande ao reparar quem é o terrorista e o uso que se faz do conceito para virar de avesso a guerra entre classes, culturas e religiões. Mais uma vez, ficamos de luto…

Ficamos de luto porque não há dia em que não se publique uma lei para anunciar mais um imposto, mais um aumento de preços, mais indústrias que fecham e trabalhadores desempregados, desacordos entre os partidos políticos que nos governam e o cumprimento de apoio para o orçamento do Estado que nos deve governar em 2011. De luto também, pela redução dos vencimentos, e a aplicação de uma taxa moderadora para os que ganhem mais do que 50.000€ por ano, a par de reduções de medicamentos antes comparticipados, hoje mais caros que ontem.

É anunciado que todas estas alças devem apenas começar em Janeiro de 2001, mas os transportes públicos custa mais 5% desde ontem, 27 de Julho de este ano de Graça do nosso Senhor de 2010. E os comestíveis, quem tem anunciado a subida do IVA em cada produto? Apenas sei que estou a comer menos.

Este governo é uma fantochada que congela as pensões, reduz as consideradas mais altas, por outras palavras as de mais de 400€ por mês e os ataques à riqueza exibida nas monstras começam, tal como acontece com as casas, vandalizadas sistematicamente. É o reinado do terror termidoriano, com as pessoas a acusarem-se umas às outras do agravamento da vida quotidiana.
Apenas sei que não posso curar a doença que me mata, por ter aumentado ao triplo o remédio que me salva, e que o dinheiro que dou para a casa, cada vez compra menos.

De quem o terror, se não dos senhores de fraque que não nos sabem governar e investem em projectos impossíveis de pagar, para honrar a palavra dada.

Não sou homem de fé, mas haja uma divindade que puna os malfeitores que nos governam e à sua oposição. Mudar de governo para quê? São neoliberais, até os socialistas e as bancadas denominadas de esquerda… Uma grande greve aproxima-se. Mudanças não haverá. O país está falido pela má condução de todos os governos dos últimos vinte anos.

Estes dias que vivemos, parecem-me estarem cheios de tristezas, injustiças e lágrimas, bem como de solidariedades, declarações, debate, uso da razão, uso das emoções. É um falar constante dos acontecimentos que sobre nós caem. Corpos mortos, corpos feridos, fuga do perigo, vida de terror. A resposta à pergunta do título podia ser simples: os que matam sem motivo ou sem motivo aparente provocam depressão a outros seres humanos. Se quisermos uma lista do terror sobre os seres humanos, basta-nos ler o jornal e ver que desde 2002 em Bali, até ao dia 7 de Julho deste ano, ocorreram oito actos denominados terroristas e, consequentemente, tivemos mortos, feridos, seres tristes… um mundo dividido.

Raul Iturra
Out.2010
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terça-feira, 9 de novembro de 2010

A corrupção tornou-nos um país ainda mais pobre

Ugandan anti-corruption signImage by futureatlas.com via Flickr



António Campos
A directora do Departamento de Investigação e Acção Penal de Lisboa, Maria José Morgado, falou ao DN sobre a posição de Portugal no 'ranking' mundial da corrupção.
Portugal passou do 23.º lugar para o 35.º no ranking mundial da corrupção. Em sua opinião, a que se deve esta derrapagem negativa?
Deve-se ao melhor conhecimento por parte da opinião pública dos mecanismos da corrupção, das suas causas e consequências nefastas para as pessoas, ao baixar das águas da respeitabilidade, ficando o lodo à luz do dia. Isso foi acontecendo gradualmente nos últimos cinco anos, pelo menos. Assim, más práticas que eram invisíveis e sem rosto ganharam contornos e histórias verdadeiras.
Portugal continua sem ter indivíduos presos por corrupção?
O sistema penal é a ultima ratio, mas admito que há défice de resultados. Acontece que as instituições da administração pública e do Estado central e local continuam muito vulneráveis, que a prevenção ainda não produziu os frutos necessários, que não há auditorias no Estado sobre práticas corruptivas, que não há uma política criminal de prioridade no combate e prevenção da corrupção. O resultado é o desfasamento da justiça penal em relação à realidade. Não podemos combater um inimigo que desconhecemos e sem ferramentas legais. Não temos um sistema informático do inquérito, não temos bases de dados, não temos meios periciais adequados, mas há quem ache que temos meios de mais. Temos gente dedicada e disposta a nunca desistir. Talvez seja esse o problema.
Como pôr termo à corrupção em Portugal?
A Convenção da ONU contra a Corrupção tem a receita. Precisamos de gente honesta em instituições honestas e disposta o travar o combate. Esta é uma guerra prolongada e que nunca termina. A corrupção tornou-nos um país ainda mais pobre, com serviços mais caros, com saúde, educação, auto-estradas por exemplo, mais caras. São essas as consequências não quantificáveis das práticas corruptivas no Estado. Quando as empresas têm que pagar comissões (luvas), os serviços ficam mais caros. Quando as empresas são escolhidas não pela competência mas por critérios obscuros, temos serviços maus e mais caros. Toda a gente já percebeu isso.
O sistema de justiça tem meios para combater a corrupção?
Tem gente disposta a trabalhar com dedicação, na polícia, no Ministério Público e nos Juízes. Os meios são ridiculamente escassos, se considerarmos as recomendações do Grupo de Estados contra a Corrupção. Chamo a atenção para uma recomendação da Assembleia da República ao Governo, de 10 de Agosto de 2010, da qual constam todas as insuficiências de meios periciais, informáticos, recursos humanos e técnicos, bases de dados, etc. Quem ler essa recomendação perceberá perfeitamente.

por LICÍNIO LIMA 27 Outubro 2010http://dn.sapo.pt/Common/Images/img_pt/icn_comentario.gif

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terça-feira, 2 de novembro de 2010

A Europa e a nossa incompetência

Portuguese discoveriesImage by Fr Antunes via Flickr


António Campos

As peripécias das negociações orçamentais entre os proprietários do regime, PS e PSD, não passam de novas manifestações de incompetência de políticos do arco do poder; aliás, o que se repete ao longo de mais três décadas. Agora, ao que tudo indica por pressão do par Merkel – Sarkozi, Sócrates prepara nova proposta para favorecer o acordo e, das hostes do PSD, Nogueira Leite vem a terreiro afirmar categoricamente “a direcção nacional do PSD vai deixar passar o Orçamento”.

A falta de sentido de Estado é fenómeno corrente, com a subsequente degradação da imagem do País no exterior, em especial na UE e na ‘Zona do Euro’. De resto, desta ‘comédia de vaudeville’, já houvera a representação do 1.º acto por Teixeira dos Santos e Eduardo Catroga. Afastaram o acordo por cerca de 230 milhões, num orçamento que envolve de 80 mil milhões de euros. Contabilizemos prejuízos decorrentes para a economia portuguesa, entre os quais a subida imediata das taxas de juros de empréstimos públicos em mais de 0,5%. Isto em cima de um péssimo orçamento.

Como a crise é grande, o dinheiro e o juízo não abundam e a dependência externa, relativamente à Europa em particular, é imensa, a nebulosidade que nos conduz às trevas intensifica-se a cada passo. Merkel e Sarkozynão desistem do objectivo de impor a reformulação do Tratado de Lisboa – já de si é consabida manta de remendos – com vista a punir com avultadas multas e perda do direito de voto os países incumpridores em termos de objectivos do Pacto Estabilidade, nomeadamente a ultrapassagem do deficit público.

A Portugal e a outros estados-membros da ‘Zona Euro’ está a valer, na circunstância, a posição de Jean-Claude Juncker, presidente do ‘Eurogrupo’. O político luxemburguês, em entrevista ao ‘Die Welt’, considerou inaceitável o projecto de revisão que Merkel e Sarkozy combinaram, em encontro bilateral de há dias, em Deauville, França.

Por este lado, parece podermos estar descansados. Todavia, em resultado de 36 anos de esbanjamento de fundos, de investimentos em sectores não reprodutivos, a grande probabilidade é de virmos a cair sob a alçada do FMI. Ocorre-me fazer um apelo com recurso ao estilo salazarista: “Portugueses, preparem o pouco que lhe resta, sigam uma vida humilde na terra porque é no céu que a graça divina vos compensará…ah! E continuem a votar em maioria nos proprietários do regime.”

de Carlos Fonseca


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