sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Sinais da crise, sinais dos tempos



 

"De súbito, sobe da rua um ruído que me soa a algo muito antigo, vindo dos confins das décadas. Acorro à janela. É o que eu pensava: um amola-tesouras, empurrando o carrinho enquanto toca o inconfundível realejo, fazendo-se anunciar a quem precisa de recorrer aos seus bons ofícios.

Vejo-o progredir lentamente no passeio da avenida como se fizesse uma inesperada viagem no tempo: este era um dos sons tradicionais da minha infância. Raro era então o dia em que não passava à nossa porta - noutras ruas de outras cidades - um amolador, pronto a consertar varetas de guarda-chuvas ou qualquer utensílio doméstico, pronto a devolver o gume de facas à sua condição natural. Isto sucedia antes da era do usa-e-deita-fora, em que nos desabituámos de remendar ou reparar o que quer que fosse: ao mínimo estrago, à menor amolgadela, ao mais ínfimo rasgão, comprava-se logo algo de novo.

Os tempos mudaram. Vivemos dias de crise, desemprego e exclusão social. Tempos que forçam muita gente a ir à luta, a arregaçar as mangas, a fazer-se à estrada, a retomar ofícios aprendidos com pais e avós. Jardins de habitações são de repente transformados em hortas, até nas grandes cidades. Propriedades rurais deixadas ao abandono, onde o mato silvestre crescia sem obstáculo de qualquer espécie, passam a ser cultivadas. Estofadores, marceneiros, limpa-chaminés voltam a ser profissões com grande oferta e procura. Multiplicam-se as pequenas lojas de reparações de fatos, calças, camisas e vestidos: vejo algumas delas, no bairro onde habito, trabalhando noite adiante, já após o horário habitual do fecho do comércio.

Este é o melhor lado da crise: aquele que incentiva o regresso ao engenho de cada um para dar a volta à sorte, para dar a volta à vida. Mas há o pior. Aumenta o número de pessoas a pedir esmola envergonhada nas ruas - gente sem trabalho, que deixou de conseguir pagar a prestação da casa, gente que devido a uma doença ou um divórcio viu tudo tornar-se de repente ainda mais difícil e caminha sem destino, implorando "alguma coisinha" para uma malga de sopa.

A crise está presente noutros quadros do nosso quotidiano. Proliferam as lojas que proclamam em letras garrafais: "Compra-se ouro". Este metal precioso nunca esteve tão bem cotado no mercado internacional, o que tem levado muitos a desfazer-se de peças de valor pessoal inestimável para obter algum dinheiro vivo em troca. E reabrem outros estabelecimentos mais sombrios, que não via igualmente desde a minha infância: as lojas de penhores, agora também cada vez com maior procura.

Penso nisto tudo enquando escuto a música do amolador dissipando-se à distância. Só não regressa outro som inconfundível dos meus tempos de menino: o dos pregões dos ardinas, anunciando jornais vespertinos. Ficou célebre o daquele, comunista, que gritava "Lisboa Capital República Popular!" Uma original forma de anunciar a venda de exemplares do Diário de Lisboa, A Capital, a República e o Diário Popular.

Os ardinas não voltam. Deixou de haver vespertinos e a própria palavra caiu tanto em desuso que soa já a português arcaico. Nenhum daquelas jornais que permitiam o trocadilho do engenhoso comunista existe hoje e são cada vez mais insistentes os rumores sobre o possível encerramento de alguns outros. É um efeito adicional da crise: com tão pouco dinheiro disponível, as pessoas começam por cortar no consumo da imprensa, que aliás por estes dias quase só divulga más notícias.

E para isso bem basta o que já se sabe."

Pedro Correia, Delito de Opinião
Agosto, 2011