sexta-feira, 29 de outubro de 2010

O papel do consumo no enredo conjugal

A new hangout in Lisbon, the Docas.Image via Wikipedia
António Campos


Quem é mais importante conhecer: o indivíduo enquanto consumidor ou a família enquanto unidade consumidora? Qual das opções garante aos estudiosos uma efectiva radiografia do consumo, conhecer com mais rigor as expectativas, as necessidades, as condições de vida, numa dada conjuntura?

Enquanto foram as ciências económicas e financeiras que pontificaram nos estudos sobre o comportamento do consumidor, o fundamental das investigações incidia sobre o consumo familiar: o tipo de despesas, as respectivas percentagens por item de despesa, a evolução dessas despesas em função de uma dada conjuntura e da repartição do poder aquisitivo.

A família era a unidade de consumo em que se revia a economia, os mecanismos do mercado. Essa lógica diluiu-se com a ascensão do individualismo. Tal lógica foi, é (e ameaça ser) tão poderosa que as despesas familiares vivem subordinadas ao indivíduo. O assunto pode parecer insignificante, mas não é. Deixámos de saber como é que a família se comporta no consumo, que relações de poder nela se estabelecem, quais os papéis masculinos e femininos perante o orçamento familiar, em que termos se estabelece essa gestão, como se decidem as compras. Não conhecer a família no consumo é perder uma dimensão fundamental dos seus valores e atitudes na vida quotidiana.

“O enredo conjugal, uma viagem à realidade quotidiana do consumo”, por Cataina Delaunay, trabalho editado pela Comissão para Igualdade e para os Direitos das Mulheres (Lisboa, 2001) é nesse aspecto um livro singular, um acontecimento editorial que não se pode silenciar. Não dispomos praticamente de bibliografia semelhante. É facto que dez anos alteraram a realidade social, mas há dados estruturais que merecem ser reflectidos. O consumo é um dado inescapável entre o espaço público e privado, o consumo da família reflecte a divisão sexual do poder doméstico e da tomada de decisão, a toda a hora. Pode haver conflitos nas opções de consumo, a representação do consumo é distinta entre homens e mulheres, bem como a sua repartição e fruição. As comunicações comerciais procuram estar atentas para actuar dentro da família e dos respectivos membros. A autora lança o seu olhar sobre o poder doméstico, a função do consumo na família e a natureza dos papéis conjugais e conclui que é preferível falar em conjugalidades em vez de conjugalidade quando se fala do consumo familiar.

É óbvio que o género é um princípio estruturante do poder doméstico, é o reflexo do dinheiro e da orientação das compras, dos rendimentos do marido e da mulher, do tipo de contas que o casal estabelece, do controlo do dinheiro, da negociação entre ganhos e gastos, mesmo da gestão das poupanças. A autora destaca um conjunto de testemunhos para nos referir que o uso do dinheiro depende do modo como ele chega, dizendo: “A forma como o poder se encontra distribuído pelos membros da família, designadamente no casal, corresponde a diferentes modos de organização da vida doméstica e a formas diversas de conjugalidade. As relações de poder constituem um importante elemento das estruturas e dinâmicas familiares… O comando familiar não pertence a um só membro, sendo confiado, em cada caso concreto, a quem tem uma maior adequabilidade para o exercer”.

O consumo familiar é hoje uma dimensão fundamental da sociologia do consumo. Aqui se enlaçam os papéis individuais nas compras familiares, o significado do dinheiro de acordo com o género e o significado de quem “domina” a decisão de comprar. Os testemunhos recolhidos por Catarina Delaunay são elucidativos, sobretudo o espírito de negociação e a forma como os objectos se alinham na escolha do casal, a diferença de olhares sobre a casa, o espaço e o respectivo recheio, a ocupação de lazeres, a escolha do carro e como de todas essas actividades de consumo existe harmonia ou conflito entre a actividade profissional e vida familiar. A conclusão a extrair é de que há novos ideais igualitários que nem sempre são alcançados na prática da vivência conjugal.

A autora debruça-se seguidamente, com base na teoria das compras, sobre a forma como se decide no casal as refeições, qual é o papel que cada um dos membros da família atribui aos objectos e daqui passa-se para a conclusão de que a manutenção de responsabilidades pelas tarefas associadas ao lar e à família tem hoje uma partilha mais equitativa em termos de afazeres domésticos do que no passado recente. Isto porque a maioria das mulheres vive duras condições de trabalho, auferindo, regra geral, remunerações mais baixas do que o homem, pelo que ainda são patentes alguns estereótipos tradicionais.

Em suma, é mais correcto falar-se em conjugalidades, há variações significativas em termos de organização familiar que diferem de casal para casal. E conclui a autora: “Podemos identificar duas modalidades de organização conjugal. Encontramos um tipo de organização em que os limites são rígidos e as estratégias inflexíveis e, por outro, um tipo de organização menos rígida. O desenvolvimento da aventura conjugal passa por um período de experimentação inicial, de descoberta das diferenças e das soluções para os problemas que se colocam. A aprendizagem da vida a dois, a construção dessa pequena comunidade que é o casal, implica a criação e re-inventação de uma série de valores enormes de conduta, a interiorização de um conjunto de rituais quotidianos”.

A comunicação dentro deste enredo conjugal tem a ver com a existência ou não de filhos, de planos para o futuro, dos estilos de vida e da natureza dos valores que incorporam o casal. Nenhuma destas radiografias é estática, é indispensável que sejam revistas periodicamente para deter informação útil para o mercado e para os direitos e responsabilidades que devem enformar a vida dos consumidores enquanto instrumento dos desenvolvimento e da qualidade de vida.

O estudo sobre o enredo conjugal precisa de continuar sob investigação permanente. As alterações na estrutura familiar são permanentes, os papéis são muito dúcteis, daí a permanência dos sobressaltos daí advenientes no mercado de consumo. Impõe-se um estudo sob a forma de observatório, independente dos interesses dos consumidores, produtores ou prestadores de serviços, para que se conheça com a actualização possível a essência deste enredo conjugal e o seu peso na economia e na sociedade.

Beja Santos, Out.15.2010
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quarta-feira, 27 de outubro de 2010

A tez da crise

Protests on Austurvöllur because of the Icelan...Image via Wikipedia

António Campos

Existem teorias económicas que resistem a morrer. Mesmo estando na mais profunda bancarrota intelectual e com o valor das suas predições em zero, continuam a caminhar como os mortos-vivos do vudu. A sua relevância empírica pode ser nula, mas continuam a ser usadas para justificar a política económica neoliberal. São verdadeiras teorias económicas zombi (e respondem a um novo acrónimo, TEZ).

O exemplo mais recente é o apelo para regressar à austeridade fiscal e às “finanças públicas sãs”. Na Europa e nos Estados Unidos o coro das posições conservadoras é unânime. A sua mensagem central é simples: já se tentou o resgate da economia com um gigantesco estímulo fiscal e agora é tempo de deixar o sector privado fazer o resto. Seja porque se pense que o estímulo fracassou, seja porque teve sucesso mas já deu tudo o que podia oferecer, a conclusão é a mesma: o défice fiscal constitui um perigo mortal para a economia a longo prazo.

A narrativa é completada com várias referências à teoria económica neoclássica, em particular a chamada “equivalência ricardiana”. Segundo este princípio (com raízes na obra de David Ricardo) um estímulo fiscal não tem nenhum efeito porque os agentes prevêem que o défice deverá ser financiado posteriormente com um aumento de impostos. Para se prepararem contra esses encargos adicionais, os agentes pouparão os recursos que lhes chegam via estímulo fiscal e a procura agregada permanecerá sem mudanças.

A narrativa conservadora continua: o défice pode cobrir-se com endividamento do governo, o que se supõe conduzirá a um aumento na taxa de juros. Isto reduziria o investimento agregado e tiraria oportunidades ao sector privado para realizar investimentos produtivos. O sector público “estorvaria” o bom desempenho do sector privado. Em síntese, o estímulo fiscal é inútil ou pernicioso. Nos Estados Unidos e na Europa é claro para onde vai esta perigosa argumentação: ainda em plena recessão, é melhor desfazer-se do estímulo fiscal.

Mas a simplicidade da mensagem oculta a falácia do raciocínio que está baseado nos pressupostos de expectativas racionais e do rendimento do ciclo vital. Estes são dois exemplos de uma pseudo-teoria carregada de erros e simples tolice. É uma teoria zombi.

Segundo a noção do rendimento do ciclo vital, os consumidores gostariam de manter uniforme o seu plano de consumo ao longo da sua vida, e pouparão agora o estímulo fiscal para poder cobrir os aumentos de impostos que eles “sabem” virão no futuro. Isso é absurdo, pois vários estudos mostram que os agentes gastam de facto uma parte do estímulo fiscal numa recessão (mesmo quando aumenta a propensão média para a poupança). Por trás disto encontra-se a muito desacreditada teoria de expectativas racionais (que valeu um prémio Nobel a Robert Lucas), um dos melhores exemplos da “economia vudu”.

O mais importante é que este tipo de raciocínio ignora tudo sobre a natureza da despesa pública e dos fluxos financeiros numa economia monetária moderna. Para começar, uma injecção de recursos na economia tem um efeito multiplicador, impulsiona o crescimento e melhorará a posição fiscal do governo: a arrecadação aumentará e o défice será menor. Se for complementada com políticas sectoriais bem delineadas, pode promover mudanças estruturais interessantes.

A ideia da equivalência ricardiana assenta numa analogia errada entre as finanças de uma família e o governo: a restrição de orçamento das primeiras não pode equiparar-se à das finanças públicas. Além disso, um aumento do défice nos Estados Unidos tende a reduzir a taxa de juros porque implica uma forte injecção de reservas no sistema bancário e isso deprime o preço dessas reservas de forma significativa.

O mais importante é que a visão zombi assenta na premissa de que numa economia existe um acervo fixo de poupança para financiar a actividade produtiva. Um olhar rápido ao funcionamento de uma economia monetária moderna demonstra que o mundo não se move assim. Na sua função de criação monetária, os bancos não recorrem aos seus depósitos para fazer um empréstimo; geram um depósito quando fazem um empréstimo.

A teoria económica zombi distorce a realidade. Essa é a sua função na turbulenta guerra ideológica que enquadra a luta pelo poder. Os exemplos que mencionámos acima relacionam-se com o episódio específico do debate sobre o estímulo fiscal nos Estados Unidos e na Europa. Mas esta batalha não deve confundir-se com a guerra. No fundo, a teoria económica zombi procura perpetuar o predomínio de uma estrutura de poder predadora. A tirania do neoliberalismo é bem servida por esta teoria económica sem sustento racional. A crítica desta teoria, e de todo o pensamento económico, é uma tarefa indispensável numa transformação para uma economia na qual a responsabilidade social seja realmente a prioridade.

de Alejandro Nadal
Set.16.2010
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quinta-feira, 21 de outubro de 2010

A desuniversidade

Coimbra UniversityImage via Wikipedia


António Campos

O processo de Bolonha — a unificação dos sistemas universitários europeus com vista a criar uma área europeia de educação superior — tem sido visto como a grande oportunidade para realizar a reforma da universidade europeia. Penso, no entanto, que os universitários europeus terão de enfrentar a seguinte questão: o processo de Bolonha é uma reforma ou uma contra-reforma? A reforma é a transformação da universidade que a prepare para responder criativamente aos desafios do século XXI, em cuja definição ela activamente participa. A contra-reforma é a imposição à universidade de desafios que legitimam a sua total descaracterização, sob o pretexto da reforma. A questão não tem, por agora, resposta, pois está tudo em aberto. Há, no entanto, sinais perturbadores de que as forças da contra-reforma podem vir a prevalecer. Se tal acontecer, o cenário distópico terá os seguintes contornos.

Agora que a crise financeira permitiu ver os perigos de criar uma moeda única sem unificar as políticas públicas, a fiscalidade e os orçamentos do Estado, pode suceder que, a prazo, o processo de Bolonha se transforme no euro das universidades europeias. As consequências previsíveis serão estas: abandonam-se os princípios do internacionalismo universitário solidário e do respeito pela diversidade cultural e institucional em nome da eficiência do mercado universitário europeu e da competitividade; as universidades mais débeis (concentradas nos países mais débeis) são lançadas pelas agências de rating universitário no caixote do lixo do ranking, tão supostamente rigoroso quanto realmente arbitrário e subjectivo, e sofrerão as consequências do desinvestimento público acelerado; muitas universidades encerrarão e, tal como já está a acontecer a outros níveis de ensino, os estudantes e seus pais vaguearão pelos países em busca da melhor ratio qualidade/preço, tal como já fazem nos centros comerciais em que as universidades entretanto se terão transformado.

O impacto interno será avassalador: a relação investigação/docência, tão proclamada por Bolonha, será o paraíso para as universidades no topo do ranking (uma pequeníssima minoria) e o inferno para a esmagadora maioria das universidades. Os critérios de mercantilização reduzirão o valor das diferentes áreas de conhecimento ao seu preço de mercado e o latim, a poesia ou a filosofia só serão mantidos se algum macdonald informático vir neles utilidade. Os gestores universitários serão os primeiros a interiorizar a orgia classificatória, objectivomaníaca e indicemaníaca; tornar-se-ão exímios em criar receitas próprias por expropriação das famílias ou pilhagem do descanso e da vida pessoal dos docentes, exercendo toda a sua criatividade na destruição da criatividade e da diversidade universitárias, normalizando tudo o que é normalizável e destruindo tudo o que o não é. Os professores serão proletarizados por aquilo de que supostamente são donos — o ensino, a avaliação e a investigação — zombies de formulários, objectivos, avaliações impecáveis no rigor formal e necessariamente fraudulentas na substância, workpackages, deliverables, milestones, negócios de citação recíproca para melhorar os índices, comparações entre o publicas-onde-não-me-interessa-o-quê, carreiras imaginadas como exaltantes e sempre paradas nos andares de baixo. Os estudantes serão donos da sua aprendizagem e do seu endividamento para o resto da vida, em permanente deslize da cultura estudantil para cultura do consumo estudantil, autónomos nas escolhas de que não conhecem a lógica nem os limites, personalizadamente orientados para as saídas do desemprego profissional.

O serviço da educação terciária estará finalmente liberalizado e conforme às regras da Organização Mundial do Comércio. Nada disto tem de acontecer, mas para que não aconteça é necessário que os universitários e as forças políticas para quem esta nova normalidade é uma monstruosidade definam o que tem de ser feito e se organizem eficazmente para que seja feito. 

de Boaventura de Sousa Santos

Originalmente publicado na revista Visão.
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terça-feira, 19 de outubro de 2010

Estamos a viver acima das nossas possibilidades?

Living in Hong KongImage by Stuck in Customs via Flickr
António Campos

Este artigo critica o argumento utilizado por aqueles que desejam reduzir o estado de bem-estar alegando que gastamos mais do que podemos. O artigo assinala que a evidência não avaliza tal postura; mostra que os recursos existem, mas o Estado não os recolhe. No que diz respeito ao endividamento privado, este deve-se primordialmente à diminuição dos rendimentos do trabalho como percentagem do rendimento nacional.

Há uma frase que aparece constantemente na sabedoria convencional do nosso país, reproduzida não só pelos porta-vozes do pensamento neoliberal (que têm grandes caixas de ressonância nos meios de informação e persuasão de maior difusão do país), como também por dirigentes do partido socialista governante em Espanha (e não digamos já por dirigentes do maior partido da oposição, que fizeram de tal frase a sua palavra de ordem eleitoral), que assinala que «há que reduzir os nossos gastos, tanto públicos como privados, porque durante todos estes anos temos vindo a gastar mais do que deveríamos tendo em conta o nível de riqueza que temos». E, como prova disso, referem-se à elevada dívida pública do estado espanhol, à qual se acrescenta também a elevada dívida privada. Este é o novo dogma que tanto o governo como a maioria dos partidos da oposição (excepto as esquerdas não dirigentes) repetem constantemente e que os meios de maior difusão promovem vinte e quatro horas por dia. Daí que o debate político e mediático se centre em como reduzir a despesa, tanto privada como pública, a fim de reduzir tal endividamento. Tal debate dá-se também a nível europeu, sobretudo na sequência do endividamento dos PIGS (Portugal, Itália, Grécia e Spain), que quer dizer em inglês porcos, insulto que pensam ser merecido ao considerarem que a crise do euro foi provocada pelo crescimento desmesurado e irresponsável dos défices e das dívidas públicas destes países devido à sua excessiva protecção social. Até aqui o dogma.

O que é extraordinário é que este dogma se reproduza tão intensamente quando a evidência, facilmente acessível, mostra o erro de tal postura. Vejamos os dados. E perguntemos: Gasta Espanha no seu estado de bem-estar mais do que pode gastar tendo em conta o seu nível de desenvolvimento económico? Os dados mostram que não. Na verdade, gastamos muito menos do que nos corresponderia tendo em conta o nível de riqueza que temos. A Espanha não é um país pobre, pois a sua riqueza, medida pelo seu PIB per capita, é já 94% da média dos países mais ricos da UE-15. E, em contrapartida, a despesa pública social per capita não é 94% da média da UE-15, mas apenas 74%. Isto é, gastamos aproximadamente 66.000 milhões de euros menos do que deveríamos gastar tendo em conta o nível de riqueza que temos.

E, por que não gasta este dinheiro o estado? A resposta não pode ser que o país não tenha este dinheiro (tal como os neoliberais dizem). Na verdade, Espanha tem-no, ainda que não o seu estado. O facto de o estado não gastar tal quantidade de dinheiro deve-se a que não o recolhe, e portanto não o tem. E a razão mais importante para que isto ocorra é fácil de ver. Chama-se poder de classe. Os 30% de rendimento superior do país (burguesia, pequena burguesia e classe média de rendimento alto) têm um poder económico, político e mediático enorme e não pagam os mesmos impostos que pagam os seus homólogos na maioria dos países da UE-15. E como têm uma enorme influência nos meios de comunicação (a maioria dos criadores de opinião pertence a estas classes), os meios de maior difusão nunca falam disso. Esta situação ocorre em todos os PIGS, onde as direitas tiveram um enorme poder (e onde as esquerdas dirigentes foram contaminadas com o pensamento neoliberal - a ideologia dos ricos - tal como o mostrou aquela famosa frase de que «baixar impostos é de esquerda». E baixaram-nos, não só uma, mas dez vezes. É também nestes países onde as fraudes fiscais atingem enormes dimensões, beneficiando disso os rendimentos superiores. Não são, pois, as classes populares dos PIGS, que estão a sofrer enormes cortes nas suas transferências (pensões) e serviços públicos (previdência, educação e serviços sociais, entre outros), as merecedoras do termo PIGS, mas as classes abastadas aquelas que, tendo beneficiado enormemente durante os anos de bonança (os lucros empresariais em Espanha cresceram 73% durante o período 1999-2005, mais do dobro da média da UE-15, enquanto os custos laborais aumentaram apenas 3,7%, cinco vezes menos do que a UE-15), não pagaram o que deviam ao Estado.

O mesmo poder de classe explica o endividamento privado. Que as famílias espanholas estão endividadas é um facto bem conhecido. Mas o que não se analisa é: por que estão endividadas? E a resposta é que, durante estes últimos anos, houve uma enorme polarização dos rendimentos em Espanha e a capacidade aquisitiva das famílias foi diminuindo. A percentagem que os rendimentos do trabalho representam sobre os rendimentos nacionais foi descendo espectacularmente.
Entretanto, os rendimentos do capital dispararam, atingindo níveis exuberantes. A diminuição da massa salarial implicou a necessidade de endividar-se, a fim de manter o seu padrão de vida (e isso apesar de o número de pessoas que trabalham nas famílias ter aumentado, como resultado da integração da mulher no mercado de trabalho). Por outro lado, os enormes rendimentos de capital investiram, mas não nas empresas da economia real (onde se produzem bens e serviços), pois a rentabilidade neste sector era baixa, como consequência da escassa procura, devida à diminuição da capacidade aquisitiva das classes populares. Em seu lugar, investiram no capital especulativo, e em Espanha no sector imobiliário, criando a bolha imobiliária que, ao rebentar, foi a maior causa da crise em Espanha, com muito dinheiro emprestado dos bancos alemães e franceses. O estado, que tem os ingressos do estado mais baixos da UE-15, devido a que os ricos não pagam os seus impostos, teve de se endividar, sendo a mesma banca alemã e francesa quem comprou tal dívida.
Quando a especulação entrou em colapso, os bancos centrais e periféricos depararam com um enorme problema. Quando nos é pedido que apertemos o cinto, quer dizer que temos que pagar aos bancos Isto é o que acontece e não nos é dito nos maiores meios de comunicação. E assim andamos.

de Vicenç Navarro
Set.3.2010
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quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Agriculturas e crise climática

Agriculture in the Virgin Islands? (LOC)Image by The Library of Congress via Flickr


António Campos

A agricultura e o sistema alimentar industrial são a principal causa do aquecimento global e da crise climática. Em contraste, as agriculturas camponesas e indígenas, biodiversas e descentralizadas, são o factor mais importante para enfrentar esta crise e sair dela, para além do facto fundamental de serem as que alimentam a maior parte da humanidade. Apesar disto, a visão que predomina nas negociações internacionais sobre o clima recolhe os interesses das empresas contra os e as camponesas. A tentativa agora é integrar a agricultura e os solos no comércio de créditos de carbono, o que significaria um novo subsídio às transnacionais de agronegócios, favorecendo mais a agricultura industrial e maior despojo às formas de vida camponesas.

Os dados sobre as fontes do aquecimento global variam segundo a fonte, mas coincidem em assinalar a agricultura industrial como uma das maiores fontes de emissão de gases de efeito estufa, juntamente com a geração de energia e transportes baseados em combustíveis fósseis (petróleo, gás e carvão). As actividades agrícolas aparecem como responsáveis por entre 11 e 15 por cento das emissões. Embora este dado já seja grave, apresentá-lo desagregado das emissões da cadeia agro-alimentar industrial oculta uma realidade muito pior quanto à sua responsabilidade pela crise climática. Se se considerarem juntos a agricultura industrial e o sistema alimentar industrial a que está necessariamente ligada, há que atribuir-lhes uma parte significativa das emissões dos transportes; outra percentagem por deflorestação e mudança de uso do solo (em avanço de fronteira agrícola e em uso de papel: aproximadamente 75 por cento do papel que se produz é para propaganda e embalagens, que são somente exigência das grandes cadeias de vendas), e a quase totalidade do metano que as lixeiras emitem devido à putrefacção de lixo orgânico, que na sua maioria são restos de alimentos que se deitam fora nas cidades.

Segundo o excelente trabalho da GRAIN, “La crisis climática es una crisis alimentaria” [1], baseado na análise de dezenas de relatórios, a agricultura e o sistema alimentar industrial são responsáveis por entre 44 e 57 por cento das emissões globais de gases de efeito estufa. Chegam a esta conclusão agregando os seguintes dados: as actividades agrícolas representam de 11 a 15 por cento das emissões; a mudança de uso de solos, desmonte e deflorestação causam de 15 a 18 por cento adicionais; o processamento, empacotamento e transporte de alimentos provoca 15 a 20 por cento, e a decomposição de lixo orgânico de 3 a 4 por cento.

Por outro lado, a GRAIN também faz um cálculo cuidadoso do papel dos solos na crise climática: enquanto a sua degradação é fonte de emissões, se o solo estiver vivo, com matéria orgânica viva e natural que não é eliminada por fertilizantes sintéticos e agrotóxicos e se se cuidar segundo as diversas condições locais, com uma combinação de diversidade e rotação de cultivos, incorporação de matéria orgânica e outras, em poucas décadas poder-se-ia devolver aos solos a sua capacidade natural de reter carbono, e absorver quase dois terços do excesso de gases de efeito estufa que existem actualmente na atmosfera. Mas esta forma de cuidar o solo só é possível mediante a agricultura camponesa e familiar, livre de tóxicos, descentralizada e diversa, adaptada a cada local [2].

No entanto, interesses industriais pretendem agora explorar essa capacidade do solo para absorver e reter carbono para cobrar “créditos de carbono”, usando o solo como escoadouro. Por exemplo, as indústrias que promovem o chamado biochar (carvão vegetal). Trata-se de semear extensas áreas de monocultivos de árvores para queimá-los, convertendo-os em carvão negro, e depois enterrá-lo, teoricamente para “sequestrar” carbono e aumentar a fertilidade do solo.

Segundo os seus proponentes – indústrias que aspiram a fazer grandes lucros –, é também uma forma de geo-engenharia, porque com 500 milhões de hectares ou mais poder-se-ia esfriar o planeta. Cinicamente dizem que é uma tecnologia indígena amazónica. Mas o biochar e as formas indígenas de queimar e enterrar são extremamente diferentes. No primeiro caso trata-se de exercer violência sobre o solo, primeiro com grandes plantações e agrotóxicos, depois enterrando carvão de forma súbita e massiva, que segundo estudos inclusive poderia desequilibrar mais o solo e libertar o carbono retido de forma natural. Além disso, parte do pó de carvão negro liberta-se para a atmosfera no processo e tem um efeito estufa maior que o dióxido de carbono, pelo que outros estudos avaliam que até poderia aumentar as emissões.

Devastar milhões de hectares com plantações e agrotóxicos para depois queimá-las soa realmente a enfermiço. Ao invés, a forma indígena baseia-se em milhares de anos de sabedoria acumulada de manejo diverso e adaptado a cada região, a diferentes solos e a trabalhar respeitando as condições naturais da cada local, de cada solo.

Há mais propostas da indústria para transformar a agricultura e a alimentação no seu campo de lucro particular enquanto o planeta frita e aumenta a fome. Por isso, a Via Campesina apelou, face à cimeira climática que se realizará em Dezembro em Cancún, a denunciar aí e em cada lugar onde estejam as ditas propostas, e a mostrar as verdadeiras alternativas camponesas, tarefa urgente que nos incumbe a todos.

Sílvia Ribeiro, Set3.2010

[1] GRAIN, “La crisis climática es una crisis alimentaria: La agricultura campesina puede enfriar el planeta”, emCrisis climática: falsos remedios y soluciones verdaderas, págs. 25-33, 2010.
[2] Camila Montecinos, Cuidar el suelo.
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segunda-feira, 11 de outubro de 2010

A proliferação das associações de 12 Passos

12_steps_of_aa-080131aImage by beachblogger42 via Flickr


António Campos

O surgimento dos Alcoólicos Anónimos no início do século XX e a sua rápida expansão como expoente máximo como associação de auto-ajuda estão relacionados com factores económicos, sociais e culturais que não são exclusivos do alcoolismo. Neste processo estão subjacentes as ideias de bem-estar individual, autocontrolo e procura de conhecimento que a pessoa tem de si mesma numa sociedade em profunda transformação desde os finais do século XIX, para a qual contribuiu o desenvolvimento económico, tecnológico e burocrático, assim como o surgimento de grandes metrópoles (Wirth 1938). Estas reconfigurações, não sendo exclusivas dos Estados Unidos da América, ganham neste país uma dimensão fulcral. Num contexto marcado por uma ideologia individualista e a massificação da vida urbana, a preocupação com a saúde física e mental assume uma importância crescente no quotidiano dos indivíduos, quer na procura de identidade pessoal, quer na participação em redes de sociabilidade e solidariedade. Segundo Lears (1983), esta preocupação está intimamente ligada com o declínio da importância da religião entendida como forma de «salvação» do indivíduo, para a passagem ao uso da terapia na procura de realização pessoal.

Em épocas anteriores e noutros lugares, o sentido da preocupação com a saúde tinha estado enquadrado em contextos comunitários, éticos ou religiosos mais amplos. No final do século XIX esses contextos tinham entrado em erosão - a demanda da saúde estava a tornar-se um projecto secular e auto-referencial, alicerçado em necessidades afectivas especialmente modernas sobretudo a necessidade de recuperar uma noção de identidade pessoal que se tinha vindo a tornar fragmentada, difusa e de alguma forma «irreal».

Neste contexto, é a própria pessoa que deverá procurar ajuda para o seu problema. Dá-se, então, uma proliferação de associações - de cariz religioso ou outro - que assentam as suas bases em modelos terapêuticos de auto-ajuda. Segundo Schiff e Bargal (2000, 280-282), estes grupos contribuem para o bem-estar dos seus participantes de várias formas: promovem a) esperança de que é possível controlar o problema que ali os leva; b) a pertença a algo por oposição ao isolamento em que muitos se encontram antes de frequentarem as associações; c) apoio entre pares; e d) aquisição de um novos modelos comportamentais e interpretativos que assentam na transmissão deste conhecimento.

Faz sentido falar de comunidade, laços de solidariedade e sentimento de pertença como elementos básicos para percebermos em pleno o movimento dos Alcoólicos Anónimos enquanto reflexo de um sintoma comum a toda uma sociedade: é a união de pessoas em tomo de um mesmo objectivo, num espírito de comunhão. As pessoas têm tendência a agrupar-se e, no caso específico das associações aqui contempladas, encontra-se um reflexo das tendências que encontramos na sociedade contemporânea: constante mobilidade dos indivíduos, despersonalização exponenciada pela burocracia, massificação das trocas comerciais e de novas formas de interacção com relação directa com o desenvolvimento de tecnologias de informação. Concomitantemente, temos relações efémeras marcadas pela mutabilidade; procura de realização pessoal e bem-estar que se reflecte no consumo de bens; reconfigurações dos laços familiares; e a importância crescente de formas de reflexividade interior encontrada sobretudo na terapia (…).

Catarina Frois, Dependência, Estigma e Anonimato nas Associações de 12 Passos – Imprensa de Ciências Sociais – 2009, adaptado
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quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Escolhas impossíveis numa depressão mundial

Through the Great DepressionImage by B Tal via Flickr


António Campos

Enquanto os líderes mundiais e os especialistas continuam a negar a realidade da depressão mundial – nem sequer usam a palavra – as escolhas impossíveis que governo atrás de governo enfrentam tornam-se cada vez mais óbvias a cada dia. Considerem o que aconteceu apenas no mês passado.

Os Estados Unidos tiveram os seus piores índices de desemprego de há um bom tempo. Sim, houve alguns empregos novos, mas 95% deles eram de trabalhadores temporários contratados para o censo. Os empregadores privados criaram apenas 10% dos empregos que se esperava. Apesar disto, tornou-se politicamente impossível conseguir que o Congresso aprove mais verbas de estímulo. E a Reserva Federal deixou de comprar títulos do Tesouro e de hipotecas. Estas eram as duas principais estratégias de criação de emprego. Porquê? O apelo a cortes no défice tornaram-se muito fortes.
A consequência mais imediata pode ser vista ao nível dos orçamentos dos governos dos Estados. O custo do Medicaid subiu devido à crise económica. Este custo é da responsabilidade dos Estados. No ano passado, houve a ajuda de subsídios federais ampliados aos gastos dos Estados com o Medicaid. O Congresso não vai renová-los. O governador Edward Rendell, da Pensilvânia, diz que isto vai aumentar em dois terços o défice orçamentário do seu Estado, e forçá-lo a despedir 20.000 professores, polícias e outros funcionários do governo. Isto, claro, além da perda dos serviços médicos para muitas pessoas.

Na Grã-Bretanha, o novo primeiro-ministro, David Cameron, diz que o corte do crédito é «a questão mais urgente que a Grã-Bretanha enfrenta hoje». O Financial Times resume as suas propostas na sua manchete: «Cameron inicia uma era de austeridade». E avalia assim esta política: «Se o governo vai fazer cortes tão acentuados nos gastos, não pode evitar danos visíveis nos serviços essenciais. Os cortes vão ser mais selvagens que tudo o que foi considerado mesmo pelo governo Thatcher».

A chanceler alemã Merkel anunciou a sua versão da austeridade: cortes profundos dos gastos públicos imediatamente, aumentando anualmente o montante durante os próximos quatro anos. Anunciou também novos impostos sobre as linhas aéreas, os quais, segundo anunciaram imediatamente as companhias aéreas, iriam ferir severamente a sua capacidade de reduzir os balanços negativos e de salvá-las da falência. Os índices de desemprego da Alemanha vão subir, mas os benefícios aos desempregados serão reduzidos. Outros governos na Europa e os Estados Unidos têm vindo a pedir à Alemanha que gaste mais e exporte menos, para restaurar a procura mundial. Merkel rejeitou estes pedidos, dizendo que a sua prioridade era a redução da dívida.
O novo primeiro-ministro do Japão, Naoto Kan, advertiu o país que a situação da dívida é tão má que o país pode enfrentar uma situação comparável à da Grécia. Para remediar isto, propôs alguns aumentos de impostos, mais regulamentação da área financeira, e novos tipos de despesas públicas.

No meio de toda esta super-austeridade no Norte, ocorreu uma coisa notável que parece não ter merecido praticamente atenção. Como todos sabem, a Espanha é um dos muitos países europeus actualmente em dificuldades económicas devido aos enormes rácios da dívida. Em 30 de Maio, a Fitch Ratings juntou-se a outras empresas de rating na redução da classificação de Espanha de AAA para AA+. A questão é porquê. No dia anterior, o parlamento espanhol tinha aprovado os mais profundos cortes orçamentários dos últimos 30 anos.

Cortes orçamentários têm sido o que a Alemanha e outros tem pedido para a Grécia, Espanha, Portugal e outros países ameaçados pelo excesso de dívida. A Espanha respondeu a esta pressão. E, só por tê-lo feito, a Fitch Ratings baixou a sua classificação. Brian Coulton, a pessoa responsável da Fitch pela classificação da Espanha, disse na declaração em que se baixava a classificação de Espanha: «O processo de ajustamento para um nível mais baixo do sector privado e da dívida externa vai reduzir materialmente a taxa de crescimento da economia espanhola a médio prazo».

Cá está: preso por ter cão e preso por não ter. Os especuladores financeiros criaram uma desastrosa queda da economia-mundo. A bola foi então lançada para os Estados, para que resolvessem o problema. Os Estados têm menos dinheiro e mais exigências a pender sobre eles. Que podem fazer? Podem pedir emprestado, até que aqueles que emprestam deixem de o fazer, ou exijam taxas de juros demasiado altas. Podem aumentar impostos, e as empresas vão dizer que esses aumentos reduzem a sua capacidade de criar empregos. Podem reduzir gastos. E além da terrível dor que infligem em todos, mas especialmente nos mais vulneráveis, esta acção também reduzirá a possibilidade de crescimento, como o sr. Coulton assinala para Espanha.

Claro, há um enorme campo para reduzir gastos – o militar. Gastos militares criam empregos, mas muito menos do que se o dinheiro fosse usado noutros sectores. Isto não se aplica só aos maiores gastadores, como os Estados Unidos. Um aspecto praticamente ignorado dos problemas de dívida da Grécia é o dos pesados gastos militares. Mas estão os governos dispostos a reduzir significativamente os gastos militares? Não parece muito provável.

Que podem então os Estados fazer? Estão a tentar fazer uma coisa hoje, e outra coisa amanhã. No ano passado, foram os estímulos. Este ano, a redução da dívida. No ano que vem, serão os impostos.

Em qualquer caso, a situação global será cada vez pior.

Poderá a China salvar-nos? Stephen Roach, o analista muito perspicaz do Morgan Stanley, parece achar que sim, desde que o governo «estimule o crescimento privado». Nesse caso, salários crescentes serão contrabalançados pela produtividade mais alta. Talvez. Mas o governo chinês tem sido resistente a essa política até agora, não por razões económicas, mas políticas. O seu esforço de manter a estabilidade política tem sido primordial até agora. Além disso, mesmo Roach tem uma grande temor – ataques à China em Washington que conduzam a sanções comerciais. Pela minha parte, penso que essa é uma alta probabilidade, à medida em que a situação económica dos EUA continue a deteriorar-se.

A saída de tudo isto não é um pequeno ajuste aqui ou ali – seja da variedade monetarista ou keynesiana.

Para emergir da caixa económica na qual o mundo se encontra confinado é preciso uma profunda reformulação do sistema-mundo. Isto certamente terá de acontecer, mas quando?

Retirado, com ligeiras alterações, de Esquerda.

de Immanuel Wallerstein – Set16.2010

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segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Sociologia da saúde e da doença – alguns aspectos

healthImage via Wikipedia


António Campos

A área disciplinar conhecida, hoje em dia, por sociologia da saúde e da doença é o resultado de uma evolução considerável desde que a sociologia começou a prestar atenção sistemática à medicina e à doença na década de 1950. Então a atenção da disciplina centrava-se sobretudo na profissão médica e nos locais onde os médicos exerciam a sua actividade, como o hospital, onde se podiam encontrar, simultaneamente, os indivíduos que padeciam de patologias agudas. A disciplina ficou, por isso, conhecida como sociologia da medicina, praticada sobretudo nos EUA (para Portugal, v. Carapinheiro 1991 e 1993).

Nos anos 70, a sociologia começou a formular outras interrogações e a procurar diferentes objectos de estudo. Por um lado, elegeu como prioridade o estudo das desigualdades sociais perante a doença e a morte. Esta mudança foi possibilitada por uma convergência com a epidemiologia, tendo a sociologia deixado de se centrar no hospital e na profissão médica para se concentrar nos contextos familiares e profissionais enquanto esferas de produção e reprodução da assimetria de recursos materiais e psico-sociais que protegem ou tomam os indivíduos vulneráveis à doença. Por outro lado, emergiu o interesse pelo estudo das doenças crónicas quando se tomou claro que os avanços da medicina e dos cuidados de saúde não conseguiam dar resposta definitiva a doenças que, com o envelhecimento da população, começaram a marcar a condição humana a partir das idades mais avançadas.

Dois eixos constituem hoje a sociologia da saúde e da doença (Arqué 1997, 20-21). O primeiro é o das desigualdades, que privilegia uma abordagem macrossociológica e o uso de metodologias quantitativas; o segundo é o da experiência da doença, que privilegia, por seu turno, uma abordagem microssociológica e o uso de metodologias qualitativas. O presente estudo desenvolve-se, basicamente, no eixo dos estudos das desigualdades sociais perante a saúde e a doença, alargando-se, todavia, às atitudes e opiniões do conjunto da população, independentemente do seu estado de saúde, sobre essas mesmas questões.

O desenvolvimento da disciplina deve-se ainda à evolução das dinâmicas de funcionamento dos sistemas de saúde e das suas relações com a esfera política, económica e social. Com efeito, na segunda metade do século xx, as sociedades da área geocultural em que Portugal se integrou, sobretudo após o 25 de Abril de 1974, conheceram progressos importantes em quatro dimensões relacionadas, de forma mais ou menos directa, com a saúde e a doença:
- Na dimensão demográfica, assistiu-se no século XX a uma descida da mortalidade infantil e ao controlo das doenças infecciosas (responsáveis pelas altas taxas de mortalidade nos séculos precedentes), daí tendo resultado um aumento muito forte e rápido da esperança média de vida;
- Na dimensão política, se já no século XIX houve movimentos empenhados na mudança das condições de vida a fim de reduzir a mortalidade, só na segunda metade do século xx: se institucionalizou, com o chamado «Estado-providência», um compromisso político de promoção do bem-estar da população, tendo a saúde passado a fazer parte das prioridades da maioria dos governos dos países desenvolvidos;
- Na dimensão médica, embora se discuta a importância exacta dos avanços da medicina e do crescimento dos cuidados de saúde na queda das taxas de mortalidade, é consensual que os progressos verificados nesses dois campos contribuíram para melhorar a qualidade de vida dos indivíduos, reduzindo a dor e o incómodo associados à experiência da doença;
- Na dimensão sociocultural, assistiu-se nas sociedades desenvolvidas - tanto ao nível das condições materiais de vida (subida real dos salários, melhorias na habitação e urbanismo, etc.) como das condições culturais (aumento da escolaridade, etc.) - a progressos muito consideráveis na prevenção da doença e na promoção da saúde(…).

Um dos principais traços da sociologia da saúde e da doença é, assim, o seu carácter multidimensional. Estas passaram a ser pensadas como conceitos complexos, onde adquirem importância tanto os aspectos relacionados directamente com as afecções físicas e psicológicas como as dimensões sociais e ambientais. Conforme os objectivos específicos de cada estudo, é necessário, portanto, prestar atenção a aspectos entre os quais se incluem, para além da possível existência de doenças específicas, o estado psíquico, os hábitos individuais de promoção e prevenção da doença, o nível social e económico, as condições ambientais, o acesso a cuidados de saúde e a informação associada a estes, em suma, todos os factores que podem influenciar, directa ou indirectamente, o estado de saúde das pessoas.

As necessidades sanitárias da população, bem como as vias adoptadas para satisfazer essas necessidades, não são, portanto, questões exclusivamente médico-científicas(…).

O Estado da saúde em Portugal, Manuel Villaverde Cabral e Pedro Alcântara Silva, Ed. ICS – Junho 2009 (adaptado)
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