«Há
alguns anos não pesquisava, nem discutia temas relacionados aos
desenvolvimentos da nanotecnologia no Brasil e no mundo. O convite
simpático de Wilson Engelmann, a partir de uma sugestão de Paulo
Martins, creio, para participar deste XI Seminário Internacional Nanotecnologia, Sociedade e Meio Ambiente
foi uma oportunidade de revisitar um tema que me é caro, como o é a
nanotecnologia na contemporaneidade, relacionando-o à aceleração
tecnológica e ao sofrimento que dela decorre. Este Seminário,
portanto, é para mim oportunidade de me reapropriar um pouco deste tema
importante que mobiliza a todos aqui, aprendendo com as contribuições
daqueles que a ele lhe devotaram uma atenção mais fiel que a minha. É
também uma oportunidade de rever amigos. Agradeço, por tudo isso, a
Wilson Engelmann e aos organizadores deste evento.
Deixem-me
começar falando brevemente sobre o tema da aceleração. Diversos
autores, com interesses variados que vão da sociologia, à antropologia,
filosofia e teoria da técnica têm elegido a aceleração como um dos
fenômenos modernos mais significativos na contemporaneidade. Hermínio
Martins, por exemplo, tem falado recorrentemente de uma “aceleração da
aceleração” - impulsionada pelas tecnologias da informação e pelas
nanotecnologias - e dos tristes e inóspitos cenários em que uma
adaptação pós-humana se tornaria cada vez mais inevitável. Paul Virilio
nos remete a um contexto dromológicono qual já não podemos contar
com sujeitos reflexivos capazes de se orientar racionalmente no mundo,
um contexto no qual o projeto iluminista de controle sobre a vida humana
e a realidade natural de modo amplo se torna impensável. Os aparatos
tecnológicos nos fragmentam e recompõem sem que possamos imprimir um
mínimo de identidade naquilo que fazemos. Jonathan Crary nos relata as
implicações de um assalto ao sono, de um capitalismo que se programa
para operar 24 horas por dia, 7 dias por semana. “Um ambiente 24/7
apresenta a aparência de um mundo social quando na verdade ele se reduz a
um modelo associal de performance maquínica – uma suspensão da vida que
mascara o custo humano de sua eficácia. Não se trata mais disso que
Lukács e outros autores identificaram, no começo do século XX, como o
tempo vazio e homogêneo da modernidade, tempo métrico ou calendário das
nações, das finanças ou da indústria, de onde estavam excluídos tanto as
esperanças quantos os projetos individuais. O que há de novo é o
abandono a relento da própria ideia de que o tempo possa ser associado a
um engajamento qualquer em projetos de longo prazo, incluindo aí
fantasmas de ‘progresso’ ou de ‘desenvolvimento’ (Crary, p. 19). O
instantâneo cada vez mais parece ser o nosso horizonte temporal, segundo
podemos depreender das análise de Crary. O filósofo Peter Sloterdijk,
por seu turno, fala-nos acerca dos aspectos niilistas de uma mobilização
infinita dos seres que é promovida pelas tecnologias da velocidade.
“Eis aí o que nos proporciona a fórmula dos processos de modernização: o
progresso é movimento em direção ao movimento, movimento em direção a
mais movimento, movimento em direção a uma maior aptidão para o
movimento” (La mobilisation infini, p. 35). Nesta mobilização sem
sentido de todas as coisas pelo imperativo da velocidade, nós somos
capturados. Hartmut Rosa, de uma perspectiva mais sociológica, oferece
uma análise interessante das tensões e intensidades entre diferentes
âmbitos da aceleração, nomeadamente, no campo tecnológico, social e
individual. “Experimentar a vida em todos os seus altos e baixos e em
sua inteira complexidade se torna a aspiração central do homem moderno.
As opções oferecidas sempre ultrapassam. Mas, ao fim e ao cabo, o mundo
sempre parece ter mais a oferecer do que pode ser experienciado em uma
vida individual”. E algumas linhas adiante, ele arremata: “A aceleração
serve como estratégia para apagar a diferença entre o tempo do mundo e o
tempo de nossa vida. A promessa eudemonista da aceleração moderna então
parece ser um equivalente funcional das ideias religiosas da eternidade
ou vida eterna, e a aceleração do ritmo da vida representa a resposta
moderna ao problema da finitude e da morte” (Rosa, 2009, p. 91).
Buscamos a intensidade do presente, sua aceleração e múltiplas
possibilidades, como há alguns séculos se buscava um futuro, uma vida
além da morte, que nos redimisse de nossa perecibilidade.
Esses
autores e suas ideias me ajudarão ao longo dessa exposição. Mas
gostaria de principiar minha fala me reportando ao livro de Bernard
Stiegler, Para uma nova crítica da Economia Política, um livro
não diretamente relacionado ao tema aqui em foco, mas que certamente
pode contribuir para lançar algumas luzes sobre este contexto amplo que
nos interessa, ou seja, a aceleração da produção científica e
tecnológica no plano nanométrico. O objetivo filosófico inicial de
Stiegler nesta pequena é reclamar para a filosofia o campo da economia
política para dali, não atualizar uma crítica marxista ao capitalismo
contemporâneo, mas proceder a deconstrução - aqui no sentido que
Derrida outorga a esse termo - de algumas das ideias fundamentais do
velho pensador alemão. Mediante esse recurso, ele pretende analisar o
papel fundamental que o consumo tem para entendermos a dinâmica
acelerada do capitalismo contemporâneo.
A
sociedade do consumo, ou mais propriamente, o consumismo contemporâneo é
uma forma de lidar com as crises crescentes do capitalismo que resultam
de uma tendência a diminuição da taxa de lucratividade, já observada
por Marx no século XIX. Esta saída - que depende obviamente de uma
aceleração no tempo de consumo das mercadorias, na perecibilidade de
tudo o que nos cerca - no entanto, constitui uma falsa solução para o
problema. Como já observava David Harvey, em A Condição Pós-Moderna,
a aceleração proporcionada pelas tecnologias da informação, pela
crescente financeirização das relações econômicas, pelo surgimento de
modos flexíveis de gestão, constituiriam o conjunto de remédios
encontrados pelo capitalismo para gerir crises que este produz
inevitavelmente. A inovação sem tréguas e a obsolescência perpétua e
programada de bens e serviços - às quais o impulso inovador está
associado – apresentam uma afinidade eletiva clara com a propensão
crescente ao consumo que conhecemos tão bem e a ação conjunta dessas
forças salvaria o capitalismo de sua tendência à crescente diminuição
das margens de lucro a que a própria concorrência levaria. Nestes
cenários desoladores empregos, lucratividade, crescimento econômico não
podem ser sustentados a longo prazo e para o conjunto da economia
global. Ao produzir a perecibilidade, e portanto a aceleração do giro
dos capitais, a inovação e aceleração da vida constituem uma resposta
técnica para o problema político e social mais amplo que diz respeito à
sustentabilidade, em sentido amplo, do capitalismo e do mundo em que
vivemos, num sentido amplo.
Para
Stiegler, as catástrofes ambientais que se anunciam e se realizam
seriam, por exemplo, evidência da insustentabilidade de tal modelo. O
desenvolvimentismo sem preocupações ambientais e sociais que conhecemos é
uma evidência disto – pensemos na alternativa privada para encontrada
para o problema da mobilidade urbana que adotamos, para ficarmos num
exemplo menos controvertido. O consumismo, pois, é a lógica da
devastação, do extenuação dos recursos e do próprio ser humano, mas sem
ele o capitalismo parece incapaz de mitigar sua crise contemporânea. “´A
política de investimento’, que não tem outro objetivo além da
reconstituição do modelo consumista, é a tradução de uma ideologia
moribunda, tentando desesperadamente prolongar a vida do modelo que se
tornou autodestrutivo, negando e ocultando por tanto tempo quanto
possível o fato de que o modelo consumista é agora massivamente tóxico"
(Stiegler, p.5). O consumismo é necessariamente baseado no curto prazo,
no descartável, na especulação, na aceleração da aceleração, tanto da
produção como do uso dos bens e serviços, e esta última é
intrinsecamente “tóxica”, para voltarmos ao termo usado por Stiegler,
tanto para o ser humano quanto para o seu ambiente. Os desastres
ambientais, o aumento de doenças relacionadas ao stress da vida
contemporânea não são efeitos colaterais da aceleração tecnológica -
desajustes que poderiam ser contornados mediante a racionalização dos
cálculos de risco -, mas sua própria essência. O consumismo é uma
expressão consumada do niilismo ocidental.
Para Stiegler, um elemento fundamental de todo modo tecnológico é constituir uma forma de “gramatização”, isto é, grosso modo,
de automatização, formatação e reprodutibilidade da vida social. Sem
ela não há propriamente formas sociais previsíveis a partir das quais
nós possamos nos relacionar, evidentemente, mas sempre podemos, e é este
o caso agora, perguntar a que tipo de gramática submetemo-nos quando
aceitamos sem mais este modelo da aceleração e do consumo desenfreado,
quais são seus pressupostos. Toda “gramática social” diz-nos sempre o
que é importante que retenhamos na memória - que gestos, movimentos e
atitudes devemos tomar, em quais circunstâncias - e segundo que tipo de
prioridade e acessibilidade devemos preservar um evento do esquecimento.
O poder sempre se estabelece como gramática, como memória acessível de
algum tipo de comportamento esperado e esquecimento daquilo que
compromete sua lógica de reprodução. Um dos pressupostos das tecnologias
de aceleração contemporâneas (isto é, da aceleração da aceleração) é,
todavia, o fato de promover o esquecimento, isto é, elas promovem o
esquecimento do que já sabemos das coisas (o nosso saber-fazer, nosso know-how) e da forma como aprendemos a viver (nosso savoir-vivre).
Para conseguir esses objetivos, as tecnologias de aceleração que
lastreiam a sociedade do consumo se baseiam em um tipo específico de
gramatização, nomeadamente, a de nossos desejos.
O velho Marcuse já nos dizia algo parecido em vários de seus livros, em O Homem Unidimensional,
por exemplo. No contexto em que vivemos, é preciso não apenas formatar
os nossos desejos em direção ao consumo de produtos disponíveis, mas
estimular o próprio impulso de desejar. É preciso que desejemos desejar,
pois essa é a regra segundo a qual nos tornamos funcionais num mundo
acelerado, da instantaneidade. Nossa energia libidinal, portanto, deve ser domada ou, para usarmos o novo sentido que Stiegler dá a esse termo, proletarizada pelos aparatos de produção e consumo capitalistas.
A aceleração tecnológica só é concebível nestes termos. Ouçamos
Stiegler: “Marx não pôde, entretanto, antecipar o papel da exploração e
funcionalização de uma nova energia, que não é a energia do
proletário produtor (o labor como pura energia laboral), nem a energia
motriz de um novo aparato (tal como óleo ou eletricidade, que são
colocados a serviço da indústria do aço e das indústrias da cultura),
mas antes a energia do consumidor proletarizado – quer dizer, a energia libidinal do consumidor” (p. 25). Nosso modo de vida é, portanto, vertiginosamente desejante e, por isso mesmo, ansioso,
incapaz de gozar a partir das competências cognitivas, estéticas,
práticas que conquistamos ao longo do tempo, fundamentalmente destruidor
de todo saber viver que eventualmente essas competências ajudam a
constituir. Poderíamos neste ponto recordar do livro de Richard
Sennett acerca do que ele denomina “corrosão do caráter”, ou seja, como
as relações profissionais, humanas são minadas diuturnamente num
contexto de aceleração tecnológica e da flexibilização ampla (das
relações laborais e entre os seres humanos) que lhe é imprescindível.
Se
aceitamos a argumentação de Bernard Stiegler, parece evidente que as
nanociências e nanotecnologias desempenham hoje um papel importante na
constituição desta gramática da destruição programada, da mobilização e
aceleração constantes dos ‘fatores produtivos’, da energia libidinal que
predispõem ao consumismo e seus efeitos tóxicos. Esta aceleração pode
ser traduzida em números que não podem deixar de ser considerados pelos
gestores de ciência, tecnologia e inovação. Entre as poucas informações
que oferece sobre nanociências e nanotecnologias, o site do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação traz as seguintes: ““Dados
recentes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico
(OCDE) e empresas de consultoria indicam que o mercado de produtos
nanotecnológicos movimenta cerca de US$ 350 bilhões e, em 2020,
estima-se que esse valor será superior a US$ 3 trilhões”[1].
Em termos mais concretos e atuais, a nanotecnologia já aparece em um
número considerável de produtos comercializados em todo o mundo, que vão
de protetores solares, a componentes de computadores ou implementos
agrícolas.
“Ao menos 1.600
produtos para o consumo entraram o mercado apenas nos últimos, e isso é
apenas uma fragmento dos produtos e processo já em uso e em
desenvolvimento – todos medidos em unidades 90.000 vezes menores que a
largura de um cabelo humano. Por volta de 2020, seis milhões de pessoas
ao redor do mundo podem trabalhar com nanomateriais, revolucionando o
tratamento da saúde, tecnologia da informação, sistemas de energia e
outros campos. As corporações agora contribuem com metade dos fundos
para pesquisa em fronteiras nano, alcançando os governos, liderados
pelos Estados Unidos (com U$ 21 bilhões investidos desde 2001) e 60
outros países, mais proeminentemente a Alemanha, França, Japão, Coreia e
China) (Nanotechnology and the S&P 500: Small Sizes, Big Questions, By Susan L. Williams)
Que
não existam marcos de regulação da produção e comercialização destes
produtos a partir de pesquisas robustas de impacto ambiental e de saúde
significa apenas isto: o investimento maciço em inovação realizado pelas
companhias precisa ser traduzida em lucros que realimentem as condições
de competitividade e reinvestimento destas companhias. O tempo aqui,
por tudo o que dissemos, é uma questão vital. Em outras palavras, assim
como a indústria de armas não pode subsistir sem produzir guerras e uso
cotidiano de armas de fogo, os US$ 21 bilhões investidos pelo governo
estadunidense, somados aos outros tantos bilhões que deveram ser
investidos por empresas daquele país, de 2001 a 2013, precisam se
traduzir em produtos que gerem receitas capazes ao menos de recuperar
aqueles investimentos. Para as companhias, a diferença entre o
curtíssimo e o curto prazo pode significar prejuízos consideráveis,
donde a pressão pela aceleração. Por isso mesmo: “Uma crítica recente
feita pelo National Research Council (NRC) concluiu que ‘esforços de
investigação ambiental, de saúde e segurança não etão conseguindo
acompanhar as aplicações de nanotecnologia, em seu crescimento e
desenvolvimento, e os potenciais efeitos destes materiais sobre os
humanos e ecossistemas não são ainda completamente entendidos” (Ibid, p.
26). Não repisarei o óbvio para vocês: as propriedades da matéria em
nanoescala e sua interação com o mundo que conhecemos estão longe de
serem compreendidas satisfatoriamente. Acrescentarei apenas que a
desmaterialização a realidade, o fato de que nossas intervenções
tecnológicas ganhem o nível molecular em áreas como a física, química e
biologia guarda uma afinidade clara com a aceleração sobre as quais
falamos. A lógica parece ser: se a matéria resiste, podemos
reconfigurá-la, desmaterializá-la e reconfigurá-la de acordo com as
necessidades cinéticas de nosso modo de vida.
Aqui, evidentemente, não se trata de fazer uma análise das nanociências e nanotecnolgias in abstracto,
mas no contexto dos compromissos político e econômicos que a pesquisa
científica nessa área não pode deixar de estabelecer com essas forças
mais amplas. Qualquer cientista que se dedique a uma pesquisa pela
produção de novos materiais, a partir de sua manipulação em escala
manométrica, terá necessariamente que se confrontar com essa realidade.
Há alguns anos, quando entrevistei investigadores brasileiros da Rede
Nacional de Nanobiotecnologia, o depoimento de uma cientista mineira me
chamou a atenção precisamente por evidenciar as pressões dromológicas
com as quais a pesquisa em nanotecnologia convive. Ora, existe em toda
pesquisa que objetiva desenvolver novos fármacos uma restrição com a
qual os laboratórios têm de conviver, se essa pesquisa se destina a
promover a saúde humana. Todos sabemos que neste campo a inovação é
particularmente demorada. Mesmo quando um fármaco teoricamente mostrou
sua eficácia, ainda é necessário um período considerável com testes com
seres humanos para dimensionar seus possíveis efeitos colaterais. Parte
do grupo que se dedica a nanobiotecnologia em Minas Gerais havia
decidido dedicar suas atividades de pesquisa à promoção da saúde animal,
precisamente porque ali o processo poderia ser acelerado sem as
restrições éticas que encontramos quando tratamos de testes de
medicamentos em seres humanos. Segundo a mesma cientista, a decisão de
pesquisar cosméticos também teria esse como um fator importante:
controles biológicos de segurança mais brandos no campo dos cosméticos,
se o comparamos aos medicamentos, naquele momento, hoje já não saberia
dizer, distintamente da produção de medicamentos para seres humanos,
significavam uma aceleração do processo inovador.[...]»
Ler mais...