"De
súbito, sobe da rua um ruído que me soa a algo muito antigo, vindo dos confins
das décadas. Acorro à janela. É o que eu pensava: um amola-tesouras, empurrando
o carrinho enquanto toca o inconfundível realejo, fazendo-se anunciar a quem
precisa de recorrer aos seus bons ofícios.
Vejo-o
progredir lentamente no passeio da avenida como se fizesse uma inesperada
viagem no tempo: este era um dos sons tradicionais da minha infância. Raro era
então o dia em que não passava à nossa porta - noutras ruas de outras cidades -
um amolador, pronto a consertar varetas de guarda-chuvas ou qualquer utensílio
doméstico, pronto a devolver o gume de facas à sua condição natural. Isto
sucedia antes da era do usa-e-deita-fora, em que nos desabituámos de remendar
ou reparar o que quer que fosse: ao mínimo estrago, à menor amolgadela, ao mais
ínfimo rasgão, comprava-se logo algo de novo.
Os
tempos mudaram. Vivemos dias de crise, desemprego e exclusão social. Tempos que
forçam muita gente a ir à luta, a arregaçar as mangas, a fazer-se à estrada, a
retomar ofícios aprendidos com pais e avós. Jardins de habitações são de
repente transformados em hortas, até nas grandes cidades. Propriedades rurais
deixadas ao abandono, onde o mato silvestre crescia sem obstáculo de qualquer
espécie, passam a ser cultivadas. Estofadores, marceneiros, limpa-chaminés
voltam a ser profissões com grande oferta e procura. Multiplicam-se as pequenas
lojas de reparações de fatos, calças, camisas e vestidos: vejo algumas delas,
no bairro onde habito, trabalhando noite adiante, já após o horário habitual do
fecho do comércio.
Este é
o melhor lado da crise: aquele que incentiva o regresso ao engenho de cada um
para dar a volta à sorte, para dar a volta à vida. Mas há o pior. Aumenta o
número de pessoas a pedir esmola envergonhada nas ruas - gente sem trabalho,
que deixou de conseguir pagar a prestação da casa, gente que devido a uma
doença ou um divórcio viu tudo tornar-se de repente ainda mais difícil e
caminha sem destino, implorando "alguma coisinha" para uma malga de
sopa.
A crise
está presente noutros quadros do nosso quotidiano. Proliferam as lojas que
proclamam em letras garrafais: "Compra-se ouro". Este metal precioso
nunca esteve tão bem cotado no mercado internacional, o que tem levado muitos a
desfazer-se de peças de valor pessoal inestimável para obter algum dinheiro
vivo em troca. E reabrem outros estabelecimentos mais sombrios, que não via
igualmente desde a minha infância: as lojas de penhores, agora também cada vez
com maior procura.
Penso
nisto tudo enquando escuto a música do amolador dissipando-se à distância. Só
não regressa outro som inconfundível dos meus tempos de menino: o dos pregões
dos ardinas, anunciando jornais vespertinos. Ficou célebre o daquele,
comunista, que gritava "Lisboa Capital República Popular!" Uma
original forma de anunciar a venda de exemplares do Diário
de Lisboa, A Capital, a República e o Diário
Popular.
Os
ardinas não voltam. Deixou de haver vespertinos e a própria palavra caiu tanto
em desuso que soa já a português arcaico. Nenhum daquelas jornais que permitiam
o trocadilho do engenhoso comunista existe hoje e são cada vez mais insistentes
os rumores sobre o possível encerramento de alguns outros. É um efeito
adicional da crise: com tão pouco dinheiro disponível, as pessoas começam por
cortar no consumo da imprensa, que aliás por estes dias quase só divulga más
notícias.
E para
isso bem basta o que já se sabe."
Pedro Correia, Delito de Opinião
Agosto, 2011