sexta-feira, 28 de junho de 2013

Práticas religiosas em Portugal (II)




2. Tempo mítico, cosmológico e histórico

A distribuição das actividades ao longo do ano agrícola aparece ligada às fases da Lua. A Lua tem quatro ciclos diferentes, em cada período de vinte ou trinta dias e cada um deles é associado, pelos camponeses, a diferentes tipos de actividade: o Quarto Crescente destina-se à sementeira enquanto que o Quarto Minguante lembra o tempo das colheitas. É evidente que se trata aqui de um modelo ideal expresso em verbalizações. Também se semeia em Quarto Minguante. O que é interessante, todavia, é que a Lua serve como indicador da passagem do tempo e da sua magnitude e sequência. Por sua vez, isto relaciona-se com um calendário mítico também orientado pelas fases da Lua e que identifica as várias fases do ano agrícola. Introduzida nas relações sociais como símbolo da passagem do tempo, a Lua é a indicação material de distribuição do tempo, das actividades e, consequentemente, da distribuição da força de trabalho e da sua circulação: é evidente que não é a Lua que faz essa distribuição, embora haja expressões e relatos de fenómenos que fazem referência ao poder da Lua sobre a Natureza, uma explicação dos acontecimentos que parece totalmente independente da explicação independente da explicação normalmente dada pela Igreja, mas que deriva também da expressão do tempo mítico nas fases da Lua. De facto, a celebração e desenvolvimento ou distribuição do tempo mítico ao longo do ano, coincide com as estações e com as várias fases através das quais a terra é cultivada. O ano agrícola é uma sucessão de diferentes actividades relacionadas com as populações, os animais e a terra, coordenadas em redor do conceito mítico de tempo e não uma distribuição de actividades de acordo com o tempo disponível das populações, ou um conceito de maximização na distribuição de tarefas. A maximização dos meios rurais diz respeito às possibilidades produtivas, simbolizadas na celebração religiosa do tempo mítico. O ano agrícola começa nos finais de Novembro ou meados de Dezembro com a plantação e sementeira do trigo, centeio e fava, na altura em que o ano litúrgico, ou ciclo de comemoração do tempo mítico, se inicia. Durante um período de quatro semanas o povo celebrará o Advento (muitos jejuarão) e os sermões concentrar-se-ão na necessidade de um Salvador para a Humanidade. Esta pregação é ouvida atentamente e os conteúdos ir-se-ão reflectir num número de actividades conducentes à preparação da terra, a lavra tem lugar no Advento, enquanto que a sementeira se processa no Natal. Assiste-se aqui à combinação dos calendários lunar e solar, tal como a comemoração do mito do nascimento de Cristo é uma data histórica ditada pelo calendário solar.

É no Advento que as crianças entre os 7 e os 12 anos de idade têm de ir regularmente assistir aos ensinamentos da doutrina católica na Igreja local: o catecismo. Entre o Natal e a Páscoa, tem lugar a poda das árvores, os cuidados com o gado e as ovelhas. Na Páscoa, que é celebrada na primeira sexta-feira após a quarta Lua Cheia do ano (entre Março e Abril), a terra é abençoada com os ramos do Domingo de Ramos ou a celebração da cruz de Maio, e é depois lavrada para plantar e semear o milho e as batatas. Enquanto isso se processa, o ritual da primeira comunhão e da confirmação tem lugar, conduzindo ao tempo das colheitas em Julho e Agosto. Entretanto, o Dia da Ascensão, quarenta dias depois da Páscoa, marca o início do Pentecostes, ou seja, a comemoração dos cuidados providenciados por Deus à Humanidade através do Espírito Santo, isto é, o tempo das colheitas está associado com a festa mítica da sabedoria. De um modo metafórico, faz-se a comemoração da terra em pousio no mês de Novembro, quando lembramos os defuntos, quer sejam santos ou simples mortais, nos dois primeiros dias do mês. Pelo modo como se fazem estas celebrações, com velas e flores brancas, símbolos de uma nova vida também usadas no baptismo e no dia da Ressurreição (Páscoa). Trata-se de mais uma reafirmação e redefinição da vida e da sua extensão na eternidade, onde matéria e mito se encontram, segundo definição tomista do século XIII, podendo interceder pelos seus parentes, sendo assim também uma comemoração das alianças que existam na terra (as pessoas são sepultadas geralmente junto dos ascendentes), servindo igualmente a finalidade de restabelecer algumas alianças quebradas em vida, tais como mãe/nora, pai/genro, os laços familiares mais frágeis. Também metafórica é a celebração da esperança e alegria pelo nascimento de um Salvador que vai libertar das prisões, simbolizadas pelo pecado e escuridão na altura em que a semente do trigo e do centeio (pão) é lançada à terra no Inverno, enquanto que a exaltação da família como unidade sagrada, criada por vontade divina, é tema de adoração na Epifania, entre Janeiro e Março, altura em que o ciclo agrícola se dedica a todo o tipo de actividades que mantêm o grupo doméstico integralmente ocupado em casa e na terra.

É mais tarde que a vizinhança participa nas fainas em regime de entreajuda, permutando força de trabalho, alfaias, maquinaria e informação, nomeadamente na época das colheitas entre Junho e Agosto, que é tempo de sabedoria, de triunfo sobre a morte e o pecado, sobre a mesquinhez, tempo em que a caridade como virtude que conduz à fraternidade é insuflada nos seres humanos pelo Espírito Santo. Este período de sabedoria coincide com o ritual do casamento em Agosto e é continuado durante a preparação do feno e das vindimas, até Outubro. É nesta época que a entreajuda atinge o seu ponto máximo, pois irá ser preciso recorrer à tecnologia, sendo que para colocar este equipamento em acção, será necessário um maior número de pessoas, para além das que fazem parte do agregado doméstico. Nenhum estudioso conseguiu ainda provar se esta referência metafórica às actividades materiais da produção exerce ou não influência num determinado número de acções pragmáticas, muito embora ocorram de modo coincidente e as pessoas se refiram aos diferentes períodos litúrgicos para definir as diferentes actividades do ano, especialmente o tempo da Páscoa que assinala a abertura dos sulcos para a sementeira das batatas e do milho, quer a Páscoa calhe em Março ou em Abril, a menos que as condições climatéricas levem ao adiamento destas actividades para muito mais tarde, para Maio ou Junho, como observei em certas aldeias da região Centro de Portugal.

Urge também dizer que a organização do ano litúrgico é uma invenção teológica da Igreja e não uma consequência da imaginação sociológica dos camponeses. Todavia, o calendário adoptado, que recua aos tempos da antiga Palestina, tem sido utilizado pela Igreja para sistematizar as potencialidades do ano agrícola na Europa Ocidental. E embora se tenha tornado mais universal através da expansão do catolicismo a diferentes zonas ecológicas, estas têm assistido à criação de um número de santos e inovações da Virgem como marcos condutores das actividades do ano. Embora possa parecer forçado estabelecer uma relação entre o tempo mítico e os acontecimentos cosmológicos, através da História é possível, no entanto, enumerar as várias coincidências que podem ser talvez um segundo sistema de influências passíveis de explicar as práticas religiosas em Portugal. Há ainda um terceiro factor, a celebração dos santos e o seu ritual que, na minha opinião, mantêm viva a tecnologia e permitem a transmissão de um corpo de conhecimentos que define e orienta as relações sociais, de que me vou agora ocupar, antes de me dedicar às contradições e rupturas deste modelo paradigmático de comportamento social. (…)

Raul Iturra
Jun. 2011
do Aventar

sexta-feira, 21 de junho de 2013

Práticas religiosas em Portugal (I)



1. Introdução

Ao longo da História os camponeses têm estabelecido uma racionalidade do trabalho largamente baseada em laços pessoais. As decisões de escolha de uma determinada cultura, de quando e como semear, se bem que limitadas por factores ecológicos, têm obedecido às circunstâncias do momento baseadas na relação com os recursos de reprodução, relação essa que tem variado em diferentes épocas históricas. Terra, trabalho e tecnologia, os três principais recursos necessários à sobrevivência dos camponeses, são geridos e correlacionados de modo mutável, na base de obrigações morais entre parentes e vizinhos; da mesma forma, a definição de alianças e a circulação das populações vão obedecer a um ritual dentro dos parâmetros definidos pela Igreja Católica Romana, constantemente desenvolvidos ou manipulados pelos próprios camponeses. Em resumo, a organização camponesa do trabalho é expressa e materializada em princípios morais que derivam da crença religiosa.
A relação do campesinato com a terra, o trabalho e a tecnologia tem sofrido profundas alterações em Portugal nos últimos duzentos anos.

Se é que existe actualmente, o pequeno proprietário do Norte, que referirei nesta intervenção e o trabalhador sem terra, do Sul, ao qual poderá ser aplicada a minha hipótese se de «religião» passarmos a «política», pois durante os séculos XVIII e XIX e até mesmo na primeira parte do século XX a situação era diferente para muitos trabalhadores rurais. A terra estava vinculada a pessoas que, em virtude do seu status de rei, padre, membro de ordens militares ou monásticas, conde ou morgado, possuíam a maior parte do território, excluindo os trabalhadores rurais da propriedade. Estes tinham acesso à terra através de vários contratos pessoais, essencialmente revogáveis. Deste modo, terra, trabalho e tecnologia, constituíam também situações precárias para todos os que não possuíam estes recursos: se um camponês não defendesse os interesses do dono da terra ou se o seu senhor ficasse do lado dos vencidos quando surgiam lutas políticas, como foi o caso ao longo do século XIX com as invasões napoleónicas ou com os conflitos civis entre 1820 e 1840, ser-lhe ia retirada a terra, seria expulso da aldeia, ficando assim, privado de vizinhos e alfaias. A qualidade pessoal através da qual circulava a riqueza, assim como as qualidades pessoais do trabalhador, eram controladas pelos padres locais num registo chamado Róis de Confessados, onde era anotado o bom comportamento expresso pela confissão e comunhão na altura do pagamento de uma taxa anual, a côngrua. 

Esta rede de laços pessoais corresponde à materialização de um sistema de relações sociais ditado pela lei canónica e pela tradição da Igreja Católica. Este regulamento baseia-se idealmente em princípios éticos, tais como justiça, boa fé, honestidade e compaixão, profundamente enraizados na pregação do evangelho e na tradição dos patriarcas da Igreja, como um corpo de conhecimentos transmitidos através dos séculos aos camponeses pela prédica dos padres e pela celebração ritual. Esta regulamentação das relações sociais, embora desconhecida para o camponês como um texto por si produzido, ou que tivesse acesso à sua compreensão (eram textos em língua latina, diferente da sua própria língua), era-lhe, todavia, conhecida no seu corpus oral de direitos e obrigações que lhe eram ensinados sob a forma de ritual. Neste ponto, defendo que esta lei constitui o enquadramento geral de conhecimentos que, juntamente com a fé, têm sido expressão teológica de um conjunto de princípios organizadores do comportamento social através dos quais a religião se tornou em racionalidade do trabalho e assim, a sua prática, a renovação do saber reprodutivo. 

A lei canónica define principalmente uma ordem dada por Deus, exterior aos assuntos humanos, que se torna a ordem natural da sociedade pela qual a vontade individual se subordina à vontade daqueles que, efectivamente, controlam essa ordem, fixando as condições de acesso aos recursos. Esta ordem dada por Deus, ideia que até mesmo na actualidade subsiste muito claramente entre uma vasta maioria da população rural, não se limita à regulamentação da autoridade paterna, princípios de casamento, submissão à propriedade e proprietário, dimensão das relações políticas e de vizinhança, em suma, um guia entre a população e os recursos; é também uma regulamentação da própria natureza no seu ciclo, como se pode verificar pela associação do ciclo agrícola com o tempo mítico, ordem essa que é ensinada formalmente à população e que se ajusta perfeitamente à organização social da produção em que a família, considerada a pedra basilar da sociedade, é cuidadosamente regulamentada, embora nunca cumprida com rigor pelos camponeses.(…)

Raul Iturra
Julho 2011
do Aventar