quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

A autodestruição da globalização neoliberal?

DSC01971Image via Wikipedia



António Campos



 “Face à depressão da procura agregada na Europa e nos Estados Unidos, os governos viram-se naturalmente para os mercados exportadores para aliviar o desemprego interno. Mas os países não podem ter todos, simultaneamente, excedentes comerciais. A tentativa de os alcançar levará a uma depreciação competitiva da moeda e ao proteccionismo.

Como Keynes, inteligentemente, observou, ‘se as nações aprenderam a alcançar o pleno emprego como políticas domésticas… não existiria um motivo para que um país precisasse de impor os seus produtos a outros ou rejeitar as ofertas dos seus vizinhos’. O comércio entre países ‘deixaria de ser o que é, um recurso desesperado para manter o emprego em casa forçando as vendas nos mercados estrangeiros e restringindo as compras’. Em vez disso, passaria a ser um ‘intercâmbio voluntário e sem impedimentos de bens e serviços em condições de vantagem mútua’.

Por outras palavras, a actual turbulência relacionada com as moedas e o comércio é o resultado directo do nosso falhanço em resolver os nossos problemas de emprego.”

Robert Skidelsky no Negócios. É um dos mais lúcidos economistas ou não fosse ele o principal estudioso do pensamento de Keynes. Isto permite-me sublinhar um ponto: a actual configuração da globalização pode bem estar em processo de autodestruição devido à austeridade generalizada, que alimenta o desemprego e erode o Estado Social. Acontece que um Estado social robusto, segundo indica alguma investigação empírica, é uma condição para a legitimidade da abertura comercial. Os neoliberais têm de ter cuidado com o que desejam.

A liberalização financeira e a abertura comercial desregrada são o problema. A refragmentação da economia global poderá ser necessária para que possam emergir modelos com maior enfâse na procura e na criação de emprego. Não resisto a invocar Keynes:

“Simpatizo com aqueles que querem minimizar, em vez de maximizar, as interdependências económicas entre as nações [ou os blocos regionais…]. Ideias, conhecimento, ciência, hospitalidade, viagens – estas são as coisas que, pela sua natureza, devem ser internacionais. Mas deixemos que os bens sejam produzidos localmente sempre que seja razoável e conveniente, e, sobretudo, asseguremos que a finança seja nacional. No entanto, aquele que querem reduzir as interdependências devem ser lentos e cautelosos. Não se trata de arrancar a planta pela raiz, mas de orientá-la lentamente para que cresça noutra direcção.”

Os acordos de Bretton Woods, que fixaram o quadro do pós-guerra, parcialmente inspirados pelas ideias de Keynes, previam mecanismos de controlo de capitais (a finança nacional) e criaram condições para que os países definissem o seu espaço de desenvolvimento através de uma abertura comercial gerida (orientar a planta). Só faltou o crucial bancor, parte de um projecto de gestão politica supranacional que evitasse a acumulação de défices e de superávites comerciais persistentes.

Temos de imaginar soluções razoáveis e convenientes para o trilema da economia política internacional e para a insustentável acumulação de brutais desequilíbrios, expressão da perversa configuração da globalização. A planta europeia também deveria poder crescer noutra direcção, antes que alguém a arranque. O proteccionismo pragmático é um bom antídoto contra a emergência da xenofobia e do nacionalismo agressivo, filhos das utopias (neo)liberais…

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do Ladrões de Bicicletas de noreply@blogger.com (João Rodrigues)

Out 2010


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segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Felizmente há a França

Crowds of French patriots line the Champs Elys...Image by The Library of Congress via Flickr



António Campos


Quando milhões de franceses se movimentaram para protestar contra o aumento da idade da reforma dos 60 para os 62 anos, não faltou quem lhes viesse com as ameaças do costume: Olhem que aqui ao lado, na Alemanha, é aos 67... Vejam lá, não refilem muito, senão ainda vos pode acontecer o mesmo... Vá lá, sejam realistas... Não queiram viver acima das vossas possibilidades...

Mas os franceses, honra lhes seja feita, são gente bem menos submissa que os alemães, e menos cegos à nudez do rei quando este calha de ir nu. E assim, quando um jornalista televisivo confrontou um manifestante anónimo com aquela argumentação, recebeu como resposta que a produtividade francesa era hoje o dobro do que há vinte anos, pelo que não havia nada de irrealista nas suas reivindicações.

Ora acontece que nos vinte anos anteriores a produtividade cresceu ainda mais - como não podia deixar de crescer dados os enormes e espantosos avanços tecnológicos a que temos assistido. Ou seja: entre 1970 e 2010, a produtividade mais que quadruplicou. Ou seja, para quem não está a ver o alcance deste facto: cada hora de trabalho humano vale hoje por quatro horas em 1970.

Este número poderá mudar se considerarmos factores de ponderação como o factor demográfico, num sentido, ou no sentido oposto a entrada para o grupo dos países desenvolvidos de outros que não faziam parte dele há 40 anos. Um facto subsiste: o Mundo está hoje muito mais rico do que estava há 40 anos. Se o ócio é um luxo e custa caro, somos suficientemente ricos para o pagar; e parece que em todo mundo ninguém entende isto a não ser os franceses.


Se abstraíssemos do politicamente possível e considerássemos apenas o objectivamente possível, podíamos ter hoje horários de trabalho de dez horas semanais; ou salários quatro vezes mais altos; ou reformas aos 45 anos; ou um qualquer compromisso que combinasse estes bens segundo a vontade de cada um e a vontade democraticamente expressa dos povos. Uma jornalista portuguesa de direita ironizava, não há muitas semanas, com aqueles "atrasados" que ainda sonham com a Suécia dos anos 70. Cometeu aqui um erro de diagnóstico: não sonhamos, exigimos; e não queremos a Suécia dos anos 70: queremos muito mais e muito melhor.

Se isto parece utópico, tal não se deve a qualquer impossibilidade objectiva, mas sim a uma impossibilidade política. Nem os mercados, nem nenhuma lei natural alguma vez determinaram a distribuição da riqueza ou do ócio. Hoje, como há dez mil anos, o melhor bocado cabe sempre ao mais forte. E se hoje a maioria dos seres humanos não recebe o dividendo que lhe cabe do progresso económico e tecnológico das últimas décadas, isto deve-se a um facto e a um facto só: há poder a mais nas mãos erradas e poder a menos nas certas.

Utopia? Não há nada de utópico em "exigir o impossível" quando o impossível só o é politicamente. Se queremos falar de utopia, falemos do discurso da inevitabilidade inaugurado por Reagan e Thatcher e repetido hoje, até à saturação, pelos economistas mediáticos, pelos medinacarreiras, pelos tonibleres e pelos "socialistas" da Terceira Via - todo ele um jogo perverso de utopias que visa convencer-nos que o impossível é possível e o possível impossível.

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De noreply@blogger.com (JOSÉ LUIZ SARMENTO)
Out 2010


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sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

De Wall Street à periferia de Maputo

Maputo market, Praça dos Combatentes - Mercado...Image via Wikipedia

António Campos


Dos protestos populares que tiveram lugar nos bairros da periferia de Maputo no início de Setembro, a opinião pública portuguesa, mesmo a mais informada, ter-se-á apercebido apenas de um reduzido número de elementos: a causa da insatisfação generalizada (o aumento dos preços do arroz, pão e outros bens essenciais); a intensidade dos protestos e a violência da repressão policial subsequente (que causou 13 mortos e centenas de feridos); e o desfecho, desta feita favorável às pretensões dos manifestantes (o anúncio, por parte do governo moçambicano, de 25 medidas visando reduzir o custo de vida, entre as quais o congelamento do preço dos produtos alimentares em causa).

Difíceis ou impossíveis de descortinar por entre a espuma dos dias, tal como habitualmente veiculada pela maior parte da comunicação social, foram os factores estruturais subjacentes a este episódio. E estes foram, e são, de diversa ordem. Paulo Granjo, num excelente artigo na edição portuguesa do Le Monde Diplomatique (Outubro), chama a atenção para um dos aspectos da questão: o cisma entre a maior parte da população moçambicana e a classe política. Uma crise de representatividade no contexto de uma economia e de uma sociedade crescentemente duais, em que o progressivo desmantelamento das estruturas de solidariedade comunitárias e tradicionais não se tem feito acompanhar pelo preenchimento, por parte do Estado “moderno”, das funções sociais que dele são esperadas.

Porém, o facto da cadeia ter quebrado precisamente pelo elo dos preços dos produtos alimentares, tem, ele próprio, causas estruturais mais amplas. Recuemos no tempo até 2008, àquela que foi uma crise alimentar mundial de proporções inusitadas – por mais que tal possa ter passado em grande medida despercebido nos países do ‘Norte’. Nessa altura, o aumento dos preços dos alimentos reflectiu-se, por exemplo, no facto do índice de preços alimentares da FAO - um índice compósito que incorpora os preços internacionais dos cereais, arroz, açúcar, óleos e gorduras, leite e derivados e carne – ter quase duplicado face ao valor de 2003-2004. Entre as consequências, um acréscimo em mais de 150 milhões no número de pessoas em situação de fome a nível mundial, para além de protestos ou motins em mais de 30 países - como recorda este artigo do The Guardian.

Ora, após um período de relativa acalmia, estamos novamente perante a iminência de uma nova crise mundial dos preços dos alimentos - de que os tumultos de Maputo terão constituído um dos primeiros sintomas. O índice da FAO está já muito próximo do nível de 2008 e são já muitas as vozes que alertam para o perigo iminente e para as suas potenciais consequências.

Tanto em 2008 como agora, quais as causas destes aumentos dos preços dos alimentos? Johnston e Bragawi, do Centre for Development Policy Research de Londres, enumeram-nas neste resumo de um simpósio sobre o tema. Algumas são conjunturais: choques climáticos, como secas ou inundações. Mas as principais são de natureza estrutural. Falarei de algumas delas em próximas postas. Para já, assinalo apenas que, em lugar de destaque, surge a crescente entrada de fundos especulativos no mercado internacional dos produtos alimentares. Muito longe de contribuir para qualquer suposta “eficiência” na determinação dos preços, neste como noutros mercados, a combinação de açambarcamento e especulação associada à penetração do capital financeiro tem, nesta como em muitas outras áreas, consequências sociais e humanas devastadoras. Da ganância bolsista ao desespero nas periferias do Sul, vai apenas um passo: o descontrolo e desregulação dos mercados.

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terça-feira, 14 de dezembro de 2010

A anestesia pelo Blog “Ladrões de bicicletas”

Old Europe, New Europe, Core EuropeImage via Wikipedia



António Campos


Como sabemos, a política recessiva que o Governo se propõe executar em 2011 foi saudada em todos os quadrantes neo-liberais, mas com esta ressalva: só resulta se houver “reformas estruturais”. E o Ministro das Finanças pressurosamente concordou.

Mas não se trata de reformar tudo o que for preciso para tributar a “economia paralela”, aceder com rapidez às contas bancárias sempre que haja suspeita de evasão fiscal, e muito menos encerrar o “paraíso fiscal” da Madeira. Nem se trata de preparar políticas de inovação consensualizadas com os actores relevantes para promover a melhoria da competitividade das pequenas e médias empresas (a esmagadora maioria) cujos empresários têm regra geral baixas qualificações, ausência de visão estratégica e falta de lucidez para reconhecer que só teriam a ganhar em competir pela diferença. Aliás, ao defender a redução de salários, a CIP já assumiu que os empresários que representa (felizmente há excepções) apenas sabem competir com baixos custos salariais (obviamente, os carros de luxo do patrão e da família, entre muitos “outros custos”, são migalhas irrelevantes).

Não, para os neo-liberais, fazer “reformas estruturais” significa fragilizar o mais possível os que apenas têm o trabalho para viver: reduzir o poder negocial dos assalariados, aumentar a precariedade dos contratos, introduzir a arbitrariedade no despedimento, reduzir (em montante e em tempo) o apoio financeiro aos desempregados, mercantilizar a saúde, expandir os fundos de pensões para lançar os descontos no jogo da “economia casino”, privatizar os CTT, etc.
De facto, o que une a CIP quando clama pela redução dos salários no sector privado, o Ministro das Finanças quando pressiona para que se esqueça o acordo sobre o aumento do salário mínimo, a OCDE quando recorda que é preciso desmantelar negociações colectivas entre patrões e sindicatos, o FMI e decisores da UE, o que os une a todos é a ideologia neo-liberal.

Acreditam que o crescimento das economias é fundamentalmente determinado pelo que acontece do lado da oferta, em particular no mercado de trabalho. Obviamente, tratam o trabalho como qualquer mercadoria. Por isso sempre disseram que a causa do desemprego na Europa, em nível elevado já antes da presente crise, resulta da “rigidez” do mercado de trabalho e da existência de um “insustentável” Estado Providência.

Acontece que essas explicações são pura ideologia, uma amálgama de ideias inspiradas nos clássicos do século XIX (ver aqui) que nunca foram adequadamente sustentadas por estudos académicos. Para desespero de algumas mentes brilhantes que se dedicam a torturar as estatísticas até que estas validem as suas ideias pré-concebidas. Pouco lhes importa que a Grande Depressão ou a presente crise já os tenha desmentido (afinal, onde está a grande inflação com que ainda há pouco nos queriam assustar?).

Como conclui David Howell num estudo bem fundamentado onde critica a visão neo-liberal do mercado de trabalho, “Há uma explicação menos elegante mas mais convincente, … uma explicação que nos diz terem sido os trabalhadores menos qualificados que pagaram o preço de uma procura agregada débil, de reestruturações sectoriais e mudanças demográficas, da mobilidade acrescida da produção industrial e do capital financeiro, e da desregulamentação do mercado de trabalho.”

É pois com a ideologia neo-liberal que as televisões estão a tentar convencer-nos que facilitar o desemprego é bom para a economia portuguesa. É uma pena, mas tem de ser. O sacrifício dos desempregados e da classe média-baixa é necessário para aplacar os “mercados financeiros”. E se os (ainda) empregados aceitarem de bom grado descer os seus salários nominais (reparem que nunca mostram as contas), acabarão por relançar o crescimento económico … mesmo sem que haja procura!

A população está a ser intoxicada com a retórica do “é inevitável e é para o nosso bem”, ao mesmo tempo que se insinua: e se houver protestos ainda vai ser pior. É que os mercados financeiros têm aversão a manifestações. Gera incerteza sobre os ganhos esperados.
Porém, algo me diz que desta vez a anestesia vai ter mais dificuldade em pegar. É apenas uma intuição porque estamos no domínio da incerteza radical. Como se resolverá a tensão política entre a Alemanha e a periferia da UE (este artigo coloca bem a questão)? Em Portugal, e no resto da periferia, será possível converter o protesto social em alternativa de governo?

É tempo de pensar o impensável (ler isto). Ou, como diz o “Manifesto dos economistas aterrorizados”, é tempo de discutir a refundação da construção europeia.

PUBLICADA POR JORGE BATEIRA


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quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Erros Judiciários e Negligência Estatística

the hall of justiceImage by martins.nunomiguel via Flickr



António Campos


Não sei se Carlos Cruz, Ferreira Diniz, Hugo Marçal e José Abrantes são inocentes ou culpados. Não sei se são todos inocentes, não sei se são todos culpados, e não sei se alguns deles são inocentes e os outros culpados. Esta minha dúvida é perfeitamente correcta no plano formal, uma vez que obedece ao princípio da presunção de inocência até trânsito em julgado . Essa correcção não impedirá, contudo, que caia sobre a mim a ira de quem tem sempre certezas e que mais facilmente perdoa a quem tem a certeza contrária do que a quem manifesta dúvidas.

O pior é que também tenho dúvidas sobre a culpa de Leonor Cipriano, dúvidas estas que se mantêm mesmo depois de a condenação dela ter transitado em julgado. Ao manifestar esta dúvida já não me estou a manter no âmbito do Direito, mas a extravasar para o terreno muito mais escorregadio da Justiça.

Todos sabemos que o Direito e a Justiça não coincidem completamente; e sabemos, além disso, que é extremamente improvável que alguma venham a coincidir em qualquer parte do mundo. Mas esta consciência da realidade não nos dispensa, a nós cidadãos, nem aos legisladores, nem aos juízes, de procurar alargar o mais possível a zona de intersecção entre os dois terrenos. A perversidade da justiça portuguesa está antes de mais nada na fuga sistemática a este dever.

Quod non est in acta non est in mundo. Isto é o mesmo que dizer que o juiz só pode decidir com base no que está no processo. Para que um qualquer sistema de justiça funcione, este princípio é, infelizmente, indispensável. Digo "infelizmente" porque basta reflectir um pouco para ver que podem resultar dele muitas injustiças; digo indispensável porque da sua ausência resultariam muitas mais, e piores.

O que não se deve é fazer dele uma leitura perversa, da qual resulta que a justiça e a verdade substancial não contam para nada, e que para que tudo esteja bem resolvido basta que bata certo no papel. A acta não é o mundo, mas o que se inclui ou exclui dela tem consequências no mundo. A decisão de incluir umas coisas no processo e excluir outras é o campo onde se joga a intersecção do Direito com a Justiça. E se esta intersecção for demasiado restrita; se os operadores judiciais caírem na deformação profissional de ver no Direito um fim em si mesmo e não um instrumento ao serviço da Justiça; se chegam mesmo a ver na Justiça um empecilho e um incómodo para o funcionamento suave e decoroso da (apropriadamente chamada) máquina judicial - uma espécie de mosquito zumbidor que distrai os digníssimos magistrados da tranquila e douta redacção dos seus acórdãos e sentenças - então bem podemos perguntar para que raio serve o Direito.

A ideia de que o Direito se esgota em si mesmo leva directamente à ideia de que o erro judiciário é impossível. Se não há mundo para além da acta, e se o que está na acta bate certo, então não se pode falar de erro. Leonor Cipriano talvez esteja inocente no mundo real, mas isso que interessa se é indubitavelmente culpada no papel? A sentença transitou em julgado, não transitou? Então porque carga de água é que andam para aí alguns maluquinhos a manifestar dúvidas sobre um processo que já está terminado e a ganhar poeira nos arquivos?

Talvez porque as grades da cadeia em que ela está não são feitas propriamente de papel. Mas isto não é facto que possa entrar na cabeça dos nossos magistrados. Não está na acta, portanto não está no mundo.

É propositadamente que escrevo aqui sobre a Leonor Cipriano em vez de continuar a escrever sobre os condenados no processo Casa Pia. Este está ainda demasiado presente para que o possa tratar com a frieza que entendo necessária.

Um inocente punido é um horror sem nome, e no entanto o que mais me horroriza não é a possibilidade (mera possibilidade, entenda-se) de esta ou aquela pessoa ser condenada injustamente. Mais horrível que esta possibilidade é a certeza, baseada na lei das probabilidades, de que neste preciso momento há inocentes a cumprir pena. Quantos e quais, não sabemos.

E é nesta ignorância que reside o horror maior. No nosso país não há estudos exaustivos nem estatísticas fiáveis. Se quisermos comparar números com os dos EUA, por exemplo, não poderemos fazê-lo. Há números para os EUA, desdobrados estado a estado, idade a idade, etnia a etnia, tipo de crime a tipo de crime. Mas não os há para o nosso país.


Que saibamos, a situação em Portugal tanto pode ser melhor, como igual, como pior do que a situação em qualquer outro país, incluindo o Afeganistão ou a Somália. No limite e em tese, é claro. É mesmo possível, também no limite e também em tese, que em Portugal todos os condenados estejam inocentes.

Ou melhor, possível não é, pelas mesmas razões probabilística por que não é possível que sejam todos culpados. Mas só por estas. E estas não bastam.

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Out.2010

JOSÉ LUIZ SARMENTO

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terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Economia da depressão?

How to Overcome DepressionImage by kevindooley via Flickr



António Campos


Vale a pena ler o artigo de Ana Matos Pires sobre saúde mental e sobre os meios ou sobre a falta deles em plena austeridade assimétrica. Enfim, ainda há quem, como Pacheco Pereira no Público, consiga escrever que “os ricos terão depressões e os pobres desespero” (cito de memória). O que é que isto quererá dizer? Que as depressões são uma espécie de bem de luxo? O “desespero” não será depressivo? Realmente, o que afirma Pereira pouco interessa.

Portugal é o maior consumidor de antidepressivos da União. Será que, como parece indicar alguma investigação internacionalsobre os determinantes sociais da saúde, isto pode ter alguma relação com o impacto da crise socioeconómica permanente num país tão abismalmente desigual, num país com tão cavadas divisões de classe, num país com estruturas tão propensas à geração de sofrimento social, por exemplo, na esfera laboral, que se crava nos corpos e nas mentes dos indivíduos e se calhar até mais nos que ocupam posições subalternas? Um sistema que gera sofrimento no trabalho, um país com horários intermináveis e más condições de trabalho para muitos, relações laborais autoritárias e muita insegurança laboral; fora do trabalho nem se fala: o desemprego corrói a auto-estima.

Estes custos sociais do capitalismo medíocre estão estudados? Há alguma tradição de investigação que se debruce sobre o contributo da estrutura socioeconómica para os problemas de saúde mental em Portugal? Sabemos que somos dos países onde as pessoas se sentem mais infelizes e menos confiam umas nas outras, uma armadilha social típica de sociedades desiguais. Isto está tudo ligado? É tudo infinitamente mais complicado, tão complicado que é impossível identificar padrões e mecanismos com alguma segurança? Alguns psiquiatras têm aflorado estas questões nos jornais, mas de forma muito impressionista.

Out.2010
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João Rodrigues


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quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

A relação finança - fome

zoriah_kenya_famine_kakuma_refugee_camp_irc_in...Image by Zoriah via Flickr



António Campos


Retomando o tema do meu último post(a relação entre a penetração do capital financeiro e a crise alimentar mundial - ou, de forma sumária, o nexo finança-fome), gostaria agora de acrescentar algumas notas.

A primeira é para assinalar que, aquando da crise de 2008, o Nuno Teles discutiu já este tema nos Ladrões de Bicicletas.(...)

A segunda é para sublinhar que embora também existam causas “reais” para o aumento dos preços mundiais dos alimentos ao longo dos últimos anos, estas não explicam a crise de 2008, nem a que está actualmente iminente(...). Se estivéssemos perante um crescente desequilíbrio de longo prazo entre a procura e a oferta reais, correctamente antecipado pelos “mercados”, não haveria motivos razoáveis para o aumento dos preços ter sido tão brusco a partir de 2006-07, nem para estes terem decaído significativamente a partir de meados de 2008. Seria de esperar, isso sim, um aumento mais ou menos constante dos preços, eventualmente seguido da sua estabilização. Ora, aquilo a que assistimos é uma muito significativa tendência de aumento a par de uma forte e crescente volatilidade.

Existem efectivamente factores “reais” que têm tido algum impacto sobre a tendência – e a eles havemos de regressar numa próxima oportunidade. Mas o que explica a maior parte do aumento e da volatilidade nos últimos 4-5 anos é mesmo o afluxo massivo de capital financeiro com intenções especulativas. Como explica Jayati Ghosh neste artigo, esse afluxo deveu-se a um movimento, de proporções gigantescas, em busca de posições em activos baseados em mercadorias como o
ouro ou os produtos alimentares, no contexto do rebentamento de bolhas especulativas em sectores como o imobiliário. Por sua vez, a queda dos preços no final de 2008 deveu-se à necessidade de muitos destes investidores aumentarem os seus níveis de liquidez para fazer face às perdas ocorridas no auge da crise financeira. E voltamos agora a assistir à recuperação em pleno da tendência de aumento dos preços (e à iminência de crises de insegurança alimentar), à medida que estes investidores restabelecem progressivamente as suas posições, beneficiando das gigantescas injecções de liquidez que os bancos centrais proporcionaram ao sistema financeiro. Na ausência de novas regras, o crédito concedido não está a financiar a recuperação económica, mas sim a voltar a alimentar a especulação financeira.

Como também explica Ghosh no artigo referido em cima, para tudo isto contribuiu sobremaneira a Lei da Modernização dos Contratos de Futuros sobre Mercadorias, introduzida em 2000 nos EUA (onde se situa o epicentro do mercado mundial de produtos alimentares). Ao abolir os limites quantitativos sobre os contratos de futuros sobre mercadorias, permitir a entrada no mercado por parte de compradores e vendedores sem qualquer relação com a oferta e procura “reais” e eliminar todos os requisitos em matéria de supervisão, esta Lei veio na prática criar uma gigantesca e volátil procura “fictícia” no mercado de futuros – que se reflecte prontamente nos preços do mercado “spot” (aos quais estão sujeitos os vendedores e compradores “reais” de alimentos).

Desregulação, especulação, aumento e volatilidade dos preços dos alimentos. A fome é política.

adaptado nos segundo e terceiro parágrafo, com a devida vénia- Out.2010

(Alexandre Abreu) Do Ladrões de Bicicletas
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segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Um texto fundamental de Boaventura de Sousa Santos

Anti-austerity protest in Brussels on Septembe...Image by Surat Lozowick via Flickr



António Campos


“Se nada fizermos para corrigir o curso das coisas, dentro de alguns anos se dirá que a sociedade portuguesa viveu, entre o final do século XX e começo do século XXI, um luminoso mas breve interregno democrático. Durou menos de 40 anos, entre 1974 e 2010. Nos 48 anos que precederam a revolução de 25 de abril de 1974, viveu sob uma ditadura civil nacionalista, personalizada na figura de Oliveira Salazar. A partir de 2010, entrou num outro período de ditadura civil, desta vez internacionalista e despersonalizada, conduzida por uma entidade abstrata chamada “mercados”.

As duas ditaduras começaram por razões financeiras e depois criaram as suas próprias razões para se manterem. Ambas conduziram ao empobrecimento do povo português, que deixaram na cauda dos povos europeus. Mas enquanto a primeira eliminou o jogo democrático, destruiu as liberdades e instaurou um regime de fascismo político, a segunda manteve o jogo democrático mas reduziu ao mínimo as opções ideológicas, manteve as liberdades mas destruiu as possibilidades de serem efetivamente exercidas e instaurou um regime de democracia política combinado com fascismo social. Por esta razão, a segunda ditadura pode ser designada como “ditamole”.

Os sinais mais preocupantes da atual conjuntura são os seguintes. Primeiro, está a aumentar a desigualdade social numa sociedade que é já a mais desigual da Europa. Entre 2006 e 2009 aumentou em 38,5% o número de trabalhadores por conta de outrem abrangidos pelo salário mínimo (450 euros): são agora 804 mil, isto é, cerca de 15% da população ativa; em 2008, um pequeno grupo de cidadãos ricos (4051 agregados fiscais) tinham um rendimento semelhante ao de um vastíssimo número de cidadãos pobres (634 836 agregados fiscais). Se é verdade que as democracias europeias valem o que valem as suas classes médias, a democracia portuguesa pode estar a cometer o suicídio.

Segundo, o Estado social, que permite corrigir em parte os efeitos sociais da desigualdade, é em Portugal muito débil e mesmo assim está sob ataque cerrado. A opinião pública portuguesa está a ser intoxicada por comentaristas políticos e económicos conservadores – dominam os media como em nenhum outro país europeu – para quem o Estado social se reduz a impostos: os seus filhos são educados em colégios privados, têm bons seguros de saúde, sentir-se-iam em perigo de vida se tivessem que recorrer “à choldra dos hospitais públicos”, não usam transportes públicos, auferem chorudos salários ou acumulam chorudas pensões. O Estado social deve ser abatido. Com um sadismo revoltante e um monolitismo ensurdecedor, vão insultando os portugueses empobrecidos com as ladainhas liberais de que vivem acima das suas posses e que a festa acabou. Como se aspirar a uma vida digna e decente e comer três refeições mediterrânicas por dia fosse um luxo repreensível.

Terceiro, Portugal transformou-se numa pequena ilha de luxo para especuladores internacionais. Fazem outro sentido os atuais juros da dívida soberana num país do euro e membro da UE? Onde está o princípio da coesão do projeto europeu? Para gáudio dos trauliteiros da desgraça nacional, o FMI já está cá dentro e em breve, aquando do PEC 4 ou 5, anunciará o que os governantes não querem anunciar: que este projeto europeu acabou.

Inverter este curso é difícil mas possível. Muito terá de ser feito a nível europeu e a médio prazo. A curto prazo, os cidadãos terão de dizer basta! Ao fascismo difuso instalado nas suas vidas, reaprendendo a defender a democracia e a solidariedade tanto nas ruas como nos parlamentos... O crescimento ambientalmente sustentável, a promoção do emprego, o investimento público, a justiça fiscal, a defesa do Estado social terão de voltar ao vocabulário político (...).”

(Adaptado no último parágrafo com as devidas vénias...).

Out.25 2010

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quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Austeridade - um meio ou um fim?

The GuardianImage via Wikipedia



António Campos


E se as medidas de austeridade não tiverem sido adoptadas para responder à crise? E se, pelo contrário, a crise tiver sido provocada para possibilitar a austeridade?

A hipótese está longe de ser remota, a acreditar neste artigo publicado no jornal'The Guardian' a que acedi através do blogue da APEDE. O artigo é recomendado a quem lê inglês; e eu, que subscrevo vivamente essa recomendação, tomo a liberdade de o traduzir aqui para quem não o lê.

Para os conservadores esta não é uma crise financeira, mas a oportunidade que esperavam há muito.
Num exemplo clássico de 'capitalismo do desastre', os cortes estão a ser utilizados para remodelar a economia segundo os interesses dos negócios - e para dar cabo do sector público.

Temos estado a olhar para a lista errada. Ao esforçarmo-nos por adivinhar o que nos vai cair em cima amanhã, tentamos entender a primeira fase do ataque do governo britânico ao sector público: a fogueira das agências autónomas da administração pública*. Quase todas as instituições públicas encarregadas de proteger o ambiente, o bem-estar animal ou os consumidores foram mutiladas ou mortas. Mas isto é apenas metade da história. Olhemos de novo, e desta vez façamos uma lista das agências que sobreviveram.

Se o objectivo do governo fosse destruir agências inúteis ou nocivas, teria começado pela Commonwealth Development Corporation. Esta agência foi fundada para reduzir a pobreza nos países em desenvolvimento, mas, quando o 'New Labour' tentou e falhou a sua privatização, a CDC mudou completamente de objectivo. Agora despeja dinheiro em empresas privadas lucrativas, aproveitando para enriquecer massivamente os seus próprios gestores. [A revista] Private Eye' descobriu que esta agência pagou em 2007 ao seu principal director executivo mais de um milhão de libras. A revista mostrou ainda como a CDC´se envolveu numa série de casos de corrupção. Sem cortes. Sem reformas.

O mesmo vale para o Export Credit Guarantee Department. Na prática, o ECGD subsidia empresas privadas avalizando os seus investimentos no estrangeiro. Chegou a gastar 42% do seu orçamento para promover a venda de armas pela BAE**´. Também gasta dinheiro dos contribuintes na prospecção de petróleo em ambientes vulneráveis. Num caso recente, foi mostrado em tribunal que tinha subscrito contratos obtidos com ajuda de subornos. Sem cortes. Sem reformas.

A Sea Fish Industry Authority [Autoridade para a Indústria da pesca no Mar] existe "para ajudar a melhorar os lucros da indústria pesqueira." Embora se trate duma instituição pública, 10 dos seus onze directores trabalham para a indústria da pesca ou para a da alimentação. A sua missão é "promover o consumo de peixe e marisco", "defender a indústria no debate público" e "influenciar o processo regulatório a favor da indústria." Sem cortes. Sem reformas.

O leitor está a ver o padrão? As instituições públicas cujo objectivo seja responsabilizar as empresas estão a ser varridas do mapa. As instituições públicas cujo objectivo seja inflacionar lucros privados, independentemente das consequências para as pessoas e para o ambiente, passam incólumes.

O que as duas listas sugerem é que a crise económica é o desastre por que os conservadores têm rezado. O programa de cortes do governo tem todo o aspecto dum exemplo clássico de capitalismo do desastre: usar uma crise para reformular a economia no interesse dos negócios.

No seu livro The Shock Doctrine,*** Naomi Klein mostra como o capitalismo do desastre foi concebido pelos neoliberais extremistas da Universidade de Chicago. Estas pessoas acreditavam que a esfera pública devia ser eliminada, que o mundo dos negócios devia ter a liberdade de fazer tudo o que quisesse e que quase todos os impostos e quase toda a despesa social devia ser eliminada. Acreditavam que a total liberdade do indivíduo num mercado completamente livre resultaria numa economia perfeita e em relacionamentos perfeitos. Era um sistema utópico tão fanático como o de qualquer seita religiosa. E era profundamente impopular. Durante muito tempo, os seus únicos apoiantes foram os directores das corporações multinacionais e meia-dúzia de lunáticos no governo dos EUA.

Numa democracia, em condições normais, as pessoas prejudicadas pelo fim da provisão pública teriam sempre mais votos que as pessoas que beneficiassem dele. Portanto o programa de Chicago não podia ser imposto nestas circunstâncias. Como explicou o guru da Escola de Chicago, Milton Friedman, "só uma crise - real ou percepcionada - pode produzir uma mudança real". Quando uma crise nos atinge, explicou ele mais tarde, "uma administração tem entre seis a nove meses para efectuar mudanças de grande vulto; se não actuar decisivamente durante este período, não terá outra oportunidade deste tipo."

A primeira oportunidade deste tipo foi dada pelo golpe de estado do General Pinochet no Chile. O golpe foi planeado por duas facções: os generais e um grupo de economistas formados pela Universidade de Chicago e financiados pela CIA. As suas ideias já tinham sido redondamente rejeitadas pelo eleitorado, mas agora o eleitorado tinha-se tornado irrelevante: Pinochet utilizou a crise que criara para aprisionar, torturar ou matar qualquer dissidente. As políticas da Escola de Chicago - privatização, desregulamentação, cortes brutais nos impostos e nas despesas do Estado - revelaram-se catastróficas. a inflação atingiu os 375% em 1974; a maior taxa do Mundo. Mesmo assim, Friedman insistia que o programa não estava a se suficientemente radical nem suficientemente rápido. Numa visita ao Chile em 1975, persuadiu Pinochet a bater com muito mais força. O resultado foi um crescimento massivo do desemprego e a quase erradicação da classe média. Mas os muito ricos tornaram-se muito mais ricos, e as empresas, quase livres de impostos, desreguladas e engordadas pelas privatizações, tornaram-se muito mais poderosas.

Em 1982, as receitas de Friedman tinham causado um descalabro económico espectacular. O desemprego atingiu os 30%; a dívida explodiu. Pinochet despediu os economistas de Chicago e começou a re-nacionalizar as empresas afectadas, levando a que a economia começasse a recuperar. O chamado milagre económico do Chile só começou depois de serem abandonadas as doutrinas de Friedman. O programa catastrófico da Escola de Chicago empurrou metade da população para níveis abaixo da linha de pobreza e deixou o Chile com uma das taxas de desigualdade mais elevadas do mundo.

Mas tudo isto foi apresentado pelos media corporativos como se tivesse sido um grande êxito. Com a ajuda de sucessivos governos americanos, foram impostos programas semelhantes a países em que a própria crise assegurava que as populações não lhes poderiam opor resistência. Outros ditadores sul-americanos copiaram as políticas económicas de Pinochet, com a ajuda dos desaparecimentos em massa, da tortura e dos assassínios. A crise de endividamento na parte mais pobre do Mundo foi usada pelo FMI e pelo Banco Mundial para impor programas baseados na Escola de Chicago a países que não tinham outra opção para não fosse aceitar a sua ajuda. Os EUA atingiram o Iraque com uma campanha de choque e pavor económico - privatizações, um imposto de rendimento plano****, desregulamentação massiva - ainda com as bombas a cair. Depois de o furacão Katrina destruir New Orleans, Friedman descreveu-o como "uma oportunidade para reformar radicalmente o sistema educativo". Os seus discípulos entraram imediatamente em campo, varrendo o que restava das escolas públicas enquanto os habitantes estavam ocupados em refazer as suas vidas e substituindo-as por charter schools privadas.

A nossa crise é menos extrema, portanto, no Reino Unido, a doutrina do choque não pode ser tão amplamente aplicada. Mas, como David Blanchflower avisou ontem, existe uma forte possibilidade de o programa de cortes precipitar uma crise ainda maior: "É um erro horrível, horrível. O que seria sensato seria fasear os cortes por um longo período." Esta é outra das características típicas do capitalismo do desastre: exarceba as crises que o alimentam, criando assim as suas próprias oportunidades.

Por isso não nos deve surpreender que 35 executivos de empresas escrevessem ontem ao Telegraph preconizando, tal como Friedman, um choque forte e rápido, antes que feche a janela de oportunidade. Esta política poderia reduzir os seus lucros por um curto período, mas quando saíssemos dos nossos abrigos para avaliar os estragos descobriríamos que tínhamos emergido para um mundo diferente, administrado em benefício deles e não no nosso.

Notas:
* Estas agências são financiadas por fundos públicos mas não dependem organicamente do governo. Em inglês são designadas em gíria por’quangos'. Também existem em Portugal, mas não conheço nenhuma gíria para as designar. (N.T)
** BAE Systems: empresa privada do sector aero-espacial dedicada especialmente ao ramo militar. (N.T)
***Publicado em português em 2009, com o título A DOUTRINA DO CHOQUE, pela editora SmartBook. (N.T)
****''Flat tax' no original. (N.T)

JOSÉ LUIZ SARMENTO
Out. 2010
https://blogger.googleusercontent.com/tracker/7013405610039526108-823741422069604351?l=legoergosum.blogspot.com


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segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Descartes - A Razão

Portrait of René Descartes, dubbed the "F...Image via Wikipedia



António Campos


Com sua fé racional e metódica, o filósofo francês inaugurou a modernidade varrendo o entulho no terreno da mente.

Considerado por muitos o fundador da filosofia moderna, o francês René Descartes foi um dos mais charmosos heróis e um dos mais atacados vilões na história do pensamento. Matemático brilhante e cientista profundamente inspirado, ele legou à reflexão filosófica certo viés mecanicista que ainda não a abandonou de todo – por isso foi acusado de plantar uma semente de frieza no coração do pensamento ocidental. Contudo, foi esse amante dos números e das combinações geométricas quem produziu o sopro de vida mais revolucionário a enfunar as velas da filosofia desde os tempos de Aristóteles – e não é de espantar que sua jornada intelectual tenha dado frutos mistos. Paladino da razão, ele impôs a si mesmo uma missão demasiado formidável: encontrar um método unificado para a decifração dos múltiplos enigmas do universo, desde as profundezas da física até as alturas da teologia, passando pelos dramas da vida humana. Em sua busca impetuosa por conhecimento, Descartes estudou a trajetória dos astros, dissecou cadáveres, embrenhou-se em selvas algébricas, especulou sobre a natureza divina e tentou solucionar as misteriosas imbricações do corpo e da alma – aplicando a tudo a mesma fé racional e metódica.

Pensador de interesses infinitos, Descartes foi também um dos estilistas mais rematados e menos pedantes na literatura filosófica. Suas obras contêm voos narrativos de dar inveja a muitos ficcionistas – em vez de nos empurrar conclusões prontas, o autor dos clássicos Discurso do Método e Meditações Metafísicas preferiu narrar, passo a passo e com translúcida franqueza, os caminhos e descaminhos de suas reflexões. Ler Descartes é pensar junto com ele – e, mesmo quando discordamos de suas conclusões, é impossível não admirar a sinceridade e o esmero de seu relato. Nisso, ele simboliza o inverso daquela figura tão comum nos dias de hoje: a do especialista hermético, que jamais abandona a proteção e o conforto dos jargões. Espécie de romancista do pensamento abstrato, René Descartes quis dirigir-se de forma franca e compreensível a todos os seres dotados de razão e bom senso – e nisso ele triunfou com maestria poucas vezes igualada. Foi, acima de tudo, o filósofo da clareza.

Descartes - Filósofo, físico e matemático, René Descartes, o pensador que introduziu a dúvida na filosofia, nasceu na França em 1596 e morreu na gélida Estocolmo (Suécia) em 1650.

Cheio de opiniões Descartes nasceu na região francesa de La Touraine em 1596, no seio de uma família abastada. Sua mãe morreu de tuberculose antes que o filho completasse 1 ano; o pai era um ocupadíssimo magistrado que passava a maior parte do ano longe de casa. Pálido, frágil, sempre assolado por tosses e febres, René teve uma infância solitária e hipocondríaca. Aos 8 anos, foi estudar como interno no célebre colégio jesuíta de La Flèche – lá, a agudeza de sua mente logo se tornou tão proverbial quanto sua delicadeza física. Os professores permitiam que ele ficasse na cama até o meiodia, e o pequeno Descartes aproveitava as manhãs para devorar livros atrás de livros, bem acomodado entre travesseiros e lençóis (sem dúvida, um método dos mais eficazes para aquisição de conhecimento). As tardes eram dedicadas ao esporte típico de um cavalheiro: a esgrima. Apesar das tribulações respiratórias, René tornou-se um espadachim de respeito e chegou mesmo a escrever um tratado sobre armas brancas. O gosto pela solidão, a indolência matinal e a dupla habilidade com palavras e com floretes foram traços que o acompanhariam pelo resto da vida.

Entre os doutos jesuítas, Descartes desfrutou os rigorosos benefícios de uma educação clássica: leu os gregos e os latinos, encantou-se bem cedo pela poesia e encontrou na matemática a paixão de sua vida. Ainda muito jovem, contudo, seu entusiasmo erudito deu lugar a um crescente escândalo intelectual. Transitando pelas obras dos grandes filósofos de diversas épocas, Descartes não encontrou soluções definitivas para os enigmas da alma e do universo, mas uma infindável e encarniçada batalha de opiniões: Aristóteles quase sempre discordava de Platão; ambos eram desprezados pelos céticos, que por sua vez caíam na zombaria dos cínicos; e os batalhões de escolásticos medievais – todos igualmente sábios e pios – sequer concordavam em qual seria a melhor forma de provar a existência de Deus... Anos mais tarde ele escreveria em um de seus trechos autobiográficos: “Considerando quantas opiniões diversas, sustentadas por homens excelsos, havia sobre uma única e mesma matéria, eu reputava quase como falso tudo quanto era apenas verossímil... Pois nada se poderia imaginar de tão estranho e de tão pouco crível que algum dos filósofos já não houvesse dito”.

Exasperado com tamanha algazarra, Descartes decidiu abandonar as querelas eruditas e buscar iluminação no “grande livro do mundo”. Em 1618, viajou aos Países Baixos e alistou-se no exército do príncipe de Orange, que combatia uma invasão espanhola (Descartes, que era católico sincero, combateu ao lado dos protestantes – mais uma interessante esquisitice na vida desse andarilho excêntrico). Mais tarde, serviu nas tropas do duque Maximiliano da Bavária, participando nos primeiros embates da Guerra dos Trinta Anos. Nessa época, a filosofia ainda era para ele mais uma inquietação que um ofício. Até que um dia, aos 23 anos, em meio a andanças militares, Descartes teve a revelação que mudou os rumos de sua vida.

No inverno de 1619, as tropas do duque Maximiliano da Baviera estavam estacionadas na aldeia de Ulm, no sul da Alemanha. A neve tombava com abundância e ventos gélidos varriam o lugarejo. O exército inimigo estava bem longe e os soldados não tinham muito que fazer. Para escapar ao frio, Descartes passava a maior parte do tempo enfurnado em um quarto aquecido, aproveitando o ócio para meditar. Como sempre, atormentava- o a velha questão: por que haveria tanta discórdia entre os sábios? Qual seria o método correto para decifrar o universo? No dia 10 de novembro, a resposta subitamente surgiu, na forma de uma metáfora arquitetônica. Descartes imaginou, primeiramente, uma cidade construída ao sabor das gerações humanas, com prédios acumulando-se ao léu. Em seguida, pensou em uma cidade perfeitamente planejada por um único arquiteto, com ruas alinhadas em traçado impecável. Por fim, concluiu: “Não há tanta perfeição nas obras compostas pela mão de diversos mestres, como naquelas em que um só trabalhou. Assim, os edifícios construídos por um só arquiteto são mais belos que aqueles que muitos tentaram reformar... E parece-me que as ideias que avolumaram pouco a pouco, compostas pelas opiniões de muitas pessoas, não se acham tão próximas da verdade quanto o simples raciocínio de um homem de bom senso”.

Autonomia mental ou seja: na busca pela verdade, as ponderações de um único indivíduo podem valer mais que todo o peso das tradições acumuladas. O que Descartes descobriu no aconchego da estufa, enquanto a neve caía lá fora, foi o valor absoluto da autonomia intelectual. Para pensar corretamente, é preciso antes abolir todos os privilégios e toda a autoridade dos mestres; é preciso colocar em cheque todos os pressupostos, todas as filiações, todos os medos, e valerse apenas daquilo que é comum à humanidade inteira: a razão.

O dom de distinguir o falso do verdadeiro existe em todos os homens, argumenta Descartes – o problema é que a maioria deles utiliza esse instrumento de forma rasteira, contentando-se com verdades parciais ou incompletas, que foram herdadas e não conquistadas. Antes de construir seu próprio edifício filosófico, Descartes decidiu varrer o entulho no terreno da mente – e só poderia fazer isso atacando impiedosamente os alicerces de tudo aquilo em que acreditava. Para chegar à mínima das certezas, era preciso mergulhar de cabeça no oceano da dúvida. E eis aí um dos aparentes paradoxos que fazem de Descartes um dos personagens inesquecíveis na saga do pensamento mundial. Racionalista fervoroso, sedento de verdades absolutas, o eclético espadachim de La Touraine duelou a vida inteira contra a incerteza – mas acabou concluindo que só se derrota esse portentoso adversário com as armas que ele próprio nos fornece. Duvidar metodicamente de tudo, até que a mente depare com algum princípio inquestionável – essa é a essência da “dúvida cartesiana”, cerne do método racional, que o filósofo-matemático tratou de aplicar a todas as equações do universo.

Descartes descobriu que, para pensar corretamente, é preciso abolir todos os privilégios e toda a autoridade dos mestres e valer-se daquilo que é comum à humanidade inteira: a razão

O primeiro alvo da dúvida cartesiana são nossas certezas mais imediatas – aquelas fornecidas pelos sentidos. Imerso em reflexão no calor da estufa bávara, Descartes se pergunta: será mesmo verdade que estou aqui, num quarto aquecido, com a neve a tombar copiosamente lá fora? Certamente, é isso que os sentidos afirmam – contudo, quando sonhamos, também acreditamos na realidade do sonho, e só ao acordar descobrimos que tudo foi ilusão... Para ilustrar o escopo radical de sua dúvida, Descartes elabora uma hipótese com delicioso sabor fantástico: imaginemos que o mundo seja governado por um espírito maligno; imaginemos que essa divindade embusteira tenha criado nossa mente com o único intuito de nos enganar; nesse caso, como poderíamos ter certeza quanto ao testemunho de nossos sentidos, ou mesmo quanto às verdades aparentemente óbvias da matemática? “Ora, quem me poderá assegurar que esse deus não tenha feito com que não haja nenhuma terra, nenhum céu, nenhum corpo, nenhum lugar e que, não obstante, eu tenha os sentimentos de todas essas coisas?”, escreve o pensador nas Meditações Metafísicas. “E pode ocorrer mesmo que esse deus tenha desejado que eu me engane todas as vezes em que faço a adição de dois mais três, ou em que enumero os lados de um quadrado”. Ou seja: tudo o que vemos, ouvimos, pensamos e calculamos pode não passar de uma fraude cósmica, e o conhecimento humano talvez seja apenas uma magnífica tirada de humor diabólico.

E é precisamente nesse ponto, quando a consistência do conhecimento está prestes a se dissolver em sonho ou em pesadelo, que Descartes efetua sua estocada magistral: nem mesmo o mais poderoso dos demônios, nem mesmo o mais astuto dos deuses poderia me enganar e me iludir se eu não existisse. Ainda que eu duvide de tudo, não posso duvidar de minha própria dúvida e, por conseguinte, de meu próprio pensamento. Da dúvida extrema, Descartes faz emergir sua primeira certeza, cunhada na frase mais famosa da filosofia: “Penso, logo existo”. O pensamento, e não a matéria, é a evidência de que existimos – sobre essa verdade dura como pedra, arduamente resgatada no naufrágio das falsas certezas, Descartes ergue o monumento reformado de sua filosofia.

Após o período passado no exército, Descartes dedicou o resto da vida à reflexão. Exilou-se na Holanda, onde viveu totalmente sozinho, lendo, pensando, fazendo experimentos dos mais variados e relatando por escrito suas aventuras mentais. Por mais que buscasse a solidão, seus livros correram a Europa atraindo tanto discípulos quanto detratores – e o grande misantropo acabou vitimado por sua própria fama. Em 1649, a rainha Cristina da Dinamarca – que tinha suas veleidades intelectuais, como tantos monarcas da época – resolveu contratar Descartes como instrutor pessoal em assuntos filosóficos. Em uma carta, o pensador recusou educadamente o convite. Cristina insistiu, levemente ofendida. Com medo de incorrer na ira de uma soberana, Descartes acabou cedendo. Cristina exigiu três aulas por semana – todas às 5 da manhã. Por alguns meses, Descartes foi obrigado a acordar de madrugada, no inclemente inverno escandinavo – verdadeiro suplício para um dorminhoco hipocondríaco. Por causa dos caprichos de sua real pupila, o autor das Meditações Metafísicas foi fatalmente derrubado por uma pneumonia em 11 de fevereiro de 1650.

Mais que um método, mais que uma doutrina, ele nos deixou um símbolo. Seu intelecto ao mesmo tempo sereno e atribulado, oscilante entre o sonho e a realidade, sempre em busca de um inatingível graal filosófico, serviria nos séculos seguintes como um farol hipnótico para as mentes inquietas – e como eterno convite ou eterno desafio à coragem de pensar.

LIVROS - Dicionário Descartes, John Cottingham, Jorge Zahar Discurso do Método, Descartes, L&PM P

Texto de José Francisco Botelho | ilustração Estudio Area

Fonte: Revista Vida Simples

Out.2010

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