quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Erich Fromm e a Renovação da Psicanálise


Nildo Viana

 Erich Fromm é um dos psicanalistas mais populares do mundo e, ao mesmo tempo, um dos menos considerados nos meios académicos  A sua popularidade pode ser vista em suas inúmeras obras publicadas e reeditas em vários países. A imagem negativa que ele possui nos meios académicos se deve, por um lado, a algumas afirmações e concepções, e, por outro, sua própria popularidade, o que provoca um preconceito académico de uma elite intelectual que quer um distanciamento em relação ao “grande público”.

Fromm nasceu na Alemanha e foi um dos fundadores do Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt, que mais tarde se tornaria conhecida como Escola de Frankfurt, ao lado de Karl Korsch e vários outros pesquisadores, que depois passou a ser identificada com os nomes de Theodor Adorno, Max Horkheimer, Walter Benjamin e Herbert Marcuse. Fromm participou da pesquisa sobre “a personalidade autoritária” que fez a previsão da ascensão do nazismo. As primeiras obras de Fromm são marcadas por um freudismo ortodoxo (Dobrenkov, 1978) e depois ele se torna um dos principais representantes do que se convencionou chamar “neofreudismo”. “revisionismo”, “freudo-marxismo”, “culturalismo”, entre outras expressões. Embora Fromm fosse colocado junto com os demais “revisionistas”, “culturalistas” e “freudo-marxistas”, ele ao mesmo tempo em que se aproximava de várias teses culturalistas de Karen Horney, Suliwan e outros, bem como do freudo-marxismo de Reich, para citar apenas alguns nomes, ele também se diferenciava e assumia uma posição distinta em vários aspectos.

Após a ascensão do nazismo, Fromm, tal como muitos intelectuais de sua época, abandona a Alemanha e vai para os Estados Unidos. Neste país ele irá produzir suas obras mais conhecidas e importantes, se tornando um dos grandes nomes da psicanálise a nível mundial. A sua trilogia composta pelos livros A Análise do Homem; O Medo à Liberdade e Psicanálise da Sociedade Contemporânea se tornou uma das mais importantes do século 20 para a psicanálise. Sua tentativa de unir psicanálise e marxismo também foi importante e foi expresso mais explicitamente em suas obras Meu Encontro com Marx e Freud e A Crise da Psicanálise. Os seus estudos sobre variadas questões (aldeia camponesa, destrutividade humana, história da psicanálise, pensamento de Marx, pensamento de Freud, religião, amor, contos de fada, etc.) possuem um fio condutor que perpassa toda a sua obra. A base do seu pensamento é um humanismo radical que se inspira fundamentalmente nas teses de Marx e Freud.

Fromm parte da ideia de natureza humana para unir Marx e Freud e elaborar sua concepção de psicanálise. Em O Conceito Marxista do Homem, Fromm abre a discussão em torno da alienação e da natureza humana exposta nos Manuscritos de Paris, escrito por Marx, o que será desenvolvido em outras obras. A sociedade de classes produz a alienação e esta é uma negação da natureza humana.

“Deu-nos Marx uma definição da ‘essência da natureza humana’, da ‘natureza do homem em geral’? Deu, sim. Nos Manuscritos Filosóficos, Marx define o caráter específico dos seres humanos como 'atividade livre e consciente’, em contraste com a natureza do animal, que ‘não distingue a atividade de si próprio... e é a sua atividade’. Em seus escritos posteriores, embora tenha abandonado o conceito de ‘caráter da espécie’, a ênfase continua sendo a mesma: a atividade como característica da natureza não-mutilada e não-fragmentada do homem. Em O Capital, Marx define o homem como um ‘animal social’, criticando a definição de Aristóteles do homem como ‘animal político’ como sendo ‘tão característica da antiga sociedade clássica quanto a definição de Franklin do homem como ‘animal fabricante de ferramentas’ é característica do reino ianque’. A psicologia de Marx, assim como sua filosofia, é uma teoria da atividade humana e concordo inteiramente com a opinião de que a maneira mais adequada para descrever a definição de homem de Marx é a de um ser de práxis (...) (Fromm, 1977, p. 63).

Fromm critica aqueles que deformaram o pensamento de Marx, transformando-o num economicista e empobrecendo o seu pensamento, e também critica Freud e sua concepção de homem como ser fechado e movido pelas forças da autopreservação e instintos sexuais (Fromm, 1977). As críticas de Fromm a Freud (1977; 1980) abrem espaço para ele partir da concepção de natureza humana em Marx e assim apresentar uma renovação da psicanálise num sentido freudo-marxista, indo além de várias outras tentativas neste sentido, tais como a de Osborn (1966), Reich (1973), entre outros. Ele se afasta da concepção biologista de natureza humana expressa por Freud e retoma a concepção de Marx (De La Fuente, 1989), entendendo a produtividade – termo que se presta a equívocos, como veremos adiante – como característica fundamental da natureza humana (Fromm, 1978).

Sem dúvida, é a partir desta concepção de natureza humana que emerge o seu humanismo e que vai estar presente na sua concepção de ética, de psicanálise, de marxismo e de socialismo. É também a base da renovação da psicanálise empreendida por Fromm. É por isso que Fromm irá revalorar a cultura e as relações sociais para explicar o ser humano e seu psiquismo. O modelo biologista de Freud é criticado, incluindo sua concepção da existência de um “instinto de morte” (Fromm, 1975). Fromm explica o ser humano como potencialmente bom, e somente em condições adversas pode desenvolver uma potencialidade secundária, tornando-se mau (Fromm, 1965).

Uma de suas teses mais interessantes é a do caráter social. Fromm encontra alguns tipos de caráter social que podem ser divididos naqueles que possuem orientação produtiva e naqueles que possuem orientação improdutiva. As orientações improdutivas são a receptiva, a exploradora, a acumulativa e a mercantil e as produtivas são reduzidas a uma só, que é a do ser humano que manifesta a essência humana, que realiza a produtividade (Fromm, 1978). Ao contrário de Freud, cuja base fundamental do caráter estaria nos vários tipos de organização da libido, Fromm pensa o caráter social a partir da relação da pessoa com o mundo que, no curso de sua vida, ocorre através do processo de adquirir e assimilar coisas e na relação com as demais pessoas e consigo mesmo, o que significa que é social. A função do caráter social é moldar os indivíduos no sentido de agir na direção exigida pela sociedade. O caráter social produz o desejo de agir no sentido que a sociedade exige e produz no indivíduo a satisfação ao agir de acordo com as exigências da cultura e assim realiza uma mediação entre o modo de produção e as idéias dominantes em uma determinada sociedade (Fromm, 1979).

As orientações de caráter improdutivas são as seguintes: a) receptiva, a pessoa pensa que tudo que é bom está fora dela e espera receber tudo de uma fonte exterior, sendo que o fundamental nesta orientação é ser amado e não amar; b) exploradora, a pessoa também pensa que o bem está no exterior, mas busca tomá-lo por meio da astúcia ou da força; c) acumulativa, as pessoas com esta orientação, ao contrário das anteriores, não tem fé no mundo exterior e sua meta é acumular e poupar, sendo que gastar é visto como uma ameaça; d) a orientação mercantil passa a predominar na sociedade moderna e está intimamente ligada com a expansão mercantil e o capitalismo, sendo produto da mercantilização das relações sociais e domina o indivíduo na sociedade capitalista, que “se sente ao mesmo tempo como o vendedor e a mercadoria a ser vendida no mercado”; “sua auto-estima depende de condições que escapam ao seu controle. Se ele tiver sucesso, será ‘valioso’; se não, imprestável, o que gera a luta constante pelo sucesso”. A orientação mercantil é a predominante na sociedade moderna e é o que gera a opção pelo ter ao invés do ser (Fromm, 1987; Fromm, 1992). Estas orientações de caráter podem se mesclar num indivíduo concreto e o tipo de caráter predominante nos indivíduos é um produto social.

A orientação de caráter produtivo aponta para um ser humano que se relaciona de forma produtiva com o mundo e com as pessoas, desenvolvendo o amor e o pensamento produtivos, que se manifestam na ética humanista. O amor produtivo não é possessivo e nem se reduz ao amor sexual. O amor produtivo tem sua base na produtividade e é o amor autêntico, que tem como exemplo máximo o amor materno e é marcado pelo desvelo, responsabilidade, respeito e conhecimento (Fromm, 1978). É por isso que o amor produtivo é desintegrado na sociedade capitalista contemporânea (Fromm, 1990).

O pensamento produtivo não é aquele que espera tudo do exterior – solicitando e esperando recebê-lo dos outros, como na orientação receptiva, ou tomando e plagiando como no caso da orientação exploradora. Também não é uma fortaleza que se isola e se poupa como na orientação acumulativa ou, ainda, um mero valor de troca utilizado para conquistar o sucesso e por isso segue as modas, tal como na orientação mercantil. O pensamento produtivo é aquele que possui interesse e reage ao seu “objeto”, e, ao mesmo tempo, o respeita, buscando compreendê-lo, a vê-lo como realmente é, tendo também uma visão total e não fragmentária dele. Fromm opõe consciência humanista e consciência autoritária:

“A consciência humanista é a expressão do interesse próprio e integridade, ao passo que a consciência autoritária preocupa-se com a obediência, abnegação e dever do homem ou com seu ‘ajustamento social’. A meta da consciência humanista são a produtividade e, portanto, a felicidade, posto que esta é o concomitante necessário da vida produtiva. Prejudicar a si mesmo tornando-se um instrumento de outros, não importando quão dignos esses aparentem ser, ser ‘desprendido’, infeliz, resignado, desencorajado, opõe-se aos reclamos da consciência da pessoa; qualquer violação da integridade e o funcionamento adequado de nossa personalidade – tanto no que se refere ao pensamento quanto a ação e mesmo a assuntos como preferência de alimentos ou comportamento sexual – são uma intervenção contra a consciência da pessoa” (Fromm, 1978, p. 140).[...]


sexta-feira, 27 de julho de 2012

O cidadão não praticante



Memória, prática, finalidade. A cidadania faz-se da conjugação destas três dimensões. Nas noites eleitorais e nos dias que se lhes seguem, vai sendo comum que os valores elevados da abstenção suscitem comentários preocupados, senão indignados, com o alheamento demonstrado pelos cidadãos num momento em lhes era pedido que usufruíssem de um direito fundador das democracias, exprimindo através do voto o sentido da sua escolha. As eleições presidenciais de 23 de Janeiro último não foram excepção, tanto mais que a abstenção chegou aos 53,37%, sendo a maior de sempre em eleições presidenciais ou legislativas.

Nesses dias descobre-se, mais uma vez, que um número crescente de cidadãos, se tivesse chegado às urnas, teria votado sozinho; que não se sentiria acompanhado pela memória, ou pela presença física, de todos os homens e mulheres que antes dele deram o melhor de si, e até a vida, para pôr fim a décadas (e séculos) de regimes não democráticos. Mas o que feito a seguir para tornar a memória e a história parte fundamental da identidade dos cidadãos?

Nesses dias descobre-se também que o cidadão atomizado, que só se identifica com o seu presente, mais facilmente faltará à chamada… desse mesmo presente. Preguiça e desinteresse são invocados para explicar a inacção de quem não entendeu que, em dia de eleições, o exercício do voto é de facto exercício − do que faz músculo cidadão. Mas o que é feito a seguir para que essa prática faça parte da ginástica quotidiana de que depende a saúde das democracias?

Nesses dias descobre-se, por último, que o cidadão com fraca memória e fraca prática de democracia tem mais tendência para não participar nas escolhas em que se joga o nosso futuro colectivo, como se lhe fosse indiferente que na sociedade vingassem projectos tão distintos quanto, por exemplo, o que defende que o contrato de base da democracia tem como finalidade o bem comum e por isso exige um Estado social assente na prestação de serviços públicos universais e de qualidade e, por outro lado, o que defende um Estado mínimo e assistencialista, por ser o que melhor assegura a interesses privados todas as formas de predação dos recursos públicos. Mas o que é feito a seguir para fortalecer em cada um a impressão de que as suas escolhas importam e têm consequências na definição de finalidades partilhadas, ainda por cima quando, sejam mais ou menos vencedores nas urnas, os projectos e as políticas que se instalam são mais orientados para a criação de clientes, passivos e isolados, do que de cidadãos, sujeitos de acção colectiva?

A abstenção é um sintoma de uma doença que começou muito antes dos dias em que se fala nela, mesmo que por sua vez actue sobre a doença, agravando-a. Quando se repara no problema da abstenção já é tarde e a discussão torna-se bastante estéril. Porque o acto de ficar em casa e não votar é apenas uma pequena parte de um imenso empreendimento, central ao projecto do neoliberalismo, que consiste em construir cidadãos não praticantes. O objectivo deste empreendimento não é sequer, como a abstenção poderia fazer crer, criar um vazio de acção. É retirar a acção da esfera da cidadania e encaminhá-la para campos em que ela vá favorecer os interesses e lucros privados que, por estarem em contradição com a prossecução do bem comum, precisam, em democracia, do consentimento participante de cidadãos não participantes.

Na fase austeritária da democracia em que nos encontramos, isso é visível, por exemplo, nos dispositivos habilmente montados para tornar as famílias dependentes do crédito, mesmo para os bens de consumo mais essenciais. Com isso consegue-se assegurar os tremendos lucros dos bancos, mascarar as responsabilidades políticas pela situação e ainda amortecer na opinião púbica soluções que exigem que se enfrente o sistema financeiro e se abandone essa posição de refém-raptor que tem sido, neste sequestro colectivo que continua impune, a dos governos europeus.

As raízes desta armadilha programada são, contudo, identificáveis muito antes da eclosão desta crise. Dela fazem parte décadas de culto ao individualismo, como racionalidade suprema na gestão da vida, ou de culto à juventude, com a correlativa desvalorização dos mais velhos. As consequências existenciais deste processo podem demorar a sentir-se, mas os seus efeitos na corrosão do princípio da solidariedade intergeracional são já reconhecíveis em muitos discursos, propostas e práticas relacionados com o mundo do trabalho e com a segurança social.

No período em que agora entramos, vamos ser confrontados com os frutos desta armadilha do cidadão não participante. Os neoliberais esperam colher agora os resultados do martelamento muito ideológico que têm vindo a fazer, com apoio da generalidade dos meios de comunicação social, sobre a natureza pretensamente ineficiente e insustentável dos serviços públicos, a que se oporiam um mercado naturalmente eficiente e uma iniciativa privada sempre bem sucedida e até mais barata para todos. (...)

Sandra Monteiro
(adaptado)
Fev.2011


sexta-feira, 20 de julho de 2012

Física e Filosofia


Porto: Ponte do Freixo
«O século que agora se aproxima do fim viu na física uma expansão fantástica das fronteiras do conhecimento científico. As teorias da relatividade restrita e geral de Einstein modificaram para sempre a nossa visão do espaço, tempo e gravitação. Numa cisão ainda mais radical com o passado, a mecânica quântica transformou a própria linguagem que utilizamos para descrevermos a Natureza: em vez de partículas com posições e velocidades definidas, aprendemos a falar de funções de onda e probabilidades. Da fusão da relatividade com a mecânica quântica surgiu uma nova visão do mundo, na qual a matéria perdeu o seu papel central. Este papel foi usurpado por princípios de simetria, alguns deles invisíveis no estado actual do universo. Sobre estes fundamentos construímos uma teoria bem sucedida do electromagnetismo e das interacções nucleares fraca e forte entre partículas elementares. Muitas vezes sentimo-nos como Siegfried, que, depois de ter provado o sangue do dragão, descobriu, para sua surpresa, que entendia a linguagem dos pássaros». (Steven Weinberg)

Ontem, a propósito da descoberta da partícula de Higgs, fui levado a reviver os meus tempos de estudante universitário quando estudava física no curso de medicina. Antes disso já tinha realizado um estudo sobrecosmologia intitulado A Vertigem de Empédocles. Tenho muitas obras de física, incluindo os manuais que utilizei para a estudar. Felizmente, como não sou "político profissional", não tive as facilidades de que estas criaturas das trevas desfrutam para obter pseudo-diplomas, ao abrigo dessa terrível burla que é o processo de Bolonha. Embora não me sentisse especialmente atraído pelo programa demasiado extenso de física, tive de a estudar, aprofundando mais a física atómica do que a mecânica, o calor, a acústica, a electricidade, o magnetismo e a óptica. A mecânica quântica atraia-me mais do que os modelos mecânicos clássicos utilizados na fisiologia. O formalismo matemático da mecânica quântica assusta qualquer mortal e, como não estudei numa universidade particular, a Universidade Lusófona por exemplo, permeável aos jogos corruptos do poder estabelecido depois do 25 de Abril, não tive outra saída a não ser mergulhar de cabeça nesse formalismo matemático. O meu professor de física "massacrou" os meus neurónios com a equação de Schrödinger durante todo o ano lectivo. Confesso que a meio do ano já não suportava ouvir o nome de Schrödinger, que também invadiu as aulas de fisiologia e de biologia molecular. Sempre fui um aluno "massacrado" pelos professores: na física era "massacrado" com a função de onda, na fisiologia e biologia molecular com a natureza e origem da vida, e até na anatomia do sistema nervoso com as experiências docérebro dividido. Utilizei o termo "massacrado" entre aspas porque, na verdade, o conhecimento não me massacra; pelo contrário, alimenta-me. Este "massacre" mostra até que ponto os cientistas precisam da filosofia: eu era convocado nas aulas e nos gabinetes para pensar as implicações filosóficas das grandesdescobertas científicas. Infelizmente, na altura, dominava mais a parte científica do que a parte filosófica dessas descobertas científicas. A minha posição tomada nesse período pode ser resumida deste modo: precisamos de avançar mais no terreno científico antes de tentar solucionar problemas filosóficos. De certo modo, esta é a minha filosofia espontânea de cientista: primeiro, fazer ciência de boa qualidade e, depois, elaborar a filosofia mais adequada a essa ciência. (Doravante, ser "político profissional" significa ser burro diplomado: a experiência profissional que lhes dá - aos políticos profissionais - um diploma é, ela própria, uma fraude!)

Althusser defendeu a seguinte tese: as revoluções científicas - entendidas como rupturas epistemológicas - tendem a preceder as revoluções filosóficas. Esta tese não se aplica ao caso de Marx: a revolução filosófica ocorreu antes da abertura do continente-História à ciência. A tese de Althusser é demasiado complexa para ser aqui discutida em pormenor: o que interessa destacar é que, para Althusser, não podemos falar de rupturas na filosofia, porque nela «nada é radicalmente novo» e «nada é definitivamente resolvido». Em filosofia nada é radicalmente novo porque teorias antigas, retomadas e deslocadas, sobrevivem e revivem numa filosofia nova. Em filosofia nada é definitivamente resolvido porque há sempre o vaivém das tendências antagonistas, as viragens imprevistas, e as mais antigas filosofias estão sempre prontas a voltar ao assalto, disfarçadas sob formas novas, até mesmo sob formas mais revolucionárias. Ora, isso acontece porque a filosofia é, em última análise, luta de classes na teoria. Esta formulação da filosofia choca os ouvidos dos filósofos, mas ela constitui a realidade da filosofia. O que torna a filosofia tão difícil à compreensão dos físicos é precisamente o facto dela ser luta de classes na teoria. Ou por outras palavras: os físicos ainda são demasiado platónicos para compreender que a filosofia não tem idade, na medida em que as suas revoluções estão sempre expostas a ataques, a recuos e retrocessos, e até ao risco da contra-revolução, como sucedeu nas últimas décadas com o triunfo do neoliberalismo sobre o marxismo. A ciência é, actualmente, alvo do ataque de certas filosofias irracionais que parecem derivar de Marx. Convém dizer claramente que Marx nunca definiu a ciência como ideologia. A teoria da ideologia de Marx, ela própria uma descoberta científica, é genial. Quando generalizam o sentido da ideologia, fazendo dela um fenómeno ubíquo, os filósofos da desconstrução aniquiladora têm um único alvo a abater: a própria teoria da ideologia de Marx e a sua defesa da ciência. Mas nós sabemos, pelo menos depois da crise financeira de 2007, que a crítica da ciência é, ela própria, ideológica: as filosofias que criticam a ciência estão contaminadas pela ideologia mais reaccionária produzida pela classe dominante.

 Os físicos sabem que precisam da ajuda dos filósofos esclarecidos para evitar os erros destes filósofos da desconstrução. A grande linha de demarcação não é tanto entre ciência e metafísica mas entre ciência e ideologia. Esta é a função primordial da filosofia: traçar linhas de demarcação entre o científico e o ideológico. Desgraçadamente, devido à indigência cognitiva predominante, os filósofos não desenvolveram a teoria da ideologia de Marx: a filosofia está condenada a aperfeiçoar essa teoria enquanto intervém na prática científica, no seio da qual ela representa a política. A tese de Althusser permite-me defender outra tese: a mecânica quântica exige uma nova filosofia ou, por outras palavras, a revolução científica em curso só estará concluída quando der origem a uma imensa revolução filosófica. Os físicos estão convencidos de que a epistemologia é a única plataforma que lhes permite estabelecer um diálogo produtivo com os filósofos: eles ainda não compreenderam que a epistemologia sofreu o impacto poderoso da teoria da ideologia de Marx, embora já tenham entendido que a "sociologia" é tão ou mais importante do que a "psicologia". A análise da lição inaugural de Jacques Monod permitiu-me avançar com um modelo crítico. Pretendo agora aperfeiçoá-lo com a análise crítica das obras revolucionárias dos físicos. O facto de já ter estudado a teoria do Big Bang inclina-me a escolher a obra de Steven Weinberg: o objectivo da intervenção filosófica no domínio da física é, em última análise, elaborar uma Filosofia da Natureza. Já existem muitas teorias da realidade propostas pelos próprios físicos, uma das quais é a teoria da ordem implicada de David Bohm. Depois de um longo divórcio, a física regressa ao seio da própria filosofia. Aliás, é muito difícil distinguir entre física teórica e filosofia. Filosofia e Física não são, portanto, duas disciplinas avessas uma à outra: ambas são actividades teóricas que visam acrescentar ao mundo as suas determinações de conhecimento. Da sua cooperação resultará uma nova filosofia da natureza e do próprio conhecimento. 

J Francisco Saraiva de Sousa
Jul.2012

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Uma questão de sobrevivência

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Uma árvore não é a floresta e uma variação trimestral do Produto Interno Bruto (PIB) não é de costume, em si mesma, salvo quando convém ao Governo ou à oposição falha de agenda, motivo suficiente para ilações maiores. Não neste caso, que reputo simbólico, com o anúncio de uma contracção de 0,3% em cadeia nos últimos três meses do ano passado. O consenso generalizado é o de que Portugal vai entrar numa recessão cujo fim não é antecipável. Já começou, e o fundo do poço é uma incógnita, no tempo e na profundidade. Temos apenas algumas certezas tremendas: entramos, pela primeira vez na história, numa recessão, com a maior taxa de desemprego de que há memória estatística, oficialmente correspondente a mais de 600 mil desempregados. Do seu nível, quando batermos no fundo, nada sabemos, excepto que será uma tragédia nunca antes experimentada. A factura de uma década e meia perdida entrou agora a pagamento. Tudo, mas literalmente tudo o que o Governo tem feito, perante a ameaça do que se está já a concretizar, é tentar evitar a excacção das suas omissões ou acções desastrosas, as suas próprias ou as dos governos socialistas que o antecederam, com novas omissões ou acções desastrosas. 

O caso é, porém, mais grave. Esta crise será diferente. Não é uma crise cíclica. Trata-se do ponto de saturação de uma demorada evolução para o abismo, ilustrada por inúmeras curvas: a do défice externo, persistente desde 1995, a do desemprego, em alta desde 2000, salvo uma curta e inconsequente interrupção no princípio do lustro passado, a do endividamento do Estado, das famílias e das empresas, a da produção praticamente estagnada na última década, e em tendência longa para o zero - eis o nó do problema, o problema dos problemas. Vem já da década de 70 do século passado. Na esfera pública, o aumento insuportável do peso do Estado sobre a economia, com o crescimento constante da carga fiscal, da despesa social - representando actualmente mais de 20% do PIB - e da própria máquina das administrações, cuja folha de salários é um pouco mais de metade desse valor; recentemente, os juros, com um peso ainda da ordem dos 4% do PIB, mas em explosão. Parafraseando uma formulação sintética muito adequada do Pedro Braz Teixeira, em União Monetária, isto é, com câmbio fixo, a taxa de juro, o sintoma irrecusável da acumulação de todos os outros desequilíbrios, chega numa altura em que, em vez de ser alerta para uma necessária, atempada e por isso útil mudança de rumo capaz de evitar o naufrágio, torna-se, por tardio na sua manifestação, naquilo mesmo que leva ao fundo. A febre, quando se faz sentir, é tarde de mais. E mata. O sinal converte-se ele próprio no precipitante do colapso.

 Vivemos, até agora, numa ilusão - uma ilusão de prosperidade sem correspondência na realidade. E continuamos a viver. Tudo conspira para a laboriosa construção da nossa irrealidade quotidiana. Um Governo acossado, cujo único norte é a sua sobrevivência imediata. Uma oposição sem vozes com peso político capazes de dizer a verdade, pois a verdade - a bancarrota (a insolvência) generalizada em que entrámos - é demasiado insuportável: para si e para a sua audiência. Não creio que a gritante incongruência entre a dimensão e a natureza dos problemas que enfrentamos e a sua (não) inscrição no discurso público seja necessariamente o resultado de uma manha oportunista deliberada. A tendência natural dos actores políticos medíocres, os que nos sobram, é a demasiado humana tendência para reduzir o perigo à escala dos meios imediatamente disponíveis para o enfrentar. À falta de coragem, a confusão é um expediente vital. Algo disto tem a ver com o facto de os teólogos medievais considerarem a estupidez um pecado mortal. 

O que deveria, a meu ver, ser já claro nesta altura é que esta crise é uma crise de regime: a democracia inaugurada no pós-25 de Abril supunha um pacto de assistência social, com um nível crescente de cobertura de riscos e provimento de garantias, sem relação com as realidades fundamentais da geração de riqueza, que está condenado. A noção de direito social é, em si mesma, perigosamente equívoca. O Estado propõe-se garantir - e retira daí uma parcela considerável da sua legitimidade - o que não pode garantir, pois não está nas suas mãos cumprir. Os inúmeros défices que acumulámos e se transformaram em compromissos não honráveis são apenas a expressão contabilística de um modelo garantista de relação do Estado com os cidadãos, que se revelou impossível. O outro pilar da democracia, a opção europeia, consagrada na União Monetária, foi simultaneamente aquilo que possibilitou a ilusão de viabilidade do nosso modelo democrático e - sabêmo-lo agora - o que pesadamente inclinou à sua inviabilização. 

Esta crise não será, pois, como as outras. As relações entre o Estado e a sociedade, por um lado, e o Estado português e o seu espaço de inserção pós-imperial estão  - radicalmente - em causa. Queiramos, aceitêmo-lo, gostemos, ou não. A irrealidade em que vivemos é filha da impotência política em que vegetamos face à magnitude dos desafios. Na melhor das hipóteses, e até que aconteça qualquer coisa de não antecipável no actual quadro político e mental português, todas as mudanças que nos serão impostas serão apresentadas à sociedade e experimentadas por ela como privação face a um modelo normativo inquestionável. Há um défice - um défice de imaginação moral e de imaginação política - no fundo de tudo isto. Mas é da sua superação, em última instância, que depende a sobrevivência: de Portugal e da sua democracia.

Jorge Costa

Fev.2011

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Por entre as ruínas do consumismo



A atual situação económica é vista pela maioria dos especialistas como resultado de algum desregramento dos cidadãos na gestão dos seus instintos, desejos e capacidades. Acontece que alguns deles chegam a gerir as coisas públicas, administrando os dinheiros que são de todos. À falta de recursos, e representando os seus cidadãos, estes altos responsáveis por alguns países contraem empréstimos, não em seu nome, mas em nome de todos. Algumas vezes bem, outras... menos.

O consumo é, por definição, a destruição de bens ou serviços através da sua utilização. Por vezes, como nas indústrias e em alguns serviços, destroem-se uns em favor da produção de outros. Mas curiosamente, no final de qualquer das sequências, é sempre a uma destruição que se chega.

A nossa sociedade aposta num alinhamento de todos os (seus) consumidores e há uma certa pressão para que todos se sintam num primeiro momento iguais, para que, logo depois, lhes sejam apresentadas propostas de diferenciação, fórmulas para a ultrapassagem dos seus semelhantes.

É a competição entre os cidadãos/consumidores que se constitui como o motor do consumismo, prometendo a satisfação de uma necessidade que parece vital: a diferenciação de status. Costuma dizer-se que as empresas vendem os produtos para os quais despertaram necessidades inexistentes até aí. Como se se criasse gratuitamente uma necessidade, a fim de conseguir vender a solução para a satisfazer e, assim, extingui-la. Talvez funcione desta maneira mas, na verdade, a base deste tipo de mecanismo é a necessidade primária, e profunda, do ser humano querer ser mais que os seus semelhantes.

Numa lógica de soluções abrangentes, existem até empresas que apresentam propostas para fora da linha da maioria, chamam-lhe nichos, esta espécie de produtos servem a quem não quer consumir os outros mais comuns... propostas estas que são afinal a mais clara evidência de que o consumidor quer ser mais que os seus pares. Analisando bem o que oferecem estas empresas, que se apresentam como tendo a solução para quem não se identifica com as massas, verificamos que afinal são propostas de consumismo ainda mais descaradas do que aquelas das quais se pretendem diferenciar... bastando, tantas vezes, introduzir subtis diferenças e preços muito acima dos seus concorrentes. Muitos são os que pagam muito dinheiro para não terem de o gastar onde a maior parte dos outros o gastam... a fim de que, quando se cruzarem, uns se sintam mais do que outros...

Na verdade, é de extrema dificuldade perceber quem é o mais pobre: o que tem pouco e isso lhe basta ou o que tem muito e isso não lhe chega.

Serei melhor quando o for pelo meu valor intrínseco e não pela quantidade de coisas que possa comprar e ter. Ser mais não passa por ter mais. O ter é efémero, ambiciona-se, ganha-se e perde-se mas nunca integra a essência. O ser constrói-se (e destrói-se), revela-se (e oculta-se) e (pode) constituir-se como a única verdadeira riqueza, mas só quando conseguimos que a vida seja autêntica e longe das largas avenidas, cheias de vãs promessas de felicidade a cada passo, caminhamos no nosso carreiro, umas vezes muito sós, mas (quase) sempre acompanhados da certeza de que é por ali o caminho.

As pessoas não são o que consomem apesar de, muito pouco inteligentemente, tantas, julgarem que sim. Mas o facto de acreditarem nisso manifesta de forma simples o que estas pessoas são, ou melhor, não são: valiosas.

Afinal, o consumo não destrói só os bens, mas também todos quantos neles julgam, frustradamente, encontrar algo de bom.

José Luís Nunes Martins
Jun.2012

sexta-feira, 29 de junho de 2012

O Café Marx




... e a Doença de Alzheimer.

«Envelhecer significa a transformação gradual (ou antes, súbita) de um mundo de rostos familiares (quer seja de amigos ou de inimigos) numa espécie de deserto habitado por rostos estranhos. Por outras palavras, não sou eu que me retiro do mundo, é o mundo que se desfaz». (Hannah Arendt)

Goethe definiu o envelhecer como o retirar-se gradualmente da aparência. Porém, quando começou a envelhecer, Hannah Arendt viveu essa separação do mundo, não como retirada do mundo, mas como o próprio mundo a retirar-se à sua volta, ou melhor, como a progressiva dissolução de um mundo de seres prontos a acolher o seu aparecer, através do desaparecimento desses seres. Arendt capta e tematiza uma experiência universal: a morte dos outros próximos, amigos ou inimigos, faz de nós órfãos de mundo: o nosso mundo começa a estreitar-se e a retirar-se gradual ou subitamente até ao seu desaparecimento final.

De certo modo, o crescimento e o envelhecimento são etapas opostas do ciclo vital: o envelhecimento estreita os horizontes do nosso mundo, definidos e traçados pelos adultos – esses estranhos cartógrafos remotos que traçam o mapa do nosso sistema localizado de relações de conflito ou de cooperação no mundo - durante o nosso período de crescimento. Os endereços que coleccionámos durante este período de expansão - com o objectivo de ingressarmos na cosmovisão dos adultos - começam a desaparecer à medida que envelhecemos: cada endereço conquistado por cada um de nós é mais uma localização do nosso eu na rede de relações de um mapa social em expansão, e a perda de um endereço - a morte de um outro, querido ou detestado - implica o retraimento, ou melhor, a contracção desse nosso mundo de outros prontos a acolher o nosso aparecer. A troca de e-mails pode ajudar a compreender a ideia nuclear subjacente à concepção arendtiana do envelhecimento.

Quando envio o meu endereço exacto a um «estranho» com quem teclei algures num chat e recebo a sua resposta, a minha rede de relações alarga-se, na medida em que me tornei visível para mais um outro ser. Mas, se esse outro morrer mais tarde e deixar por isso de me responder, o meu mundo de relações começa a contrair-se. Ora, envelhecer é precisamente tornarmo-nos invisíveis para o mundo, através da morte dos outros que acolhiam o nosso aparecer. Envelhecer é viver essa dolorosa experiência do nosso próprio apagamento: a "morte" rouba-nos os outros prontos a receber a revelação - a manifestação - do nosso ser singular e a ser testemunhas dela. O facto de não podermos manifestar a mais ninguém a nossa auto-revelação amputa-nos da nossa abertura ao mundo. (Fonex: Estou a seguir um caminho muito complexo! Claustrofobia sociológica, a minha e a de Arendt! :::)

A doença de Alzheimer coloca um grande desafio à ontologia fenomenológica que suporta o pensamento político de Hannah Arendt: «O mundo em que os homens nascem contém muitas coisas, naturais e artificiais, vivas e mortas, transitórias e sempiternas, que têm todas em comum o facto de aparecerem e, por essa razão, são feitas para serem vistas, ouvidas, tocadas, saboreadas e cheiradas, para serem percebidas por criaturas sencientes dotadas de órgãos sensoriais apropriados. Neste mundo em que entramos, aparecendo vindos de parte nenhuma, e do qual desaparecemos para parte nenhuma, Ser e Aparência coincidem. A matéria morta, natural e artificial, mutável e imutável, depende para o seu ser, isto é, para a sua dimensão de aparência, da presença de criaturas vivas. Nada nem ninguém existe neste mundo cujo verdadeiro ser não pressuponha um espectador. Por outras palavras, nada do que é, na medida em que aparece, existe no singular; tudo o que é está destinado a ser percebido por alguém. 

Não é o Homem mas sim os homens quem habita o planeta. A pluralidade é a lei da terra» (Arendt). Não pretendo impugnar esta coincidência entre o ser e a aparência, até porque ela não é estranha à dialéctica: o que pretendo fazer é pensar a condição terrível - e anti-humana – do doente de Alzheimer à luz do princípio de que o aparecer é um co-aparecer, na medida em que os outros seres aos quais apareço, aparecem-me, por sua vez. Para Arendt, o sujeito puro espectador não existe: cada um de nós é, ao mesmo tempo, espectador e actor nesse palco que é o mundo comum: «Quem vê quer ser visto, quem ouve quer ser ouvido, quem toca quer ser tocado» (Arendt). (:::)

J Francisco Saraiva de Sousa
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Fev.2011

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Marx, Durkheim e a teoria da infância


Não é a infância de Marx e Durkheim que vou analisar, mas sim, o que eles afirmaram sobre a infância, o meu tema preferido, o da criança.

Pouco se sabe do facto de Émile Durkheim, e a sua equipa, terem usado o método do materialismo histórico na análise da vida social. No entanto, no seu livro datado de 1888, publicado como obra póstuma em 1928, LeSocialisme, Durkheim, faz uma apreciação da obra de Marx, como escreve em Dezembro de 1897, na Revue Philosophique, no seu “Essais sur la conception materialiste de l’histoire”.

Que Durkheim sabia de infância, é um dado adquirido. Que Durkheim se baseou na obra de Marx, é desconhecido. Tepria analisada no meu livro de 2007: O presente, essa grande mentira social. A reciprocidade com mais-valia, Afrontamento, Porto.

No seu livro, também póstumo, de 1925, L’Education Morale, diz que …o filho de um filólogo não herda um único vocábulo. O que a criança recebe dos seus pais, são faculdades muito gerais (…) há uma considerável distância entre as qualidades naturais da infância e a forma especial que devem adquirir para serem utilizadas durante a vida…. Ao longo de mais de duzentas páginas, o autor desenvolve a sua teoria sobre a educação moral e a pedagogia, salientando que a existência de classes sociais, caracterizadas pela importante desigualdade de quem tem e de quem apenas possui a sua capacidade de produção como força de trabalho, torna impossível que contratos justos sejam negociados, entre um possuidor e um não possuidor de meios de produção. O sistema de estratificação social existente constrange uma troca igual de bens e serviços, ofendendo assim as expectativas dos povos das sociedades industriais. A exploração impossibilita (…) uma igualdade necessária para exprimir a vontade… (tradução da minha responsabilidade).

As ideias expressas na página 209 e seguintes, delimitam a sua ideia original do desenvolvimento das capacidades da criança. Para Durkheim, e seus analistas, estas parecem depender da classe social.

No seu texto publicado em 1951, mas escrito entre 1857 e 58 o Grundisse, comenta Marx, apresentando um esquema para o estudo da economia política (tradução e interpretação da minha responsabilidade) … um adulto não pode tornar a ser criança excepto se age como um pequeno, o que até lhe parece impossível, por causa das virtudes e formas estéticas de agir dos mais novos. Formas de comportamento esperadas dos mais novos, que, por causa da época, da relação social, denominada capital ou troca de bens, entre pessoas, são doentes.

Acrescentando Marx e comentando Durkheim: a relação que procura o lucro, retirando mais-valia do trabalho de outrem, e especialmente de crianças, é uma forma doentia de ganhar ou de criar bens. No entanto, na conjuntura analisada, o nascimento das relações entre seres humanos orientadas pela obtenção de lucro e mais-valia, retirada dos não possuidores de bens, as crianças devem passar a ser crianças precoces.

Crítica de Marx e comentário de Durkheim: na nossa sociedade, a infância não tem direito a brincar, nem a desenvolver o seu imaginário, devido ao facto de começar a trabalhar desde muito cedo na indústria para apoiar a sua família. Ideias desenvolvidas ao longo de mais de cinquenta páginas no texto referido, designado também de Fundamentos para a crítica da Economia Política.

A partir destes textos, bem como das ideias do trabalho infantil que não desenvolve intelectualidade na infância, referidas por Marx no seu texto O Capital, Durkheim elabora a sua teoria da pedagogia apresentada no texto de 1925, já citado, bem como em Leçons de Sociologie. Physique de Moeurs et du Droit de 1904 e 1908, publicado em Istambul em 1934 e em França, no ano de 1950.

A análise materialista da História é usada por Marcel Mauss no seu trabalho Ensaio sobre a Dádiva, 1924-1925, publicado na revista anual L’Année Sociologique II Edição, dizendo que Durkheim tem razão ao afirmar que o nosso Estado retira de nós as nossa posses e capacidades por meio das leis e dos impostos: o trabalhador deu a sua vida e o seu trabalho à colectividade por um lado, aos seus patrões por outro (…) não estão quites com eles através do pagamento do salário… (página 187 da edição portuguesa de 1988).

Se apresento este conjunto de ideias é, fundamentalmente, para expandirmos o nosso saber sobre a criança. É preciso procurar entre os autores associados às actividades revolucionárias, como Marx, que, de facto, foi a base teórica para outros agirem, nomeadamente Durkheim e Mauss, mas que, normalmente, os investigadores e a academia, não associam.

Penso que a nossa mentalidade ideológica – classificatória, desdenha Durkheim como analista social e pedagogo, vira as costas à obra de Marx, pois não anda na moda da globalização, e desconhece o socialismo de Marcel Mauss. Estes autores começaram a entender a realidade a partir da análise da actividade e epistemologia da criança. Epistemologia que, por sua causa, me permite, hoje, entender e exprimir aos meus discentes a importância da contextualização através da classe social. Entender a criança, é entender a obra dos autores citados que lutaram e morreram pelas suas ideias. Tal o caso histórico de Durkheim, como o desconhecido da vida de Karl Marx, ou a doença mental de Marcel Mauss provocada pelo terror que os seus descendentes, intelectuais e consanguíneos, pudessem desaparecer na Segunda Guerra Mundial do Século XX, como tinha acontecido na Primeira Grande Guerra, fugindo do real refugiou-se numa calma paranóia.

Marx estuda o lucro obtido pelo trabalho das crianças no início da revolução industrial, época em que ainda não havia máquinas, acabando por serem os mais pequenos a força motriz do tear. Força, entendida pelos donos do tear (proprietários do capital) como brincadeira (efeito de baloiço), executada, pela pequenada, com movimentos repetitivos o dia inteiro (desde as 7 de manhã até à chegada da noite), sem ganhar muito dinheiro. Durkheim, entendia as crianças como pessoas que tinham que aprender o saber dos seus adultos e organizou uma teoria pedagógica para transferir o saber geracional. Marcel Mauss entendia as crianças como seres nativos, com base nos dados fornecidos pelos seus estudantes que realizavam trabalho de campo, seres pequenos, normalmente usados como um sacrifício de entrega à divindade: não eram mortos, participavam numa cerimónia para que as divindades tomassem conta deles e das suas vidas, ideia que Marx já apresentava na sua análise da mais-valia e Durkheim nos seus textos sobre a divindade, especialmente no de 1912: As estruturas elementares da vida religiosa.

Fev.2011
Raul Iturra

sexta-feira, 15 de junho de 2012

Antropologia e Primitivismo Português

 



«A tragédia mental de Portugal presente é que, como veremos, o nosso escol é estruturalmente provinciano». (Fernando Pessoa)

«Quando o carácter adoece e se dilui, é natural que o espírito de iniciativa dê lugar ao imitativo ou simiesco. A degenerescência inferior apaga os valores adquiridos que se conservam, em nós, como que num estado de perpétuo esforço. Sempre que o homem hesita na sua humanidade, aparece o macaco. Este persegue-nos constantemente, vigiando-nos, e aproveitando o primeiro descuido da nossa pessoa, para se lhe substituir». (Teixeira de Pascoaes)

«Nunca os portugueses mostraram queda para as altas especulações filosóficas.» (Sampaio Bruno)

Na história do espírito humano, podemos distinguir dois tipos de épocas: as épocas em que o homem está abrigado e as épocas em que o homem está à mercê das intempéries, sem-abrigo. Nas épocas abrigadas, o homem vive no mundo como se vivesse em sua própria casa, enquanto, nas épocas sem-abrigo, o mundo é uma imensa intempérie e, frequentemente, o homem não tem quatro estacas para erguer uma tenda. A natureza da reflexão antropológica varia em função da época em questão. Nas épocas abrigadas, o homem não é um ser problemático e, por isso, o pensamento antropológico integra-se pacificamente no seio dopensamento cosmológico, mas, nas épocas desabrigadas, o homem torna-se problemático para si mesmo e, em consequência disso, o pensamento antropológico adquire profundidade e independência.

A pré-história da antropologia filosófica fornece todos os materiais para pensar esta conexão entre o tipo de época histórico-espiritual e a natureza do pensamento antropológico, bastando nomear Santo Agostinho que se surpreende com aquilo que no homem não pode ser compreendido como parte integrante do mundo, e o movimento espiritual da gnose, sobretudo o maniqueísmo, que, despojando a criação de valor, nega ao homem um lugar no mundo. Apesar da riqueza cognitiva desta pré-história antropológica, o nascimento da antropologia filosófica está estruturalmente ligado à emergência do capitalismo: «Mundo contingente e indivíduo problemático são realidades que se condicionam uma à outra» (Lukács).

 O mundo contingente de que fala Lukács é, conforme mostraram Marx e Engels, uma criação do capitalismo: o pecado original do capitalismo – a apropriação privada dos bens da natureza e da sociedade - é a manifestação suprema da alienação. A associação teológica da alienação com o pecado original foi vista pelo jovem Lukács nestes termos: «O carácter estranho desta natureza relativamente à primeira, a apreensão moderna sentimental da natureza, não são mais do que a projecção da experiência que ensina ao homem que o mundo ambiente que ele mesmo criou não é para ele um lar, mas uma prisão». A contingência do mundo e o homem problemático são realidades e categorias históricas que se condicionam reciprocamente: a missão histórica - isto é, política - do marxismo foi dar um abrigo ao sem-abrigo.

 Porém, independentemente dos efeitos nefastos da crise financeira e económica de 2008, a concretização de uma política do homem abrigado não é suficiente para garantir a desalienação do homem e do mundo, sobretudo quando conserva uma visão optimista e progressista da história sem a quebra radical da continuidade do capitalismo: quer dizer que o sem-abrigo é uma realidade humana originária - ou melhor, uma realidade bio-antropológica - refractária aos movimentos da história, a menos que o sonho médico totalitário seja capaz de alterar a natureza humana por meios farmacológicos e genéticos. (:::)

No quadro da civilização europeia, o único povo que não criou uma metafísica foi o povo português. O facto de ser um povo sem metafísica (Hegel) é suficiente para classificar os portugueses como homens primitivos e arcaicos que, em vez de produzir a sua própria cultura superior, consomem a cultura alheia sem no entanto a compreender. (:::)

 J Francisco Saraiva de Sousa
Fev.2011
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sexta-feira, 8 de junho de 2012

Falar verdade sobre o comércio ético




Beja Santos

O apelo à responsabilidade, o querer conhecer mais sobre a proveniência dos bens de consumo e aspirar as escolhas que respeitem o ambiente e a justiça social são atitudes bastante recentes. É verdade que a política dos consumidores nasceu no dia em que o cidadão descobriu que lhe faltava informação sobre o mercado, que estava vulnerável à fralda, ao engano e à prepotência dos vendedores. O Estado e a sociedade mobilizaram-se para contrariar o desequilíbrio entre o conhecimento que o fabricante tem do seu produto e que pode explorar em função do desconhecimento do consumidor.

A partir da ascensão do individualismo, da consagração do digital e da sociedade em rede, uma fracção significativa de consumidores passou a interessar-se pelo consumo responsável, pelo consumo sustentável e pelas compras baseadas na ética e na qualidade social. Essa percentagem de cidadãos valoriza as tecnologias limpas, as críticas à globalização predatória e à ética do consumo, estando atentos à responsabilidade social, à agricultura biológica e às práticas sociais iníquas bem como às comunicações comerciais desleais e agressivas.

Como escrevi em “Consumidor Diligente, Cidadão Negligente” (Edições Sílabo, 2010), um dos paradoxos mais chocantes do nosso tempo assenta num consumo diligente que ilude os cuidados da cidadania. Vivemos preocupados em comprar barato e aliviamos a consciência com algumas preocupações sociais e ecológicas. Impõe-se reconciliar o cidadão com o consumidor. O ponto de partida é centrar o pensamento e acção numa visão do consumo como uma questão da cidadania: sem sustentabilidade, o consumo corre o risco de agravar todos os problemas ambientais; vivemos numa sociedade móvel, os fluxos informativos são cada vez mais rápidos e eficientes, como se acaba de ver nas movimentações no Egipto; a sustentabilidade é a conciliação do bem comum e da equidade, do tratamento apropriado dos recursos naturais e do crescimento económico com regras de regulação; a sustentabilidade é política, social e cultural; o consumo social e ambientalmente responsável pode e deve utilizar as tecnologias da sociedade em rede e o sistema político deve reger-se pelo primado do bem público, garantindo a segurança alimentar, a honestidade das comunicações comerciais e os meios formativos com vista a decidir com mais liberdade e critério como se pode ser um bom cidadão por via das práticas do consumo.

Este desafio é um processo complexo: queremos tudo e imediatamente, queremos os opostos como os 4×4 e a protecção da camada do ozono, somos defensores dos hipermercados e do comércio tradicional, somos contra as deslocalizações mas queremos os preços mais baixos em tudo… É este o nosso tempo da moral do indivíduo pragmático e oportunista.

Identificar as empresas que respeitam o biológico, os modos de produção ou de fabrico ambientalmente menos agressivos e as empresas cumpridoras dos direitos humanos é hoje uma questão essencial para garantir a confiança do consumidor na sua participação em todos os vectores da sustentabilidade: os rótulos devem ser inequivocamente ecológicos e sociais; o que se diz ser “natural”, “melhor para o ambiente” ou “respeitador dos direitos dos trabalhadores” precisa de ser veraz e comprovável a todo o instante, todas as alegações ambientais e éticas não podem confundir o consumidor, há que encontrar regras comuns para premiar as empresas responsáveis e punir as empresas prevaricadoras. Só se pode construir a confiança do consumidor enquadrando as grandes questões da informação do que se diz na rotulagem e na publicidade: quais os atributos verificáveis das alegações éticas (impacte ambiental, práticas laborais, bem-estar animal, etc.); definição de quem verifica os conteúdos das alegações éticas. Enquadramento das diferentes funções e responsabilidades dos diferentes interessados pelas alegações.

Só o rigor destes procedimentos é que desenvolverá um aumento de preocupações dos consumidores com os bens e serviços social e ambientalmente responsáveis e as práticas do comércio ético. Há hoje em todo o mundo um conjunto de organizações envolvidas na procura de soluções para potenciar a confiança do consumidor: a Consumers International, a Organização Internacional de Rotulagem do Comércio Justo, a Organização Internacional de Normalização e a própria Organização Comercial do Comércio Justo, entre outras. Procura-se uma metodologia para a implicação das partes interessadas e que permita aos consumidores distinguir os diferentes atributos sociais, económicos e ambientais e a consagração de processos de verificação e certificação. No momento presente, já obteve consenso sobre o que deve ser a avaliação da fiabilidade das alegações éticas, estão identificados sete factores importantes e que são: a veracidade da alegação; as possibilidades de verificar a alegação; o poder definir o que são imagens ou palavras éticas; qual o nível de desempenho do que consta na alegação; a relevância do impacto; a clareza ou o significado da alegação.  

Como é evidente, impõe-se à escala mundial encontrar regras que dêem confiança ao consumidor quando ele decide comprar bens e serviços ditos amigos do ambiente ou processados segundo normas éticas. Quanto maior for a confiança do consumidor maior estímulo haverá no mercado para métodos de produção sustentáveis e de normas éticas. Precisamos urgentemente dessas normas que dêem possibilidade em comparar todos os dados referentes aos impactos positivos das alegações éticas. Não é fácil, e é mesmo dispendioso. Há muitas investigações para fazer e o momento de recessão que se vive não entusiasma muito as empresas e os consumidores. Um bom ponto de partida seria criar um banco de dados com informação que explique aos consumidores as alegações. Postos na web, deviam propiciar acesso público aos termos, a relatórios de quem os verificou e revelar qual a sua base de sustentação, havendo vantagem em que os peritos dessem conselhos sobre os modos como os consumidores podem identificar as alegações verdadeiramente éticas. Estamos a precisar de experiências que catapultem o comércio ético e o consumo sustentável para patamares superiores do chamado consumo de massas. Precisa-se de imaginação para consumir de um modo diferente, com mais equidade e esperança no bem-estar das gerações futuras.

Fev.2011

sexta-feira, 1 de junho de 2012

As diferenças que levam às complementaridades



António Campos


Pensava escrever sobre a observação das diferenças entre homem e mulher. Pensava. Continuei a pensar e consultei amigas. No meu ver, as amigas são complemento de nós homens. Não pela sexualidade, mas pela intimidade que se desenvolve entre gâmetas diferentes, sendo gâmetas cada uma das duas células (masculina e feminina) entre as quais se opera a fecundação dos animais e vegetais.

A minha ideia original era escrever sobre as diferenças entre homem e mulher. No entanto, ao rever os códigos que nos governam, especialmente o Código Civil, reformulado em 2001, não encontrei nem diferenças nem complementaridade. Hoje em dia, a diferença sexual tem apenas uma diferença: a mulher grávida carrega a criança durante nove meses no seu ventre. Ainda assim, esta época moderna leva essa mulher a trabalhar para sustentar o lar en conjunto com o homem que a engravidou, seja marido, companheiro, amancebado ou outro tipo de relação a dois. Seja qual for o tipo de relação, as pessoas complementam-se por causa da economia, especialmente em épocas de crise financeira, como a que hoje em dia vivemos.

Crise financeira que nos complementa, estamos todos submetidos à mesma lei, ao mesmo governo que nos retira o que não temos, porque antes de pagar, as nossas autoridades retiram um novo imposto, baixando os salários e subindo os preços dos produtos alimentares através do aumento do IVA, que o vendedor retira dos preços cobrados aos clientes. Estes impostos, são um complemento da crise económica que vivemos, todos por igual, excepto os proprietários de indústrias ou os financeiros que sabem colocar os seus lucros em empresas que criam mais-valia. É um pequeno número da população que lucra com a necessidade de consumo, do pagamento da educação dos mais novos, da compra de livros que mudam em cada ano escolar, mesmo que a justificação seja a introdução de novos conhecimentos produzidos pela ciência que devem ser ensinados para desenvolver ideias que melhorem as formas de vida do nosso país, que muito atrasado está. Atrasado, porque a classe política está sempre preocupada em semear crises entre os diversos partidos, para assim saber quem apoia a quem. Estes são os complementos que eu referia: parte que se junta (ou falta) a outra, para esta formar um todo completo.

Quanto às diferenças, não se pense que falo de emotividade ou sexualidade. A reacção da primeira amiga que consultei, foi directa: eu sou autónoma e independente, não complemento ninguém. Por outras palavras, tem liberdade moral, intelectual e independência administrativa. Conheço poucas pessoas que possuam estas virtudes. Conseguir ser independente ética e economicamente, parece-me, a mim, ser a procura da solidão das solidões. Conhecendo a pessoa, parece-me que é apenas um dizer para se defender de uma eventual solidão real. Se diz ser autónoma, como pode, porém, amar? Ou procurar amor? Estas são as diferenças que levam à complementaridade entre pessoas que protestam por obrigações e, no entanto, sonham com a companhia e estão sempre acompanhadas. Mas, também, a solidão não as afecta nem ficam abandonadas: acabam por ter ânimo para a autonomia, essa autonomia que todos queríamos ter, mas não conseguimos por sermos seres sociais, precisamos dos outros que nos inspiram confiança, fazendo das diferenças, uma complementaridade. A outra senhora entrevistada falou-me de complementaridade como primeira frase. Pessoa que adora a solidão e se refugia no trabalho permanente.

Quais, pois, as diferenças que levam à complementaridade? Ou, colocando a pergunta de uma outra maneira, será que há diferenças entre seres humanos de uma mesma cultura, uma mesma língua, uma história comum, de leis que governam todos por igual, especialmente se elas são respeitadas e mandadas respeitar? A diferença que complemento é, no meu ver, apenas um sentimento que nos defende de uma solidão não esperada. Solidão que existe quando há outros assuntos a fazer. Ou, apenas, essa dedicação à solidão porque não há outras alternativas para a companhia.

Um assunto parece-me certo: apenas os seres fortes, que cumprem as suas obrigações e não choramingam pela vida que lhes coube viver, são capazes de criar uma abençoada autonomia, criando alternativas perante a vida. Estas ideias são filosofia de alto voo.

No começo, pensava escrever sobre a diferença entre homem e mulher, contudo ao rever os códigos e ao não encontrar nada que não mande a todos serem cidadãos ou indivíduos no gozo dos direitos civis e políticos de um estado livre, mas nós, que vivemos debaixo de ditaduras opressivas ou de pessoas que não acompanham nem com carinho nem com trabalho, somos amantes da autonomia, procuramo-la, aceitamo-la e se acontecer que dois autónomos se encontram… Seria a felicidade das felicidades, com respeito e companhia, especialmente respeito a essa companhia. É assim que, sem dar por isso, enamorei-me e estou sempre acompanhado pela pessoa, ou pela sua relíquia…Esta é a diferença que leva à complementaridade. Amo-te, rapariga autónoma, porque nos complementamos, rimos, divertimo-nos e confrontamos as diferenças com paz, tranquilidade e companhia…

Fev.2011
Raul Iturra

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Decrescimento sereno - um conceito polémico





António Campos



Serge Latouche é o grande paladino do modelo de decrescimento sereno e sustentável. As suas teses acabam de aparecer entre nós e seguramente que vão alimentar discussões sobretudo nos meios ligados à ecologia, aos modelos económicos alternativos e à alterglobalização: “Pequeno Tratado do Decrescimento Sereno”, por Serge Latouche, Edições 70, 2011. Outrora, falava-se em reduzir, reutilizar e reciclar. Na sua proposta para o decrescimento sereno convivial e sustentável, Latouche propõe: reavaliar, reconceptualizar, reestruturar, redistribuir, relocalizar, reduzir, reutilizar e reciclar. Vivemos no mundo em que os danos ambientais estão largamente denunciados mas como temos a nossa refeição garantida todos os dias, tudo pretendemos ignorar. Há décadas que se fala nos riscos a prazo de um conjunto de substâncias como os pesticidas, muito pouco se fez; quase todos os dias emanam relatórios perturbadores de entidades respeitáveis, continuamos vergados ao crescimento pelo crescimento, parece que há uma incapacidade generalizada para pôr um travão a este bólide sem condutor, sem marcha atrás e sem travões.

Fazendo fé à argumentação de Latouche, vamos passar em revista os dados fundamentais deste projecto de sociedade de decrescimento que o autor apresenta como a única alternativa que se pode pôr a uma previsível catástrofe ecológica e humana. Primeiro, a despeito de muita indiferença dos meios políticos dominantes, há uma gradual atenção ao decrescimento que já aparece associado à rejeição do crescimento ilimitado o tal que se pauta pelo culto irracional e quase idólatra do crescimento pelo crescimento. Retomando enunciados e olhares que vêm da contestação ambiental e de muitos intelectuais alternativos, o projecto de decrescimento orienta-se para uma sociedade em que se viverá melhor, trabalhando e consumindo menos. O conceito de desenvolvimento sustentável fundamenta-se em ambiguidades e equívocos, tudo leva a crer que os economistas que no fundo suspiram só pelo crescimento pelo crescimento até gostem do conceito, tão neutro que ele é. A economia neoclássica condescende com a necessidade de apregoar a sustentabilidade mas no fundo mantém-se indiferente às leis fundamentais da biologia, da química e da física. Esses economistas negam a bioeconomia ou seja rejeitam pensar a economia no interior da bioesfera. Segundo, a sociedade em que vivemos é a da acumulação ilimitada, nela o importante é criar desejos ao consumidor, dar-lhe crédito para ele nunca deixar de consumir e programar os produtos para que se renove regularmente a necessidade de sua substituição. Chegámos assim a uma pegada ecológica insustentável, vivemos do rendimento e do património. Os excessos cometidos têm sido tão grandes que não há ninguém que não se interrogue se não estamos a preparar o nosso desaparecimento: uma guerra atómica, através de pandemias, esgotando os recursos naturais e destruindo a biodiversidade, mediante alterações climáticas que tornem a existência inviável.

As discussões sobre o modelo económico alternativo prosseguem, mas parece que ninguém quer pôr em causa a lógica de desmesura do sistema económico. Terceiro, para entender o decrescimento é necessário compreender o ciclo dos oito “R” que Latouche preconiza: reavaliar (os valores do passado são incompatíveis com os desafios do presente, precisamos de cooperação, vida social, autonomia como os valores indispensáveis para substituir a competição desenfreada, o consumo ilimitado e a eficiência produtivista); reconceptualizar (porque esta mudança de valores pressupõe uma outra maneira de apreender a realidade); reestruturar (ou seja, adaptar o aparelho de produção a essa mudança de valores o que significa que se terá de pôr em causa e muito provavelmente abandonar o capitalismo); redistribuir (a reestruturação das relações sociais acarretará uma distribuição); relocalizar (produzir localmente uma parte fundamental do que é indispensável para satisfazer necessidades da população); reduzir (para diminuir o impacto na bioesfera das nossas maneiras de produzir e consumir); reutilizar/reciclar (aqui parece estar toda a gente de acordo, é um conceito pacífico). Destes oito “R” três têm um papel estratégico, como escreve Latouche: a reavaliação, porque ela preside a toda a mudança, a redução porque condensa todos os imperativos práticos do decrescimento e a relocalização porque diz respeito à vida quotidiana e ao emprego de milhões de pessoas. Relocalizar será inventar a democracia ecológica local com as suas relações transversais, virtuosas e solidárias, com um elevado grau de auto-suficiência alimentar, mas também económica e financeira.

O que nos remete para um valor profundo da regionalização, ela própria com uma decrescente pegada ecológica graças à produção e ao consumo sustentáveis e uma elevada riqueza em iniciativas locais decrescentes. Quarto, reduzir será contrariar a irracionalidade da globalização, onde camarões dinamarqueses são descascados em Marrocos e regressam à Dinamarca, lagostins escoceses são expatriados para a Tailândia para ser descascados à mão e regressar à escócia para ser cozidos. Esta globalização irracional assenta no uso indiscriminado transporte e na indiferença pela velocidade. Este decrescimento, como é óbvio, carece de um programa político, não pode ser implementado sem uma grande adesão das populações: para reduzir a pegada ecológica; para se aplicar ecotaxas; para se fixarem actividades económicas e pessoas em meio local, para encorajar uma produção o mais local, sazonal, natural e tradicional que for possível; para transformar os ganhos de produtividade em redução do tempo de trabalho e em criação de empregos; para reduzir os desperdícios de energia; e para impulsionar os chamados bens relacionais, como a amizade e o conhecimento. Estamos pois no centro das grandes controvérsias: nesta acepção do decrescimento o que seria o pleno emprego, que modelo capitalista se poderia institucionalizar, isto logo à cabeça. Está aberta a grande discussão.

Em jeito de conclusão, é bom que se diga que os partidários do crescimento são rotulados de todas as enormidades: são contra o progresso, contra o turismo de massas, a inovação e competitividade, por exemplo. Latouche responde que a realização de uma sociedade de crescimento passa necessariamente por um reencantamento do mundo, o que ninguém sabe muito bem o que quer dizer. Querer travar a banalização das coisas requer artistas e entusiastas pelo decrescimento. Resta saber qual a adesão que este modelo alternativo encontrará, qual o entusiasmo a este modo de vida gradual e serenamente decrescente. As grandes discussões vão agora começar.

Beja Santos
Fev.2011

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Adultério

António Campos



Mulher islâmica apedrejada por delito de adultério

Escrever sobre adultério, não é simples nem fácil. A própria definição do verbo o salienta: Violação da fidelidade conjugal. Apesar da definição fornecida antes, ser a mais atribuída ao facto que analiso, também há outras formas que colocam em risco a vida das pessoas, como falsificação ou a adulteração de um produto. Não é apenas um engano social, é um risco para a vida, um eterno suspeitar de que o que adquirimos possa estar fora de prazo, porque o comércio é comércio e para não perder, apagam-se as datas de validade e, como ninguém se importa em consultar as datas, essa adulteração coloca em risco a vida e a saúde da pessoa. Como aconteceu antes de ontem com a minha neta May Malen Isley: foram almoçar ao University Center da nossa Universidade de Cambridge, que, ultimamente, é um fiasco comercial. Foi de imediato levada para o hospital, os antibióticos a salvaram pela prontidão dos pais, a minha filha Camila e o meu genro Félix. No dia seguinte, já estava bem. Não sou homem de fé, mas dou graças à divindade, como aos meus filhos, de terem salvo a única descendência que, por enquanto, têm.

No Islam, a violação à fidelidade conjugal é punida como é possível ver na imagem que ilustra o texto. Está tudo escrito no Alcorão que, de forma impiedosa, trata as faltas, especialmente as das mulheres que podem levar no seu ventre o filho de outrem, com o qual, como diz o livro sagrado mencionado, parte a família ao entrar sangue que não lhe pertence, não tem direitos nem pais. Escolhi esta imagem por corresponder à de um caso, perdido, denunciado pela Amnistia Internacional, a mulher Kabila da Argélia, faleceu de fome, sede e apedrejamento. Quem por ela passasse, tinha a obrigação de lançar pedras para manter a ordem social. Tanto o Islam como o Cristianismo exortam os seus adeptos às acções virtuosas e à vida piedosa. Condenam a falsidade, a desonestidade, a hipocrisia, a injustiça, a crueldade, o orgulho, a ingratidão, a traição, a intolerância, a luxúria, a preguiça, o ciúme, o egoísmo, a apatia, a expressão injuriosa, a ira e a violência. Ambos prescrevem aos seus seguidores fé e confiança em Deus, arrependimento, verdade, pureza, coragem, justiça, caridade, benevolência, simpatia, misericórdia, auto-disciplina e probidade. Pode ler-se no Alcorão Sagrado, capítulo 6, versículo 151.
Os cristãos parecem ser mais piedosos. Acodem ao divórcio desde o Século XIX. No entanto, tem uma definição completa no catecismo romano de Karol Wojtila, 1991:
A.19.1 Adultério e coração do homem
§ 1853
Pode-se distinguir os pecados segundo seu objeto, como em todo ato humano, ou segundo as virtudes a que se opõem, por excesso ou por defeito, ou segundo os mandamentos que eles contrariam. Pode-se também classificá-los conforme dizem respeito a Deus, ao próximo ou a si mesmo; pode-se dividi-los em pecados espirituais e carnais, ou ainda em pecados por pensamento, palavra, ação ou omissão. A raiz do pecado está no coração do homem, em sua livre vontade, segundo o ensinamento do Senhor: “Com efeito, é do coração que procedem más inclinações, assassínios, adultérios, prostituições, roubos, falsos testemunhos e difamações. São estas as coisas que tomam o homem impuro” (Mt 15,19-20). No coração reside também a caridade, princípio das obras boas e puras, que o pecado fere.
§ 2517
O coração é a sede da personalidade moral: “É do coração que procedem más intenções, assassínios, adultérios, prostituições, roubos, falsos testemunhos e difamações” (Mt 15,19). A luta contra a concupiscência da carne passa pela purificação do coração e a prática da temperança:Conserva-te na simplicidade, na inocência, e serás como a criancinhas, que ignoram o mal destruidor da vida dos homens.
A.19.2 Adultério e desejo
§ 2336
Jesus veio restaurar a criação na pureza de sua origem. No Sermão da Montanha, Ele interpreta de maneira rigorosa o plano de Deus: “Ouvistes o que foi dito: ‘Não cometerás adultério’. Eu, porém, vos digo: todo aquele que olha para uma mulher com desejo libidinoso já cometeu adultério com ela em seu coração” (Mt 5,27-28). O homem não deve separar o que Deus uniu.A Tradição da Igreja entendeu o sexto mandamento como englobando o conjunto da sexualidade humana.
Wojtila ou beato João Paulo II, Papa Católico antes de Bento XVI (Joseph Ratzinger), o alemão que governa os católicos actualmente, Karolus Wojtila, dizia eu, não deixa fio sem atar. Só lendo o texto, poderemos apreciar que o Beato Karolus procura a pureza original do cristianismo. No entanto, se o adultério não é perdoado, pelo menos o sacramento, quer dizer, esse acto instituído por Deus para purificar e santificar as almas, como dizem todas as confissões cristãs, o sacramento da confissão, dizia eu, perdoa as faltas.

Mas, que grande falta! Insisto no meu padroeiro de ser a libido e o Iso ou Id, os que comandam o mundo. Hoje em dia a maior parte da população é adúltera, como tem sido estudado pela patrística e como deduz Anália Torres Cardoso nos seus livros, o mais importante, na minha opinião, o de 1996, Celta Editores: Divórcio em Portugal. Ditos e interditos.

Para acabar, comentaria apenas que hoje em dia não há praticamente adultério: as pessoas vivem juntas, não casam, amam-se, mas também, pela calada da noite, têm as suas aventuras que não contam a ninguém para não entrar em vida de bordel. No meu caso, ai deus! Se quem amo me troca por outro, a vida acaba. Especialmente se o adultério é cometido pela mulher que amo, metáfora de pedido de fidelidade se nós amamos também.

A libido comanda o corpo e a mente. Karolus Wojtila sabia-o, mas, com essa sua bondade, falava imenso com o pecador e escrevia encíclicas. A vida a dois é complexa, especialmente se é estrita, como os islâmicos e como os que tomam conta da pureza da sua família. No meu ver, o adultério, do tipo que for, não tem perdão da divindade nem dos grupos sociais que tomam partido por ele, ou por ela ou defendem esse terceiro….

Adultério, para quê se ama? Juntos riem? Juntos brincam? Juntos amam?.

É preciso uma nova patrística… e um amor com libido activa…

Raul Iturra
Fev.2011