terça-feira, 29 de março de 2011

A doçura da ternura que acaba em amor

I Will Always Love YouImage via Wikipedia
António Campos

a doçura da ternura que pode acabar em amor e paixão

Falar de amor, não é um assunto simples. Especialmente por existirem várias espécies de afectividade entre as pessoas de diversas gerações e de diversas idades. Nada simples, também pelas diversas hierarquias de sentimentos pelas que passa o verbo amar, especialmente se um casal vive junto através do tempo. Finalmente, é difícil, porque é um sentimento dentro do qual a adrenalina tem um papel importante na actividade de amar.

A palavra amar seria simples, se fosse uma análise sintáctica do conceito. No entanto, estamos a falar de sentimentos: sentir, imprimir, compelir, entregar todo o nosso ser pela pessoa que amamos. Freud definia amor, como um sentimento que existe para além do prazer de se entregar a outra pessoa, não tem dimensões, nem tempo nem cálculo, como analisa no seu livro, de 1920, a ideia de para além do princípio do prazer. Aliás, é a hipótese que intitula o livro. Normalmente, temos um ego que sai de si para se entregar a um outro ego, com a observação sistemática de um outro princípio que observa esse ego ou eu, o de superego ou a consciência de saber que existimos não apenas para nós, mas também para os outros.

Perante esses dois princípios, sendo princípios ideais e sociais que orientam o nosso comportamento, existe um terceiro, como tenho recapitulado noutros textos deste sítio de debate: o elo, que denomina Id, descoberto ao organizar uma teoria para entrar no inconsciente dos seres humanos e vigiar o que é que se pretende com o sentimento de amor. O Id, no meu ver e na minha experiência analítica, existe como um vigilante para que as diversas maneiras de amar sejam orientadas pela ética vigente no tempo da pessoa analisada, as ordens que a sociedade dá para o comportamento intra social e as proibições que Freud tinha procurado na sua análise dos nativos australianos, retirando as suas ideias dos estudos de Émile Durkheim e Marcel Mauss, sem nunca os citar. O resultado dessa análise é apresentado no livro Totem e Tabu, George Routledge, Londres. A versão original é de 1913 em língua húngara, a sua nacionalidade, sendo traduzido para inglês em 1919, sob a sua supervisão. Era já um Freud exilado quem escreve estes textos, o ditador da Alemanha, tinha já entrado na sua terra, que integrava a Hungria desde a fundação do Império Austro-húngaro governada durante séculos, pela família Hohenzollern. Por outras palavras, o que Freud pretendia era descobrir a base consciente, comandada pelo inconsciente, para existir o respeito necessário para o bom convívio entre seres humanos. Como era a moda nesses tempos, foi ao laboratório de experimentação dos cientistas europeus para estudar os neuróticos do seu tempo. Laboratório composto pelos aborígenes (sic), ou seres humanos de menos valor perante os europeus, apesar de, hoje em dia, sabermos que o seu saber, a sua ciência, o seu tratamento das pessoas era simpático e sujeito a normas que raramente eram trespassadas. O problema de Freud, para falar de amor, residia na série de restrições impostas sobre indivíduos de diferentes classes sociais. Era mais um problema económico e de mais-valia, como tenciono provar em vários textos meus, especialmente em dois deles: A economia deriva da religião, 2003, Afrontamento, Porto; e O presente, essa grande mentira social. A reciprocidade com mais-valia, 2008, Afrontamento, Porto.

Conforme Freud, a paixão é a atracção sexual governada pela libido ou o desejo de prazer do soma, que reside como norma, no super ego, aprendida a partir da infância. Descobre que existe um guardião da paixão, o amor, esse sentimento que perdura além do desejo do prazer, aprendido também desde pequenos pelos seres humanos e é consciente e reside no ego ou eu como princípio normativo de comportamento de que se entrega a outro por amor, sem nada pedir em troca. Se esse sentimento de entrega passa a ser paixão, aparece uma disfunção entre os que dizem amar-se. O caso contrário é também um labirinto: quem apenas sente amor, com a passagem do tempo esse amor passa a ser atracção libidinal. Foi Malinowski, em 1927, no seu livro Sex and Repression in Savage Societies, Routledge and Kegan Paul, Londres, versão luso brasileira de Vozes, Petrópolis, 1973, quem contradiz Freud e debate com ele por meio de publicações, sobre amor e paixão. Acrescenta à teoria de Freud que a paixão faz parte do amor, como está estatuído pelas formas de acasalar pessoas de diferentes clãs, como a lei dos Massim, por ele estudada durante vinte anos, manda. Uma lei não escrita, mas costumeira. Sustenta a hipótese provada, de não existir nem incesto nem tabu, apenas organizações de relações entre pessoas de diferentes clãs. A paixão começa desde muito cedo entre as crianças Massim, que, já púberes, começam a formar o seu grupo doméstico que tem história, que tem tradições, que está envolvido em mitos transferidos de geração em geração, por meio de histórias sempre repetidas aos mais novos, e em ritos que marcam a entrada na idade de reprodução.

Acrescenta Malinowski nos seus três livros sobre sexualidade primitiva, que o incesto atrapalha as pessoas pela sua proibição, sendo a proximidade familiar europeia a que acorda a libido entre parentes consanguíneos, donde o incesto causa a neurose estudada pelos analistas europeus que nunca tinham pisado o terreno das pessoas analisadas para entenderem as diferentes formas de amor. Não há neuroses entre os Massim, como também entre os Baruta estudadas por Maurice Godelier em 1970-81, como se pode entender através do livro editado pela Fayard, Paris, 1981: La production des Grandes hommes. Pouvoir et domination masculine chez les Baruya de Nouvelle-Guinée. Livro que, como tenho referido noutros textos, nunca li, de tanto ouvir a história e analisar com ele os hábitos e costumes Baruya: o importante são os homens e a guerra, a mulher apenas existe para ter filhos com o jovem que iniciou a vida sexual do seu irmão.

O interessante é que os que procuram rasgos neuróticos entre os europeus, procuram-nos entre pessoas que amaram e abusaram de crianças da mesma família consanguínea. O arrependimento e a dor, faz deles pessoas fora de si, que quase não conseguem pensar, apenas procurar satisfação da sua libido, acordada pela proximidade de pessoas novas e lindas dentro do seu grupo doméstico. Resultado: crime, felonia, tribuna, julgamento e um Código de Processo Penal de 1856 em Portugal, actualizado por causa de novos crimes como a pedofilia, facto existente em Portugal e em toda a Europa durante séculos, sendo punido apenas a partir de 1998, ao ser descoberto este comportamento entre docentes e discente em internatos para pessoas com menos recursos como a Casa Pia, existente desde o Século XVII, ou em internatos para ricos, regidos por sacerdotes católicos que vivem em celibato, que desrespeitam o seu Id, por causa do poder que têm. Hoje em dia, toda essa liberdade promíscua acabou.

Entre os denominados povos primitivos, o incesto não é possível, por causa do tipo de grupo doméstico que existe. Desde muita nova, uma rapariga deve casar com um homem de diferente clã, que toma conta dela e dos seus descendentes, porque são filhos da mulher (autoridade matriarcal), e do irmão da mãe, sítio a que devem aceder os rapazes treinados pelo irmão da mãe em idade púbere. Ou, como entre os Tallensi, mencionados por mim ontem neste sítio de debate, o acasalamento deve ser entre os denominados primos cruzados: o filho da irmã mais velha do seu grupo doméstico, está comprometido para se acasalar com a filha de um dos irmãos mais novos.

Os nossos hábitos são diferentes e a paixão e o amor apenas são permitidos entre pessoas não parentes entre si, ou entre pessoas de parentesco distante, ainda que consanguíneos, como tenho observado entre pessoas do clã Picunche que habitam na cordilheira dos Andes, entre a Argentina e o Chile, matrimónios de conveniência para juntar troços pequenos de terra, parte da sua herança, e formar assim propriedades de maior tamanho. Entre este grupo existe, embora seja condenado, o abuso infantil por adultos da família. Mas, como nos outros grupos referidos, não é pedofilia, apenas iniciação aos hábitos e deveres dos seres humanos masculinos.

Onde fica o amor, porém? É um sentimento que induz a aproximar, a proteger ou a conservar a pessoa pela qual se sente afeição ou atração; grande afeição ou afinidade forte por outra pessoa (ex.: amor filial, amor materno), ou sentimento intenso de atração entre duas pessoas ou paixão. São os nossos hábitos que devemos respeitar. Amor é a entrega de si a outra ou outro, hoje em dia é preciso distinguir pelas novas formas de matrimónio entre pessoas do mesmo sexo, aprovada este ano pela Assembleia da República e referendado pelo Presidente da República. Matrimónio que nem todos aprovam, mas que existe por força da atracção e da lei. Amor é uma força da natureza que mata a paixão para juntar duas pessoas no sentimento de afinidade com outra pessoa. Eis porque digo que a paixão mata o amor, enquanto o amor arrebita a paixão.

de Raul Iturra
Nov2010

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sexta-feira, 25 de março de 2011

A grande ofensiva do capitalismo financeiro global (1)

Ronald Reagan and Nancy Reagan greet Prime Min...Image via Wikipedia



António Campos


Desde o início dos anos 80 que se assiste a um fortíssimo ataque do grande capital financeiro contra o trabalho. Nos últimos 20 anos, a expansão do crédito conseguiu disfarçar os seus efeitos, mas originou diversas “bolhas”, cujo rebentamento está no cerne da actual crise. Como nem tudo é mau, esta teve, pelo menos, o condão de colocar a nu essa ofensiva, cujos efeitos começamos a sentir na pele. Como chegámos até aqui?

A ruptura do consenso keynesiano do pós-guerra e a sua substituição pelo consenso de Washington, pedra angular da globalização neoliberal, marca esse ataque do capital contra o trabalho a partir da década de 80. Os choques petrolíferos da década anterior deixaram de permitir que o grande capital ocidental mantivesse as margens de lucro que conseguia obter até então e que lhe permitiam a “magnanimidade” de aceitar a redistribuição de alguma riqueza pelo trabalho, com a vantagem de contribuir, igualmente, para a manutenção da paz social e retirar base de apoio aos partidos comunistas e a outros grupos de esquerda. Ao mesmo tempo, a incapacidade de responder aos anseios de liberdade dos seus povos e à mudança do paradigma tecnológico prenunciava a queda do bloco “comunista”. A democracia política e as liberdades cívicas (por oposição ao totalitarismo do “outro lado”) e o Estado-providência (que possibilitou uma vida digna à esmagadora maioria da população) foram, em minha opinião, os grandes responsáveis pelo triunfo do bloco capitalista na “guerra fria”.

Porém, com o sistema alternativo derrubado e desacreditado, aqueles passam a ser vistos como empecilhos pelo capital internacional, que acelera o seu plano de recuperar as margens de lucro anteriores, através da contenção salarial e da retirada de direitos aos trabalhadores. A ideia é generalizar os modelos que Reagan e Thatcher aplicaram nos seus países no início dos anos 80. Para tornar possível esse objectivo, convence os governos a assinar os acordos do GATT/OMC, que liberalizam não apenas grande parte do comércio mundial mas também os movimentos de capitais. Isso representou um golpe terrível no poder dos Estados nacionais (e mesmo de organizações regionais como a UE), pois, enquanto a sua soberania se restringe aos seus territórios, o grande capital (em especial, o financeiro) passou a poder movimentar-se livremente por todo o mundo, ou seja, desterritorializou-se e tornou-se global. Consequentemente, operou-se uma financeirização da economia mundial, com vastos movimentos de capitais de carácter especulativo sem tradução na economia real. Ao mesmo tempo, verificam-se as megafusões de empresas e participações cruzadas entre estas, igualmente com forte presença do sector financeiro. Esta transnacionalização do capital vai minar um dos fundamentos do Estado-providência europeu: a redistribuição por via fiscal, grande fonte do seu financiamento. Por sua vez, vai facilitar a deslocalização de empresas para países com custos salariais, fiscais e ambientais mais baixos.

A adesão da China à OMC constitui a “cereja no bolo”. Detendo um quinto da Humanidade e dirigida com “mão-de-ferro” pelo partido comunista, mas desejosa de se integrar na economia mundial, não só representa um dos mercados com maior margem de progressão mas também dispõe de uma mão-de-obra abundante, barata e sem quaisquer direitos políticos e/ou laborais. Além disso, possui uma legislação ambiental e de segurança extremamente permissiva. Ironicamente, a China “comunista” torna-se o paraíso, não dos trabalhadores, mas do capital. A maioria das grandes empresas deslocaliza para lá as fases menos nobres da produção, acelerando o desemprego no mundo desenvolvido. Estão, assim, criadas as condições para a ruptura do contrato social do pós-guerra: no ocidente, os trabalhadores, ou aceitam reduzir salários e perder regalias, ou vão para o desemprego.

Jorge Martins
Nov.2010

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terça-feira, 22 de março de 2011

A mente do século XX e a genialidade do ensaio

Acto fundacional UPD. Fernando Savater.Image via Wikipedia




António Campos


O século XX, dito esquematicamente, foi dominado pela emergência de um conjunto de paradigmas que, em muitos casos ou situações, chegaram ao nosso tempo: a velocidade e a trepidação decorrentes dos transportes (a velocidade não só se extinguiu como foi transferida para o armamento e para as comunicações); a ascensão do feminismo (a condição da mulher, pelo nível de consequências, é um dos paradigmas dominantes que vai atravessar os nossos conceitos de família, as classes de consumidores, as atitudes políticas…); a nova era das massas, que marca a chegada das multidões ao voto político e ao consumo; a descoberta da teoria da relatividade, que iria desencadear novos mecanismos científicos; a ampla aceitação que obteve o marxismo, através da popularização dos chamados ideais de esquerda; as correntes filosóficas em torno da tolerância, do diálogo das civilizações e do existencialismo, em que ponto ficaram gigantes do pensamento como o Unamuno, Sartre ou Bertrand Russel. Acrescente-se que foi o século da comunicação, dos direitos humanos, da ecologia, do assassínio em massa e do repúdio das ditaduras.

“A arte do ensaio – ensaios sobre a cultura universal”, por Fernando Savater (Círculo de Leitores e Temas e Debates, 2009) é um livro esplendoroso pela multiplicidade de desafios para que convoca o leitor, a propósito de comentários breves acerca de alguns dos mais significativos ensaios que se escreveram no século XX. Savater, que é um agitador cultural e um polemista de eleição, sensibiliza o leitor, logo no prólogo, para a importância do género do ensaio: este é experimentação, indagação provisória, incursão pouco ordenada, o autor é levado por intuições, conjecturas, dirige-se ao leitor como um companheiro e não como uma fonte categórica de sabedoria inatacável. O ensaio encerra a dúvida, não põe em causa que se abram outras portas para além das convicções de quem as expõe com liberdade e ciente da provisoriedade. O ensaísta está no lugar oposto do tratadista. Este é um intelectual que sabe de tudo aquilo de que fala, procura cativar o leitor para uma teoria, não dá margem para rebeldias a não ser, claro está, para uma argumentação que se lhe oponha, em bloco ou na categoria argumentativa. Fernando Savater vai exclusivamente à procura de ensaístas que marcaram o século XX e que se notabilizaram pela exploração audaz nos múltiplos domínios das ciências sociais e humanas e do conhecimento em geral.

Quem organiza uma obra destas não pode iludir afinidades e o autor não esconde a importância que tiveram na sua vida dois ensaístas notabilíssimos: Unamuno e Bertrand Russel. Ambos foram batalhadores, embora tenham seguido itinerários distintos. Unamuno guiava-se pelo sentimento trágico, pelas profundezas da agonia e até pela imortalidade. Era um génio espanhol que não se impressionava com os imperativos religiosos. Quando Unamuno rejeita a morte, o seu gesto não pode ser tomado como um sinal a pedir a vida eterna. Escreve Savater: “Unamuno insiste no facto de que o que apetece é continuar a viver tal como é e como quem é; não quer ser redimido das suas misérias e insuficiências. Da única coisa que aceita ver-se livre é do tédio e do medo da morte, que são ambos consequência directa do falseamento da vida pela obrigação de morrer”. Pode pois perceber-se o gesto impio deste pensador que veio pôr em causa os valores da vida eterna, instalando novos padrões morais, novas relações entre as ciências sociais, o grito de liberdade do homem face a um destino que parecia previamente traçado pela vontade religiosa. Bertrand Russell foi o outro representante da intelectualidade do século que marcou Savater. Russell partiu da matemática e chegou à filosofia.

Foi um dos grandes intelectuais do século XX (recebeu o Prémio Nobel da Literatura pelos seus ensaios, nunca publicou nem poesia nem ficção): pacifista, objector de consciência, anticonformista, depois acérrimo adversário do nazismo, filósofo, polemista contumaz, denunciou crimes, ditaduras intolerâncias, abraçou o ensaio com mordacidade e uma vivacidade intensa. Oiçamo-lo no seu belo discurso de aceitação do Nobel: “Se os homens fossem impelidos pelo seu próprio interesse, o que não acontece, exceptuando-se o caso de alguns santos, a totalidade da raça humana seria cooperante. Não haveria mais guerras, nem mais exércitos, nem mais armadas, nem mais bombas atómicas. Não haveria exércitos de propagandistas utilizados para envenenar as mentes do país A contra o país B, e reciprocamente do país B contra o país A… Tudo isto aconteceria muito rapidamente se os homens desejassem a sua própria felicidade como desejam a miséria dos seus vizinhos. Contudo, perguntar-me-eis: Qual é a utilidade de todos esses sonhos utópicos? Os moralistas já se ocupam deles para que não nos tornemos totalmente egoístas, e até não o sermos o milénio será impossível”.

O século XX viu desabrochar inúmeros ramos das ciências sociais e humanas. Viu intelectuais defender o nacionalismo e outros a exaltar a universalidade. Graças a sucessivos saltos tecnológicos, foi possível encontrar fórmulas que conduzissem à democratização do bem-estar. Promoveu-se a terceira cultura, generalizou-se o entretenimento, tirando uma ínfima parcela da humanidade, toda a gente está de acordo sobre os direitos humanos, o acesso à saúde, a educação básica gratuita, a segurança social sobretudo para quem mais precisa. Com a globalização, entreteceram-se culturas, bens e serviços, multiplicou-se o número de turistas. Os ensaístas debruçaram-se sobre a paz, o mal-estar da civilização, a condição humana, a doença mental, o acaso e a necessidade, o sagrado, o papel dos intelectuais, a nave espacial Terra. Savater não fala de tudo isto, limita-se a elogiar a arte do ensaio pelas possibilidades que nos confere estarmos todos muito mais próximos dos melhores criadores do conhecimento, mais aptos a comparar e a saborear os efeitos da complexidade sobre a nossa existência e a dos outros. Porquê esses ensaios são sempre peças abertas, “não representam a última palavra sobre os temas tratados, mas a primeira e uma nova forma de focar questões primordiais da época contemporânea”.

Beja Santos
Nov.2010

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quinta-feira, 17 de março de 2011

A materialidade dos afectos

Child DevelopmentImage via Wikipedia

António Campos


a afectividade é erótica, porém material

As crianças observam-nos. As crianças sabem de nós. As crianças descortinam-nos. Esses pequenos seres entre os 12 meses e os cinco anos, imitam-nos. Procuram em nós uma satisfação sentimental das suas emoções e colmatar os seus desejos de uma resposta simpática no difícil processo de amar. Um processo que requer um parceiro, esse processo de ida e volta, conjugado no verbo amar: de simpatia, de antipatia, com raiva, ou, simplesmente, não amar. Em síntese, uma complexidade entre as relações baseadas nas emoções, nos sentimentos e na intimidade do desejo. É esse descortinar dos nossos afectos que permite aos mais novos aprender a ser adultos, com bem ou mal-estar na cultura, como referia o nosso mestre Freud no seu texto de 1930, ao desenhar aberrações sexuais do seu tempo. Os mais novos escrutinam o nosso agir, decidem se é bom ou mau para eles e não vão a votos, é um observar sem democracia.

 Ditadura dos mais novos que obriga os mais velhos, a um comportamento adequado aos seus sentimentos definidos pela epistemologia cultural, que os mais novos desconhecem. Há uma procura de empatia simpática, a mais primária das emoções, referidas no meu livro de 2000 – O saber sexual da infância e no anterior de 1998, Como era quando não era o que sou ou O Crescimento das Crianças, para os quais remeto ao leitor, por falta de espaço. Ditadura, essa, referida ao adulto como uma entidade que ensina, predica, pratica sentimentos agradáveis e é observada com toda a atenção. Observação, capacidade baseada na existência de uma expressão material dentro da qual os sentimentos adquirem uma materialidade que possibilita o descortinar de sentimentos. Materialidade emotiva, como e porquê? A primeira ideia que me ocorre, é a da relação adulto e criança, esse carinho imenso que leva ao contacto físico, no dormir juntos, esse sadio relacionamentos de beijos, abraços, apertos que, eventualmente, poderia levar ao prazer do orgasmo ao mais novo na sua natural procura de afecto. Ou do mais velho, facto delituoso definido pela lei como pedofilia.

 Esta materialidade também acontece em outras sociedades, tal como a referida pelo antropólogo Maurice Godelier entre os Baruya da Nove Guiné, no seu texto de 1981. Baruya ou etnia que pensa de forma analógica que a reprodução é possível quando acontece nos factos: tem-se sémen se é transferido entre jovens portadores e dado a beber ao pré – púbere, materialmente incutido para a continuação social da vida na História. O jovem Baruya mais velho deve casar com a irmã do iniciado, mulher que passa a ser a mãe dos seus filhos. Esses beijos e abraços entre irmãos de qualquer idade, são denominados na nossa lei europeia delito de incesto, caso acabe, como tenho observado no meu trabalho de campo, em prazer erótico. Prazer que em outras sociedades, não é delito. Refere Bronislaw Malinowski, o fundador da Antropologia Social Britânica, no seu texto de 1928, que entre os grupos sociais da Melanésia, não há incesto se acontecerem relações eróticas entre parentes de clãs diferentes: os filhos o são apenas da mãe, e o homem, parceiro da mulher, necessariamente de outro clã. Não existe pai. Porém, não incesto. Para nós, o incesto é punido porque é corrente o seu acontecimento no processo da prolongada permanência sob o mesmo tecto de pessoas de família consanguínea.

Ocorre-me também pensar em outra materialidade de afectos descortinados pelas crianças, como a masturbação ou formas de auto erotismo, retiradas de qualquer espécie de código falado em família, notícias comentadas, da catequese e a confissão. Conversas que levam a perguntar se a criança tem “acarinhado as partes proibida do corpo“, ou definições de catecismos anteriores ao actual, sobre debilidade mental consequência do auto erotismo. Costume social que intima a fazer parte do fair-play ou divertimento erótico entre adultos que a criança pode não ver, mas sabe que a porta do quarto, sempre aberta, ocasionalmente se fecha e fica proibido de entrar. Relação sexual íntima que passa a ser social porque aos adultos fala, sem explicar, em conversas de mesa. Diferente das formas referidas por Freud em 1913 entre os nativos australianos, ou por Georges Devereux ao falar dos nativos da Europa em 1932 ao compara-los com os Mohave dos EUA em 1961. Ritos organizados por adultos do mesmo sexo, como transferência dos mais novos para uma nova hierarquia social.

 Baseada, necessariamente, na sexualidade. Conversa ausente da vida familiar europeia. Ou, como Malinowski diz no texto invocado, ao perguntar aos ilhéus do Arquipélago Kiriwina se acontecia fellatio, amor entre o mesmo sexo, relações físicas entre adultos e crianças, os habitantes riram por causa do autor não saber do jogo sexual entre parceiros de diferentes clãs, no primeiro caso, o do carinho procurado entre amigos, no segundo caso, e a iniciação ritual para a vida adulta, no terceiro. Comportamento da prática material de sentimentos que entre todos nós existe e que tem lançado vários Códigos orientadores da conduta sexual, individual e em grupo, como os Dez Mandamentos, a Lei Hebraica, as XII Tábuas da Lei Romana, do Código de Justiniano que legislou na Europa entre 527 e 1453 até causarem guerras entre Estados por causa de se avassalar ou não, ao Vaticano. Disputas que levaram ao Direito Canónico a governar Europa, até á separação do Continente entre várias alternativas cristãs para o entendimento do real. Direito, berço da lei civil napoleónica que hoje orienta as nossa vidas. é possível apreciar o elo de toda legislação vigente, no controlo da sexualidade. O processo da sua materialidade não tem pensamento, a paixão carece da racionalidade que a teoria económica desenvolveu recentemente.

Ou porque essa racionalidade não prevalece no campo da paixão. A ditadura dos mais novos é necessária para que adultos de emotividade mal desenvolvida, ajustem os seus sentimentos á éticos culturais. A geração que substitua procure esse único valor possível: amor oferecido, amor correspondido. Comportamento amadurecido capaz de entender as inúmeras mudanças da expressão material da afectividade na cronologia da vida. A ditadura dos mais novos é o grito de batalha que procura verdade, amor, definições do que não vê e não compreende. A adolescência, essa etapa difícil da vida, procura respostas empáticas e não apenas: “isso não é contigo”, ou análises de pais em desesperada procura de Françoise Dolto, Alice Miller e Daniel Sampaio. Derradeira lição que recebe um ser humano ao passar da juventude á paternidade. Paternidade que devia conspirar com a infância e escrever o livro da vida que tem por título a materialidade dos afectos.

Retirado do meu livro de 2008: A ilusão de sermos pais.

Raul Iturra
Nov.2010


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segunda-feira, 14 de março de 2011

A desobediência civil

SITGES, SPAIN - FEBRUARY 07:  The opening of t...Image by Getty Images via @daylife



António Campos


Algumas pessoas argumentam que a violação da lei nunca se pode justificar: se não estamos satisfeitos com a lei, devemos tentar mudá-la através dos meios legais, como as campanhas, a redacção de cartas, etc. Mas há casos em que tais protestos legais são completamente inúteis. Há uma tradição de violação da lei em tais circunstâncias conhecida por desobediência civil. A ocasião para a desobediência civil emerge quando as pessoas descobrem que lhes é pedido que obedeçam a leis ou a políticas governamentais que consideram injustas.

A desobediência civil trouxe mudanças importantes no direito e na governação. Um exemplo famoso é o movimento das sufragistas britânicas, que conseguiu publicitar o seu objectivo de dar o voto às mulheres através de uma campanha de desobediência civil pública que incluía o auto-acorrentamento das manifestantes. A emancipação limitada foi finalmente alcançada em 1918, quando foi permitido o voto às mulheres com mais de 30 anos, em parte devido ao impacte da primeira guerra mundial. No entanto, o movimento das sufragistas desempenhou um papel significativo na mudança da lei injusta que impedia as mulheres de participar em eleições supostamente democráticas.

Mahatma Gandi e Martin Luther King foram ambos defensores apaixonados da desobediência civil. Gandi influenciou decisivamente a independência indiana através do protesto ilegal não violento, que acacbou por conduzir ao fim da soberania britânica na Índia; o desafio de Martin Luther King ao preconceito racial através de métodos análogos ajudou a garantir direitos civis básicos para os Negros americanos nos estados americanos do Sul.

Outro exemplo de desobediência civil está patente na recusa de alguns americanos em participarem na Guerra do Vietname, apesar de serem requisitados pelo governo. Alguns americanos justificaram esta atitude afirmando acreditar que matar é moralmente errado, pensando por isso que era mais importante violar a lei do que lutar e possivelmente matar outros seres humanos. Outros havia que não objectavam a todas as guerras, mas sentiam que a guerra do Vietname era injusta e que sujeitava os civis a grandes riscos, sem nenhuma boa razão. A dimensão da oposição à guerra do Vietname acabou por conduzir os Estados Unidos à retirada. Sem dúvida que a violação pública da lei aumentou esta oposição.

A desobediência civil corresponde a uma tradição de violação não violenta e pública da lei, concebida para chamar a atenção para leis ou políticas injustas. Os que agem nesta tradição de desobediência civil não violam a lei unicamente para seu benefício pessoal; fazem-no para chamar a atenção para uma lei injusta ou para uma política moralmente objectável e para publicitar ao máximo a sua causa. Por isso é que estes protestos ocorrem habitualmente em lugares públicos, de preferência na presença de jornalistas, fotógrafos e câmaras de televisão. Por exemplo, um americano chamado para a guerra que deitasse fora a sua convocatória durante a Guerra do Vietname, escondendo-se de seguida do exército só por ter medo de ir para a guerra e por não querer morrer, não estaria a executar um acto de desobediência civil. Seria um acto de autopreservação. Se agisse da mesma maneira, não por causa da sua segurança pessoal, mas por motivos morais, mas que no entanto o fizesse em segredo, não tornando público este caso de nenhuma forma, continuaria a não poder considerar-se um acto de desobediência civil. Pelo contrário, outro americano convocado para a guerra que quimasse a sua convocatória em público perante câmaras de televisão, comunicando ao mesmo tempo à imprensa as razões que o levavam a pensar que o envolvimento americano no Vietname era imoral, estaria a cometer um acto de desobediência civil.

O objectivo da desobediência civil é, em última análise, mudar leis e políticas particulares, e não arruinar completamente o estado de direito. Os que agem na tradição da desobediência civil evitam geralmente todos os tipos de violência, não apenas porque pode arruinar a sua causa ao encorajar a retaliação, conduzindo assim a um agravamento do conflito, mas sobretudo porque a sua justificação para violar a lei é moral, e a maior parte dos princípios morais só permite que se prejudique outras pessoas em situações extremas, tal como quando somos atacados e temos de nos defender.

Os terroristas ou os combatentes pela liberdade ( a maneira como lhes chamamos depende da simpatia que temos pelos sues objectivos) usam actos violentos com fins políticos. Tal como os que enveredam por actos de desobediência civil, também eles desejam mudar os estado de coisas existente, não para benefícios privados, mas para o bem geral, tal como este é por eles concebido; mas diferem nos métodos que estão preparados para usar para originar a mudança desejada.

Nigel Warburton
Nov.2010

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quinta-feira, 10 de março de 2011

A era da precariedade

PrecariousnessImage by kafka4prez via Flickr



António Campos


De repente, a precariedade chegou à generalidade dos meios de comunicação social, ocupando as manchetes e o horário nobre. O rastilho que impôs a sua visibilidade foi um encontro. De um lado estava uma canção, Que parva que eu sou, dos Deolinda, que parece um álbum de fotografias. Mas, em vez de registar momentos de felicidade, esse álbum mostra-nos imagens do pior que está a acontecer na vida de uma juventude que só conhece, ou só perspectiva, o trabalho precário. Entre o sarcasmo e a auto-ironia, a canção regista a aceitação passiva da situação, mas também a insuportabilidade e a revolta. Do outro lado estava um público que imediatamente reconheceu essa condição como sendo a sua. Apropriou-se da canção de forma política, isto é, como veículo de denúncia e de protesto, e fê-la percorrer as redes sociais, entrar pelo debate público e sair para a rua, em protesto marcado para 12 de Março. Saberiam eles que estavam a suscitar a identificação, directa e indirecta, de tantas outras gerações, de tantos outros trabalhadores, mais ou menos escolarizados?

O fenómeno da precariedade laboral, que a partir do mundo do trabalho metastiza todo o viver com incerteza e insegurança, não é novo. Começou na década de 1980 [1], quando o projecto neoliberal se lançou ao ataque de direitos associados ao mundo do trabalho, direitos esses que vinham sendo decisivos na eliminação de desigualdades socioeconómicas e na construção de sociedades mais decentes.

Dessa recomposição do «mercado de trabalho», desde então empreendida, fizeram parte a flexibilização da «oferta» e da «procura» de mão-de-obra; a alteração de dispositivos legais que traduziam formas de protecção e dignificação do trabalho; e as múltiplas desregulações dos contratos que, com a ameaça do desemprego, facilitaram diminuições de vencimentos, o aumento de ritmos e tempos de trabalho, a extensão de contratos a termo, a aceitação de trabalho a tempo parcial e outros vínculos precários.

O aumento da precariedade, da exploração e das desigualdades − que a crise e a austeridade ainda vêm agravar − afecta quem está hoje a sair das universidades, mas já afectou quem há vinte anos, senão mais, começou a receber as primeiras bolsas de investigação ou a «passar recibos verdes» e nunca mais abandonou os vínculos precários. Vinte anos depois, muitos desses precários têm já filhos que não sabem o que é ter pais com direito a férias, subsídios de doença ou de desemprego, tal como têm pais cujas legítimas expectativas de tempo de reforma foram já muito «precarizadas» pela ajuda (financeira e não só) que os filhos são forçados a pedir-lhes. Outros têm pais que nem sequer chegaram a ter reformas minimamente decentes − e não têm como os ajudar. Décadas passadas, a precariedade afecta também aqueles que, aproximando-se da reforma, tenham passado por experiências de desemprego ou tenham tido carreiras contributivas tão precárias que nem podem sonhar com a aposentação.

A precarização do emprego, fenómeno comum a todos os países da União Europeia mesmo que tenha especial incidência em Portugal, não é de facto um problema que atinja apenas uma geração. Os dados hoje comprovam-no. Basta olhar, por exemplo, para a evolução do trabalho temporário que, entre 1995 e 2008, cresceu em todas as classes etárias. Mas a tendência geral de aumento é acompanhada de um outro padrão: a da manutenção da classe mais jovem, entre os 15-24 anos, como a que apresenta os valores mais elevados, seguindo-se a dos 25-49 anos e, menos afectada, a dos 50-64 [2].

Todas estas situações, do desemprego à precariedade e ao salário, tendem a agravar-se quando o nível de escolarização é menor. Isto é particularmente grave se pensarmos que Portugal é um país que tem ainda reduzidas taxas de escolarização superior e que tem vindo a assistir, na década posterior ao aumento das propinas no ensino superior e agora com a crise (e na ausência de alterações significativas no apoio escolar), a uma preocupante reelitização da frequência desses graus de ensino. A maior visibilidade que a era da precariedade hoje vai tendo no espaço público e mediático, transbordando dos âmbitos associativos e sindicais, decorre também, sem dúvida, da extensão e aprofundamento do fenómeno, da consciência de que ele não é passageiro. Mas com a visibilidade pública torna-se também um campo em disputa.

As narrativas que apostam na quebra de solidariedades intergeracionais ou interprofissionais vão fazer tudo o que estiver ao seu alcance para dizer que mais vale a instabilidade da precariedade do que a estabilidade do desemprego; para opor os direitos dos mais velhos à flexibilidade dos mais novos; para fazer apelos paternalistas ao realismo assumindo culpas próprias nos ultrapassados utopismos − para onde atiram toda a geração de direitos socioeconómicos que o Estado social e os serviços públicos devem assegurar.

As narrativas que consideram que a precariedade, bem como o desemprego, são formas moralmente inaceitáveis, e além disso economicamente insustentáveis, de organizar as sociedades têm de desmontar os discursos que apenas apresentam «soluções» individuais para o emprego precário (da cenoura dos casos de sucesso ao bastão da falta de «boa atitude» ou «pró-actividade») e desenvolver formas de actuação colectiva que possam trazer transformações sociais. Nesse sentido, abrir brechas na era da precariedade terá de passar pela articulação de lutas comuns, da defesa dos serviços públicos e do emprego até todos os combates pela igualdade. Março anuncia-se como um bom mês para essa articulação: depois do protesto contra a precariedade a 12 vem o protesto contra a austeridade e o desemprego, dia 19.

[1] Cf. José Nuno Matos, «Precariado: de condicionado a condicionante político», Le Monde diplomatique − edição portuguesa, Setembro de 2007. O tema da precariedade vem sendo há anos regularmente tratado nestas páginas. Alguns artigos estão disponíveis em http://pt.mondediplo.com.
[2] Ver Renato Carmo (org.), Desigualdades Sociais 2010. Estudos e indicadores, Mundos Sociais, Lisboa, 2010, p. 191 ss.

Mar.7.2011

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quinta-feira, 3 de março de 2011

O sofrimento económico

In the Name of SufferingImage via Wikipedia



António Campos


No primeiro artigo desta série defendi que a pobreza não pode ser definida só pelo rendimento ou pelo património, mas inclui também o estatuto social. No segundo artigo, aventei alguns critérios para a definição de um nível de desigualdade económica a partir do qual ela se torne socialmente intolerável. Propositadamente, não declarei que preferia um destes critérios a quaisquer outros, uma vez que o grau de tolerância social, quer à pobreza, quer à desigualdade, varia de sociedade para sociedade e de conjuntura para conjuntura, sem que nunca seja zero e sem que nunca seja ilimitado.

Se a redução da pobreza, medida em termos absolutos e só no aspecto económico, fosse justificação moral ou pragmática suficiente para o modelo neoliberal, então os seus defensores poderiam reclamar vitória- ou melhor, vitórias limitadas e localizadas. Há hoje menos pobres na China do que há trinta anos; em Portugal, a percentagem não mudou durante este período, mas mudou a noção de pobreza: um trabalhador pobre dos nossos dias tem mais acesso à satisfação das suas necessidades básicas do que um trabalhador pobre há trinta anos (embora também tenha, provavelmente, e devido à menor valorização das suas capacidades pessoais, um estatuto social mais baixo). Para que a parte mais pobre duma população saia da pobreza não basta, portanto, que num dado período o seu rendimento disponível aumente em termos absolutos: é necessário que esse aumento seja pelo menos proporcional ao avanço tecnológico e à maior produtividade que dele resulta; é necessário que o aumento de rendimento não seja anulado por uma degradação no estatuto social; e é necessário que o acesso a bens civilizacionais absolutos como o lazer e a segurança económica não seja restringido com base na vontade política de uns poucos. Em suma, é necessário que o aumento do rendimento não seja acompanhado dum aumento do sofrimento económico.

O sofrimento económico não afecta só a minoria dos mais pobres, mas também muitas pessoas cujo rendimento absoluto é médio ou alto. Traduz-se na precariedade do trabalho e do rendimento, nos horários de trabalho incompatíveis com a vida familiar, na sujeição a métodos de gestão neo-tayloristas, na tortura psicológica no local de trabalho (com origem, muitas vezes, não em vícios de personalidade dos quadros intermédios que a praticam, mas em procedimentos cientificamente estudados e decididos ao mais alto nível nas organizações), no consumo, que não pára de aumentar, de medicamentos anti-depressivos e tranquilizantes.

As vítimas mais visíveis do sofrimento económico são, em Portugal, a geração mil-eurista; os trabalhadores precários; as pessoas que desejam ter filhos e não os têm porque o próprio facto de os terem reduziria a probabilidade de os poderem sustentar no futuro; os que têm dois ou três empregos para sobreviver; os que trabalham de graça para além do horário contratado; os que se vêem obrigados a escolher entre um mau emprego e emprego nenhum; os que sacrificam contra sua vontade as suas aspirações, os seus afectos, as suas idiossincrasias, a sua individualidade, a sua dignidade a um trabalho concebido, não como parte da vida, mas como ele próprio a vida. São todos aqueles que, não podendo fazer greve ao trabalho, fazem greve à parentalidade, à família e à intervenção cívica e política. São, em todo o mundo, os que não têm acesso ao trabalho; e são, de entre os que lhe têm acesso, aquela imensa maioria a quem o trabalho não dignifica, mas degrada.

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JOSÉ LUIZ SARMENTO
Out.2010

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terça-feira, 1 de março de 2011

A infância da criança

Redheaded child mesmerized.Image via Wikipedia



António Campos


toda criança pasa a adulto sem saber o que se espera dela

Dentro das várias definições de infância e criança usadas nos meus textos, há duas que me satisfazem. Criança, é um ser humano no início do seu desenvolvimento fisiológico e social que depende dos seus adultos na alimentação, nos sentimentos, no carinho, no vocabulário e no abrir da sua imaginação para entender como se desenvolve o mundo. Adultos que podem ser os pais, os tutores ou um conselho de família. Infância é a pessoa que nasce, cresce, aprende a vida intra social. Na cronologia da vida, essa criança passa a etapa da infância. Conceito que transcorre, idealmente, desde a nascença até à idade púbere, idade em que o indivíduo se torna fisiologicamente apto para a procriação de outros seres humanos. Atenção, referi reprodução fisiológica. Será que é adequado ter cromossomas só para reproduzir seres humanos? Em todos os meus textos tenho dito que isso não é suficiente. Aliás, a própria História assim parece provar.

 Uma palavra cheia de distinções na cronologia do tempo e conforme seja a hierarquia social. Criança, em consequência, não é um conceito biológico, é muito mais, é um conceito social. Motivo pelo qual o meu amigo e colega na cátedra do Collège de France em Paris, Pierre Bourdieu, o sábio dos sábios em ciências do homem, nunca quis estudar o pré púbere, como poucos de nós temos feito. Os cientistas, excepto os analistas clínicos, têm experimentado evitar a análise da infância. Muitos cientistas, envolvem a criança dentro das relações sociais, centrando, no entanto, os seus estudos nas relações. Poucos Antropólogos começam a análise social a partir dos mais novos. Normalmente, estudam instituições, como a família ou os amigos, ou seja as interacções sociais.

Maurice Godelier em 1981, editou um livro pela Fayard, La Reproduction des Grandes Hommes para analisar a passagem de criança a adulto, como David Herdt em 1987, entre os Sambia da Nova Guiné, ou eu próprio, entre os Picunche, clã da Nação Mapuche que habita na área Sul da Cordilheira dos Andes. Assistir à passagem de criança para a infância, é duro. Envolve elementos sexuais para provar, ao mais novo, que um dia terá esperma para multiplicar os membros da população. Para tal, é preciso observar as relações eróticas entre um púbere e uma criança, que oferece o seu esperma, antes de casar com a irmã do iniciado.

O ritual denomina-se fellatio, e quem é alimentado pelo púbere é quem ainda não entrou numa mulher, permanece com a criança até ser adulto, por outras palavras, até que ele próprio produza sémen. Ritual praticado entre os Baruya, os Sambia e os Picunche. Quando apresentei o meu livro do ano 2000: O saber sexual das crianças. Desejo-te porque te amo, Afrontamento, Porto, o auditório ficou escandalizado.

Escandalizado não sei porquê. Era um ritual de iniciação masculina, habitual e costumeiro entre os três povos referidos, fazer de uma criança um homem ao longo dos anos do ritual. A vida entre estas três etnias, está centrada nos homens. As mulheres são consideradas como não pessoas e moram todas juntas na casa das mulheres, excepto entre os Picunche: o varão transita entre as casas das suas sete mulheres, conforme o trabalho que deva ser feito ou orientado.

Devo confessar que eu também fiquei surpreendido, ao viver na casa dos homens entre os Picunche e observar o que observei. A prova final é uma masturbação colectiva entre as já não crianças, mas infantes, acompanhados pelo rapaz que lhes deu o seu sémen, que, acabado o ritual, casa com a irmã do seu iniciado, à qual acede apenas para engendrar filhos, continuando a morar na casa dos homens tendo o seu iniciador como companheiro. Não é homossexualidade, é um rito de passagem que, entre nós, também se pratica, não como cerimónia, mas como felonia, ao correr dinheiro entre a criança e, neste caso, o seu violador. É apenas pensar no caso da casa Pia.

A criança, passa a adulto, a seguir à fellatio ritual. Entre nós, depois de namorar uma rapariga que é a nossa companheira, mesmo que o seja pela via do aparecimento de filhos.
Falar de criança e a sua passagem ritual a adulto, é, por vezes, difícil de relatar sem ofender…

Raul Iturra
Nov.2010

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