sexta-feira, 30 de maio de 2014

A miragem mexicana




«O elogio ao modelo liberal mexicano é ideológico e cego. Resultados sociais e econômicos são muito piores que no Brasil “intervencionista”.

Poucas pessoas inteligentes – fora da Inglaterra – ainda prestam atenção nas notícias da monarquia inglesa e da sua família real, em pleno século XXI. Mas o mesmo não se pode dizer da City, centro financeiro de Londres, e dos seus dois principais órgãos de imprensa e divulgação – o Financial Times, e o The Economist – que seguem tendo importância decisiva na formação das opiniões e dos consensos ideológicos entre as elites liberais e conservadoras do mundo. A escolha dos seus temas e o uso de sua linguagem nunca é casual. Como no caso recente do seu entusiasmo pelo México e seu modelo de desenvolvimento liberal – e seu ataque, cada vez mais estridente, ao “intervencionismo” da economia brasileira. Uma tomada de posição compreensível do ponto de vista ideológico, mas que não vem sendo confirmada pelos fatos.

Em 1994, o México assinou o Tratado de Livre Comercio da América do Norte (Nafta), junto com os EUA e Canadá. Nos últimos 20 anos, tem sido absolutamente fiel ao livre-cambismo, incluindo sua adesão a Aliança do Pacífico, e à inciativa norte-americana da Parceria Trans-Pacífica – TPP. Por outro lado, nesse mesmo período, o México praticou uma política macroeconômica e financeira rigorosamente ortodoxa – em particular na última década – mantendo inflação baixa, cambio flexível, taxas de juros moderadas e amplo acesso ao crédito. Mesmo assim, depois de duas décadas, o balanço dessa experiência ultraliberal deixa muito a desejar1.

Como era de prever o comercio exterior do país cresceu significativamente no período e passou – em termos absolutos – de 60 bilhões de dólares, em 1994, para US$ 400 bi, em 2013. Mas nesse mesmo período, a economia mexicana teve um crescimento médio anual pífio, de 2,6%, sendo o crescimento per capita de apenas 1,2%. O emprego industrial cresceu de forma setorial e vegetativa, e mesmo nas “maquiladoras”, foi de apenas 20% – algo em torno de 700 mil novos postos de trabalho. A participação dos salários permaneceu em trono de 29% da renda nacional, e a pobreza absoluta da população mexicana aumentou significativamente. Por fim, ao contrário do que havia sido previsto, a economia mexicana não se integrou nas “cadeias globais de produção”. A produtividade média da economia praticamente só cresceu de forma segmentada e vegetativa, e o “investimento direto estrangeiro” (o principal “prêmio” anunciado em troca da abertura da economia) não teve nenhuma alteração significativa.

Esse balanço fica ainda mais decepcionante quando se compara o desempenho do “modelo mexicano”, com o “modelo intervencionista” da economia brasileira, no período entre 2003 e 2012. Segundo dados publicados pelo Banco Mundial2, e pelos Ministérios do Trabalho dos dois países, os números e as diferenças são realmente chocantes. Nesse período, a crescimento médio anual do PIB brasileiro, foi de 4,21%; o do México, de 2,92%. O crescimento total a economia brasileira foi de 42,17%; o do México, de 29,29%. As exportações brasileiras cresceram a uma taxa anual de 6,59%; as do México, a uma taxa de 5,35%. O crescimento total das exportações brasileiras foi de 65,95%; o do México, de 53,35%. As importações brasileiras cresceram a uma taxa média anual de 17,33%; as do México, a 6,75%. O crescimento total das importações no Brasil foi de 173,32%; no México, de apenas 67,54%.

Por outro lado, a renda per capita brasileira cresceu a uma taxa anual de 2,84% e a do México, 1,42%. O crescimento total da renda no Brasil foi de 28,4%, e no México foi de 14,26%. E a participação dos salários na renda chegou a 45% , no Brasil, contra 29% no México. Nesse mesmo período, o Brasil criou 16 milhões de novos empregos formais, e o México 3,5 milhões; e a pobreza absoluta foi reduzida a 15,9%, no Brasil, e aumentou para 51,3%, no México. Por fim, (pasme-se), entre 2002 e 2012, o “investimento direto estrangeiro” cresceu, no Brasil, de US$ 16,59 bilhões, para US$ 76,11 bilhões de dólares. No México, caiu de US$ 23,932 bilhões, em 2002, para U$ 15,455 bilhões, em 2012! Só para encerrar a comparação, em 2103 a economia brasileira cresceu 2,3%, (uma das maiores taxas entre as grandes economias do mundo), enquanto a economia mexicana cresceu 1,1%.[...]

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sexta-feira, 23 de maio de 2014

Thomas Piketty e O Capital no Século XXI




«O livro do francês Thomas Piketty sobre a história do capital e sua repartição passou a ser o mais vendido na Amazon. Encontrou mecanismos que explicam a desigualdade económica e o desenvolvimento de uma sociedade de herdeiros.

I. O que podemos saber sobre a repartição da riqueza e a sua evolução desde que existe o capitalismo? Se é certo que ela é sempre desigual, e se é certo que existem dados seguros para a estudar, pelo menos, desde o século XVIII em França, verificamos que essa desigualdade tem vindo a diminuir nos últimos 200 e tal anos? Ou, pelo contrário, tem vindo a aumentar? Como devemos aferir a justiça ou injustiça da repartição desigual da riqueza no quadro do capitalismo? O que nos diz ela sobre o próprio capitalismo como sistema de produção e distribuição de riqueza? Estas são as perguntas fundamentais do livro de Thomas Piketty, O Capital no Século XXI

Quando o li, há umas semanas, estava ainda longe de imaginar o brutal impacto que ele viria a ter. Apesar das quase 700 páginas da edição inglesa, e das quase 1000 da edição francesa, atingiu recentemente a surpreendente condição de ser o mais vendido na Amazon. Paul Krugman chamou-lhe “o livro da década”. Stiglitz, Solow, Milanovic e outros economistas de topo foram igualmente elogiosos. Escreveram-se entretanto dezenas de recensões. Todos os dias aparece uma nova, ou mais do que uma. As recensões mais recentes são quase todas de economistas de direita que procuram pôr em causa as principais teses de Piketty. Outras são igualmente críticas, embora venham de economistas de esquerda. A estes, Piketty parece porventura demasiado favorável ao capitalismo; àqueles, demasiado hostil. De facto, a sua concepção do capitalismo implica, por um lado, prezá-lo como um extraordinário produtor de riqueza, de inovação, de tecnologia, de bem-estar, em suma: de desenvolvimento — mas, por outro, implica condená-lo como um sistema que tende a repartir a riqueza de um modo demasiado desigual e, na verdade, injusto e anti-democrático.

Felizmente, Piketty não escreve apenas para economistas, nem sequer apenas para especialistas das diversas áreas das ciências sociais e humanas. “A repartição da riqueza é uma questão demasiado importante para ser deixada apenas a economistas, sociólogos, historiadores e filósofos. Ela interessa a toda a gente, e ainda bem”, sublinha na introdução. Por esta razão, não há praticamente nada no livro que não esteja explicado de forma bastante elementar e clara — de tal forma, aliás, que o volumoso calhamaço se lê quase como um romance.
    
II. Para ser mais exacto, o volumoso calhamaço lê-se como um livro de história económica e, em grande medida, é um livro de história económica. Esta é provavelmente uma das razões por que muitas das recensões escritas por economistas são tão negativas e, em muitos casos, distorcem tão gravemente as teses de Piketty (nalguns casos, isso explica-se também pelo facto de os recenseadores fingirem ler um livro que não leram). Alguns dos economistas que escreveram sobre o livro pressupuseram que as teses de Piketty não poderiam não pretender ter o estatuto de verdades a priori de um modelo económico — quando, na verdade, pretendem ter apenas o estatuto de verdades históricas e, portanto, empíricas; outros perceberam bem a sua natureza apenas histórica e empírica — mas consideraram que, precisamente por isso, o livro não prova o que pretende provar, sobretudo quando fala do futuro.

Mas façamos a pergunta que todas as recensões têm feito e devem fazer: estamos, de facto, perante um livro que diz algo de fundamentalmente novo e muda a nossa forma de olhar para o mundo? um livro que faz avançar decisivamente a nossa compreensão do mundo em que vivemos e que, por isso, interessa, não apenas a economistas, e não apenas a sociólogos, historiadores e filósofos, mas, de facto, a toda a gente?

O livro é uma história do “capital”, como o título indica. “Capital”, para Piketty, tem um sentido lato (na verdade bastante conforme com o uso comum do termo), e significa o mesmo que “património”, ou “riqueza”: designa todo e qualquer “activo” (financeiro ou não financeiro, produtivo ou não produtivo) em que seja possível investir e que possa, por isso, proporcionar um retorno, seja este um retorno explícito (sob a forma, por exemplo, de rendas, dividendos, juros, ou lucros), seja um retorno implícito (como, por exemplo, a renda de habitação que não se paga quando se tem casa própria). Segundo Piketty, só este conceito de capital (nada usual na ciência económica) permite compreender o capitalismo e estudar a desigualdade económica no sistema capitalista — só esse conceito de capital permite desenvolver os métodos e explorar as fontes que conduzem à compreensão dos mecanismos da distribuição desigual do património, isto é, dos mecanismos que explicam a desigualdade não apenas (e não tanto) como um fenómeno resultante de diferenças salariais (ou de rendimentos do trabalho) quanto de diferenças na repartição da riqueza (e, portanto, no retorno do capital).

Ora, a novidade do livro está precisamente na sua tese principal sobre esses mecanismos. Podemos dividi-la em dois pontos fundamentais e formulá-la deste modo:
(1) A história económica dos últimos 220 anos em mais de 20 países mostra que o capitalismo é um sistema de produção que, excepto em circunstâncias muito particulares, gera enormes desigualdades na repartição da riqueza — e isso fundamentalmente porque, nesse sistema, a “taxa de rendimento do capital” (r) tende a ser, em média e no longo prazo, maior do que a “taxa de crescimento da produção” (g), ou seja, porque, tendencialmente (ou segundo um padrão que se verifica no longo prazo), r > g;
(2) o que isso significa é que o capitalismo foi sempre — e continua a ser hoje, na época da sua maior globalização e financiarização — um capitalismo patrimonial, isto é, um sistema de produção e distribuição de rendimento que, a partir de uma maior ou menor desigualdade inicial, gera sempre, de forma endógena e progressiva, acumulação e concentração de património (ou capital) nas mãos de uma percentagem muito minoritária de famílias. No longo prazo e na medida em que r > g (ou seja, na medida em que “as pessoas com riqueza herdada só precisam de poupar uma porção do seu rendimento sobre o capital para que este capital cresça mais depressa do que a economia como um todo”), uma sociedade capitalista acaba sempre por ser uma “sociedade de herdeiros”.

O ponto (1) é novo na teoria económica porque é nova a ideia de que a história do capitalismo revela o padrão r > g e, portanto, é nova a tese de que este padrão é, na verdade, o principal mecanismo que explica por que razão o capitalismo gera desigualdades de forma endógena. Esta ideia de um “mecanismo” — como mecanismo endógeno e historicamente comprovado — tem uma força imensa. O tempo dirá se é ou não descabido fazer a seguinte analogia: tal como a força e a novidade do pensamento de Darwin consistiu, não na descoberta da evolução das espécies, mas antes na descoberta de um mecanismo (a “selecção natural”) que explicava a evolução das espécies e a tornava plausível, assim também a força e a novidade do pensamento de Piketty consiste, não certamente na descoberta da desigualdade, mas antes na descoberta do mecanismo que a explica e que a mostra ser intrínseca ao capitalismo.

O ponto (2) é novo na teoria económica porque, nas últimas décadas, os estudos sobre as desigualdades pressupuseram, no fundo, uma sociedade de empreendedores e não de herdeiros. Por isso, tais estudos trataram essencialmente das desigualdades no rendimento do trabalho (por exemplo, da diferença entre os salários do 1% mais bem pago e os salários dos restantes 99%). Não contaram com o r = “taxa de rendimento do capital”, pois não calcularam o valor de β = a ratio entre o capital acumulado e a produção anual de um país (PIB). Segundo os números de Piketty e do vasto número de economistas que com ele colaboram, num país do primeiro mundo o capital acumulado (i.e. o património ou riqueza) tende a ser cerca de 600% do PIB, ou seja, um tal país precisa de 6 anos para produzir um rendimento equivalente à riqueza que já foi acumulada e que, portanto, já existe como património ou capital (basicamente privado) desse país.

O principal factor do progressivo aumento das desigualdades num país deste tipo é a taxa de retorno desse capital acumulado, ou seja, o facto de essa taxa de retorno permitir níveis de poupança (s) que o rendimento do trabalho não pode proporcionar. Portanto, o capitalismo é, de facto, o sistema do “empreendedor” — mas todo o empreendedor, se tem sucesso, acaba por ter rendimentos sobre o seu capital (como todo o “rentista” do século XVIII ou XIX) e, dessa forma, acumular um património que tenderá a ser legado e a crescer na geração seguinte. O mecanismo que explica a desigualdade e que a mostra ser intrínseca ao capitalismo é um mecanismo de acumulação patrimonial, portanto um mecanismo pelo qual, como diz Piketty, “o passado tende a devorar o futuro”: não só o rendimento sobre o capital tende a crescer em percentagem em relação à totalidade do rendimento nacional, como as fortunas que eram maiores no passado tendem a tornar-se ainda maiores no futuro.

Depois de duas grandes guerras que, no século XX, destruíram muita riqueza — e às quais se sucederam mais de 30 anos de recuperação económica e tecnológica, 30 anos dourados de criação de estados sociais e de políticas fiscais fortemente redistributivas, bem como de crescimento populacional —, os países mais desenvolvidos  têm vindo a regressar (desde o início dos anos 80) ao baixo crescimento e, segundo os números de Piketty (portanto, segundo dados empíricos), à inequívoca manifestação do padrão r > g. Os dados mais recentes (apresentados por Piketty já depois da publicação do livro) confirmam que,  no tempo de “estagnação secular” em que os países desenvolvidos parecem encontrar-se hoje, já nos encontramos numa situação em que r tende a situar-se, em média, nos 4 ou 5% (com elevadas taxas de poupança) e g tende a não passar de 1 ou 1.5% (máximo 2.5%). De forma que caminhamos a passos largos para níveis de desigualdade muito semelhantes aos da Belle Époque. Para dar apenas dois exemplos: (a) nos Estados Unidos, em 2010, 70% do capital (ou riqueza acumulada) pertencia a 10% da população e 35% a apenas 1% da população — ora, se os EUA estiverem, de facto, a caminho de níveis de desigualdade como os da Belle Époque, então dentro de algumas décadas 90% do capital (ou riqueza acumulada) pertencerá a 10% da população e 50% a apenas 1% da população; (b) em França durante a Belle Époque, a riqueza herdada representava cerca de 90% da riqueza total; desde 1914 até 1970 (por efeito das duas grandes guerras, mas também de políticas fortemente redistributivas) desceu quase para os 40%, mas, entretanto, não só regressou já a valores superiores a 75%, como voltará aos 90% ao longo do século XXI se r continuar a ser (como é hoje) cerca de 5% e g continuar a ser (como é hoje) apenas cerca de 1%. “O passado tende a devorar o futuro”...

III. O significado político, mas também ético, sociológico e filosófico, da ideia principal do livro de Piketty é, por conseguinte, óbvio: se o capitalismo tende a ser patrimonial e a gerar uma sociedade de herdeiros extremamente desigual, então o capitalismo tende a ser tudo menos uma meritocracia, o capitalismo tende a distribuir a riqueza e o rendimento de uma forma que é intrinsecamente (ou sistemicamente) injusta, toda a sociedade capitalista tende a ser uma plutocracia e a tornar-se materialmente incompatível com a democracia (mesmo que, formalmente, não se verifique tal incompatibilidade). Que seja esta a principal conclusão a que o livro conduz, talvez explique por que razão a sua primeira edição em França teve um impacto incomensuravelmente menor do que o impacto da sua tradução e publicação nos Estados Unidos da América. A crença numa ligação intrínseca entre meritocracia, capitalismo e democracia é o alfa e o omega do sonho americano. A tese de que essa ligação intrínseca não existe é, provavelmente, menos chocante em França — tal como é provável que, à medida que se desce do centro para o sul da Europa, cresça a convicção de que o capitalismo tem uma natureza patrimonial.

Só que, aqui, é preciso ter cuidado e não atribuir a Piketty uma concepção   determinista do capitalismo. O mecanismo r > g é apenas um padrão histórico, não é um mecanismo inalterável. O new deal nos EUA e o modelo social europeu no pós-guerra mostram, historicamente, como a adopção de políticas fortemente redistributivas contraria a dinâmica patrimonial, r > g; a liberalização, desregulação, financiarização e globalização dos últimos 35 anos mostram que o regresso dessa dinâmica patrimonial resultou de profundas alterações institucionais — e assenta, portanto, em estruturas institucionais que são alteráveis.

É igualmente importante sublinhar que, ao contrário do que sustentam vários críticos, Piketty não é marxista. O seu livro não propõe um sistema alternativo ao capitalismo, nem prevê que venha a existir um tal sistema alternativo. Na verdade, Piketty defende que um determinado grau de desigualdade, bem como de competição em mercados regulados, é fundamental para que haja a inovação e o desenvolvimento tecnológico capazes de proporcionar os níveis de satisfação material alcançados em países como a França ou a Alemanha.  O facto de a riqueza acumulada de um dado país ser cerca de 600% do seu PIB é, em si mesmo, uma coisa boa, e não uma coisa má. O problema está na distribuição ou repartição desigual dessa riqueza acumulada. É ela que é injusta e que, em última análise, gera pobreza e põe em causa a existência de uma classe-média forte, como aquela que se formou depois de 1945 nos países que adoptaram o modelo social europeu. É também o tipo de repartição desigual existente hoje num país como a França ou os EUA (mas não o sistema de produção) que, aos poucos, vai retirando aos Estados os recursos necessários para um investimento em saber, ciência e tecnologia capaz de gerar crescimento económico robusto e instituições democráticas saudáveis.

Portanto, o problema, da perspectiva de Piketty, é muito claro: (1) não há uma alternativa credível ao capitalismo, (2) o capitalismo é, na verdade, um factor de desenvolvimento e criação de riqueza, mas (3) só proporciona taxas elevadas de crescimento económico em períodos de recuperação (“catching up”, “rattrapage”) e/ ou de grande crescimento populacional e inovação tecnológica — por isso, (4) no momento actual está plenamente instalada a dinâmica patrimonial do r > g e (5), se nada de radical for feito nos próximos anos, é só uma questão de tempo até voltarmos a ter, nos países mais desenvolvidos, níveis de desigualdade tão grotescos, injustos, anti-democráticos e auto-destrutivos como os da Belle Époque.

Qual é, porém, a plausibilidade deste discurso sobre o futuro? Na medida em que, como se disse acima, o mecanismo r > g depende de estruturas institucionais alteráveis e, na realidade, é apenas um padrão que se verifica empiricamente na história — ou seja, não é um “modelo” nem uma verdade a priori —, é evidente que todas as previsões de Piketty sobre as próximas décadas são condicionais (por exemplo, “se r se mantiver nos 5% e g no 1%, então...”). Mas nem por isso deixam de ser extremamente plausíveis. Primeiro porque os número de Piketty demonstram que, com a liberalização, desregulação, financiarização e globalização dos últimos 35 anos, se desenvolveram múltiplos instrumentos de investimento que garantem, em média e no longo prazo, uma taxa de retorno na ordem dos 5% (em termos reais), ou até bastante acima disso; depois porque, excepto no caso de países que têm pela frente um processo de rattrapage (como, por exemplo, a China), não se vislumbra, de facto, como se daria o regresso a taxas de crescimento do PIB de 4 ou 5%.

A única forma segura e eficaz de travar o mecanismo de acumulação patrimonial r > g consiste, portanto, em fazer diminuir o valor de r. A última parte do livro trata justamente do que, segundo Piketty, pode ser feito. A sua “utopia” (como lhe chama) é um imposto progressivo mundial sobre a riqueza. Idealmente, este imposto seria mundial porque, de outra forma, a globalização permitiria a fuga de capitais para offshores ou para quaisquer outros países que não participassem no plano de redistribuição da riqueza implicado na ideia desse imposto. Teria de ser também um imposto muito fortemente progressivo de modo a corrigir as enormes desigualdades entre, por exemplo, o 1% e os restantes 9% dos 10% mais ricos, bem como entre o 0.1% e os restantes 0.9% do 1% mais rico. 
     
 Esta última parte do livro termina com um capítulo sobre a dívida pública, no qual tem o devido destaque a crise das dívidas soberanas na zona euro. Esta crise, segundo Piketty, é um “estranho paradoxo”. Se é verdade que as dívidas soberanas dos países da zona euro tendem a ser hoje superiores a 90 ou mesmo a 100% do PIB, isso não significa, como muitas vezes se afirma, que esses países estejam a deixar para as gerações futuras uma dívida impagável — pois, tal como deixam dívida às gerações futuras, deixam-lhes também muita riqueza (privada) acumulada: entre 500 e 600% do PIB. Como pode “o continente onde os patrimónios privados são os mais elevados do mundo” ter um problema com as suas dívidas soberanas? Entre pedirem dinheiro emprestado aos privados (proporcionando-lhes “rendas” sob a forma de juros) ou cobrarem mais impostos (e impostos mais progressivos) sobre “os patrimónios privados mais elevados do mundo” (i.e., sobre a riqueza acumulada), o Estados europeus deviam escolher a segunda opção. Tal permitiria, primeiro, reduzir drasticamente (e muito rapidamente) as dívidas soberanas — e, depois disso, mutualizá-las a partir dos 60%. Segundo Piketty, o “estranho paradoxo” explica-se, portanto, em parte pela disfuncionalidade institucional do euro (pelo menos uma parte da dívida devia ser mutualizada, mas não há instrumentos institucionais para o fazer), em parte por a riqueza acumulada não ser devidamente taxada. (Quanto à austeridade como solução para se pagarem dívidas públicas elevadas, Piketty defende que “uma dose prolongada de austeridade” é “a pior solução, quer em termos de justiça, quer em termos de eficácia”).

Embora não o diga expressamente, Piketty parece considerar que os partidos socialistas, sociais-democratas e trabalhistas cometeram um enorme erro histórico ao decidirem lutar apenas pela “igualdade de oportunidades” num quadro institucional em que as políticas redistributivas dos “30 anos dourados” deram lugar, a partir do final dos anos 70, à liberalização, desregulação, financiarização e globalização da economia. O problema aqui, note-se, é em boa parte filosófico — além de ser, evidentemente, político. Se, de facto, se verificar que tende a prevalecer no capitalismo o mecanismo de acumulação patrimonial, r > g, e que a sua prevalência hoje nos coloca na rota dos níveis de desigualdade da Belle Époque, então pode argumentar-se, no quadro do combate político, mas também no quadro do debate filosófico acerca da igualdade e da democracia, (1) que o actual sistema mina, por princípio, a igualdade de oportunidades, (2) que esse sistema gera, também por princípio, uma extrema desigualdade de resultados, (3) que a correcção desta desigualdade, nomeadamente por via de uma política fiscal fortemente redistributiva, é justa, e (4) que ela é necessária para a salvaguarda das instituições democráticas. 

Thomas  Piketty escreveu, de facto, um livro que não interessa apenas a economistas, sociólogos, historiadores e filósofos, mas a toda a gente. E é também provável que Paul Krugman tenha razão: Thomas Piketty parece ter escrito “o livro da década”.

sexta-feira, 16 de maio de 2014

Reportagem: a Venezuela no seu labirinto

«A radicalização de opositores e chavistas, num cenário de transformações sociais, ineficiência e sabotagem. O papel de Washinton. A tentativa de um pacto.

Na Venezuela atual, abastecer um tanque de combustível de aproximadamente 70 litros custa tão pouco quanto uma garrafa de meio litro de água mineral ou um cigarro avulso: são apenas cinco bolos (bolívares fortes). Na ultima semana de março o dólar paralelo oscilava em torno de 52 bolívares, nove vezes mais que o oficial. Semanas antes, a moeda norte-americana alcançara a astronômica cifra de 100 bolívares.
Esta distorção dos preços é o indício de uma economia deformada, que já não funciona mais como economia capitalista tradicional (dominada por monopólios privados) e parece encontrar-se a meio caminho da economia chamada socialista (monopólio estatal), com as tensões e contradições que supõe semelhante transito. Em suma, a economia é o cenário de uma aguda luta de classes, no sentido mais tradicional do conceito.
Para enxergar uma destas distorções, basta caminhar os diversos bairros de uma cidade de um milhão e meio de habitantes, como Barquisimeto, capital do estado ocidental de Lara. Nos bairros populares veem-se filas nas lojas e supermercados — de diferentes extensões, mas quase que diárias. Nos bairros da classe média alta, como Fundalara, não se veem filas e o comércio parece estar bem abastecido. As famílias saem com pequenas sacolas de alimentos, enquanto nos bairros populares as donas de casa transportam grandes pacotes para suprir suas famílias numerosas.
A principal diferença é que nos bairros ricos podem ser vistos, com a mesma frequência com que se veem as filas nos bairros populares, manifestações de estudantes que portam bandeiras venezuelanas, sem que ninguém os incomode, ocorrendo um ou outro buzinaço de apoio. Apenas na última semana de março, tanto as filas como os protestos começaram a diminuir.

Empate catastrófico

A imagem de uma sociedade divida em partes quase iguais, e além disso polarizada, parece ser o cenário mais próximo da realidade. As eleições presidenciais que levaram Nicolas Maduro à presidência, há quase um ano, refletiram ambos os fatos, ao registrarem uma diferença de apenas 1,5% dos votos, entre o atual presidente e o candidato da oposição Henrique Capriles.
A polarização social tem também uma leitura territorial, que pode ajudar a explicar a situação atual. Nos estados de Zulia, Táchira e Mérida, entre outros, ganhou a oposição. É a região de fronteira com a Colômbia. Lá, os protestos criararam, durante o mês de fevereiro, um cenário de “zona liberada”. Na capital do Táchira, San Cristóbal, a universidade pública foi incendiada por manifestantes, com clara complacência das autoridades estaduais e municipais, ligadas à oposição.
Os partidários do governo denunciam participação, nos protestos, de ex-paramilitares colombianos, aliados ao presidente Álvaro Uribe. Falam, de modo particular, nas ameaças seletivas a militantes chavistas. A oposição, por sua vez, acusa o governo de maus-tratos e tortura de detentos. Ambos os fatos parecem plausíveis, embora não haja provas contundentes que possam corroborar a tese.
Dois fatos parecem evidentes: que a repressão do Estado matou vários manifestantes; e ambos os grupos — tanto oposição, quanto chavistas — usam armas de fogo. O jornalista Aram Aharoninan, ex-diretor da Telesur, relata que das quarenta mortes, entre 12 de Fevereiro e o final de março, vinte e duas foram “assassinatos de líderes da base bolivariana [chavista], alvejados pelas forças paramilitares colombianas – aliados mercenários da burguesia venezuelana” (Rebelión,1 de Abril 2014).
Quando o número de mortos era 31, a Procuradoria Geral da Republica divulgou estatísticas segundo as quais, entre os 461 feridos nas manifestações, 143 eram policiais. Vários soldados foram mortos. Quase duas mil pessoas foram presas, sendo que apenas 168 ainda permanecem atrás das grades.
Durante o mês de fevereiro, a Venezuela foi palco de uma dupla escalada de tensões, e de uma tentativa de negociação. Avançou a extrema-direita, liderada por Leopoldo López (agora preso) e pela deputada Corina Machado, mas não acompanhada pela Mesa da Unidade Democrática (MUD), liderada por Capriles. Este opositor afirmava, em plena crise de desestabilização do regime bolivariano, que “o único caminho possível seria o da via eleitoral”.
A ofensiva da extrema-direita foi confrontada pela emergência das forças chavistas, em particular os motorizados – milhares de militantes em motocicletas, que constiuem uma das forças mais organizadas e ativas do oficialismo. Para tentar detê-los, a oposição estendeu fios de aço nas ruas, à altura de suas cabeças.
Até mesmo o presidente Nicolas Maduro apoiou publicamente o surgimento dos motorizados informando que cinco deles haviam sido mortos por franco-atiradores. “Este golpe de Estado continuado que já está derrotado, mas que ainda segue provocando danos contra pessoas, levou ao surgimento dos motorizados, como um ator para o bem do país. Agora vocês estão visíveis, – enfatizou o presidente – já não serão mais estigmatizados. Os motorizados atuam pela paz, e neste momento estão derrotando um golpe de Estado”. (El Nacional, 13 de março de 2014)

MARCHA POR LA VIDA EN VENEZUELA

A má economia

Na comunidade Abya Yala, no entorno de Barinas, cujas terras tão secas quanto férteis esperam ansiosamente o início da estação das chuvas, Ignacio e Edis detalham como trabalham na produção de alimentos sem agrotóxicos, preferindo o controle orgânico de pragas. Produtores de hortaliças e frutas, suínos e aves, levam as mercadorias para serem comercializadas na Cooperativa de Autogestão Comunitária, integrada a uma das maiores redes de abastecimento de cooperativas, Cecosesola.
Ignacio, veterinário e produtor uruguaio que está radicado há oito anos na Venezuela, é membro de uma cooperativa nas redondezas,  que se destaca por uma forte produção de mandioca orgânica. Mora em uma cooperativa da Reforma Agrária, também perto da capital do estado. Deslumbrou-se com a terra, em que se pode cultivar ao longo dos doze meses do ano, enquanto no Uruguai somente é possível durante cinco meses. Embora continue a apoiar o processo bolivariano, observa que “a grande maioria dos beneficiários da reforma agrária não trabalha na terra; muitos foram até mesmo embora”.
Ele sabe do que fala. E tem perfeita consciência de que está tocando em um ponto central da economia bolivariana. Seu relato em pequena escala é reforçado pelas macro-estatísticas: 56,2% de inflação em 2013, déficit fiscal próximo de 15%, queda das reservas internacionais, além de uma sensível escassez de alimentos.
O mais grave é que as coisas estão piorando. Até meados de 2013, não faltavam alimentos e não havia filas. A inflação vinha caindo até 2008, subindo em 2011. Somadas a estas, estão a fuga aguda de capitais. Em seu conjunto, os fenômenos refletem um problema estrutural, que sucessivos governos não resolveram e que eclodiu com a morte de Chavez.
O jornalista Modesto Emilio Guerrero, venezuelano radicado na Argentina, que apoia o processo bolivariano, pergunta-se como é possível haver escassez, quando o governo controla 36% do sistema de distribuição de alimentos. Ainda aqui, observa que as 240 empresas criadas, e outras muito nacionalizadas e estatizadas, não estão conseguindo aumentar a produção alimentar. “Há dois PIBs na Venezuela, o petroleiro e o não petroleiro. O petroleiro está intacto, não há problemas. É o PIB não petroleiro que está falido, tanto pelo lado privado como o estatal” (Cartas, 21 de Março de 2014).
É verdade que a escassez se explica, em certa medida, pelo contrabando de mercadorias com preços garantidos à Colômbia. Mas há muito mais. O setor privado não cresce porque a burguesia não está investindo. Embora a Venezuela conte com duas grandes fábricas de alumínio, estas não são competitivas. A fábrica de aço, que foi uma propriedade de Techint, teve uma  queda na qualidade da produção depois que a empresa foi nacionalizada em maio de 2009. “Você vai culpar o imperialismo?” pergunta Guerrero, referindo-se a quem só usa esse tipo de argumento para fugir das próprias responsabilidades.
Sua explicação prioriza o lado da cultura política. O homem que foi representante da União Nacional dos Trabalhadores, fundada por seguidores de Chávez em 2003, afirma que a ineficiência dessas grandes empresas se deve à “burocracia sindical, que efetivamente protege um tipo de indústria para pagar salários do Estado. O Estado paga salários para que não haja crise social”.
Por outro lado, o jornalista enfatiza que na Techint a produção era superior quando a indústria ainda era multinacional. As empresas nacionalizadas repetem a história do socialismo real. Embora haja mudanças radicais, “brota, dentro do próprio organismo revolucionário e social, um corpo venenoso, gangrenado, que é chamado de burocracia”. Na Venezuela, ela teria se tornado burguesa e corrupta.»[...]

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Abr. 2014

sexta-feira, 9 de maio de 2014

Nigéria: como o Ocidente alimenta os terroristas



«Dois fatores favorecem grupo que sequestrou duzentas meninas: pilhagem do país por transnacionais petroleiras e assassinados praticados pelos EUA, por meio de drones.

É quase inacreditável que mais de duzentas garotas possam ter sido ser sequestradas de uma escola no norte da Nigéria — em ação  realizada pelo grupo terrorista Boko Haram — e ameaçadas em um vídeo, exibido no mundo inteiro, sendo vendidas como escravas por seus capturadores. A descrença é ampliada pelas notícias de hoje de que, ao longo da noite, mais oito meninas foram sequestradas por homens armados, supostamente do Boko Haram, no nordeste da Nigéria. A tragédia toca o coração de todos, evocando um sentimento de asco não só pelo perigo e a perda da própria liberdade, mas pelo pressuposto de que para jovens garotas, seu destino deve ser o casamento forçado e a servidão, não a educação.

Existe uma revolta justa, pelo fato de que tão pouco tenha sido feita pelo governo nigeriano para encontrar as meninas, e por terem sido acusados de causar tumulto, ou mesmo presos temporariamente, muitos dos que se manifestaram contra o presidente Goodluck Jonathan.
Mas devemos ser cautelosos com a narrativa que está emergindo. Ela segue um padrão familiar desgastado, que já vimos no sul da Ásia e do Oriente Médio, mas que está sendo crescentemente aplicado também na África.

É o refrão de que algo deve ser feito; e que “nós” — o ocidente iluminado — deveríamos nos encarregar de fazê-lo. A fala da senadora norte-americana Amy Klobuchar é exemplar a esse respeito: “Este é um daqueles momentos em que nossa ação ou inação será sentida não apenas por aquelas garotas da escola que estão sequestradas e por suas famílias que esperam em agonia, mas pelas vítimas e criminosos de tráfico de mulheres ao redor do mundo. Agora é o momento de agir.”. Começa a surgir um chamado por intervenção ocidental para ajudar a encontrar as garotas, e a “estabilizar” a Nigéria no rescaldo de seu sequestro. O governo britânico já ofereceu “ajuda prática”.

As intervenções do ocidente têm falhado, uma após a outra, ao lidar com problemas particulares. Pior: levam a mais mortes, deslocamentos e atrocidades do que já eram enfrentados originalmente. Tudo isso tem sido justificado, frequentemente, com referências ao direito das mulheres. É como se as forças militares pudessem criar uma atmosfera em que terminam a violência e o abuso. As evidências apontam para o contrário.

O direito das mulheres foi um grande pretexto para a guerra do Afeganistão, iniciada em 2001, quando Laura Bush e Charlie Blair — as esposas dos chefes de governo dos EUA e Grã-Bretanha — apoiaram os planos bélicos de seus maridos, apresentando-os como suposto meio de libertar as mulheres afegãs. Hoje, após milhões serem desalojados e dezenas de milhares mortes, o Afeganistão continua sendo um dos piores países do mundo para mulheres viverem, com casamento forçado, casamento infantil, estupro e outras atrocidades ainda amplamente presentes.

E já há intervenção ocidental na África. Ela não tem o mesmo perfil do Afeganistão ou Iraque, porque as guerras passadas dificultaram as tentativas de agir diretamente por meio de tropas. Mas Barack Obama tem forças militares mobilizadas na África Ocidental através de sua base de drones Predator, no Níger, que faz fronteira com a Nigéria. Esta também é vizinha do Mali (cena de intervenções recentes da França e da Inglaterra) e da Líbia, alvo de uma guerra ocidental de bombardeios desastrosa em 2011, que deixou o país em estado de guerra civil e colapso.

Os drones norte-americanos também operam no Djibuti, Etiópia e logo além lado do Mar Vermelho, no Iêmem. O Ocidente envolveu-se em guerras por procuração recentes, na Somália. Se o terror islâmico tornou-se ameaça em cada vez mais pontos da África, os países ocidentais desempenharam um grande papel em sua criação.

Mas há outra guerra acontecendo na África: a econômica. Um continente tão rico em recursos naturais vê muitos de seus cidadãos viverem em condições indignas. Na Nigéria do presidente Jonathan, o crescimento econômico não foi direcionado aos pobres. A saúde e a educação estão fora do alcance de muitos.

A corrupção espalha-se. Exércitos e armas são mobilizados para proteger os ricos e as empresas estrangeiras, como a Shell — que quer acesso aos recursos do país, especialmente o petróleo. Corrupção e desigualdade estão associadas  ao papel do Ocidente. Fazem parte de um sistema que está preparado para começar uma guerra por recursos como  petróleo e gás, mas não entrará em guerra contra a pobreza, ou para garantir educação para todos.

É neste cenário que está inserido o terrível sofrimento das meninas sequestradas na Nigéria. E não vai melhorar com mais armas ocidentais e exércitos — na terra ou no ar.»

Lindsay German | Tradução: Gabriela Leite

OutrasPalavras

Maio. 2014

sexta-feira, 2 de maio de 2014

O 25 de Abril que não aconteceu


«Quarenta anos depois da fugaz Revolução Portuguesa, três palpites sobre medo passageiro das elites, ilusão dos revolucionários e manobras do poder global.

Estamos no mês das celebrações. Vão organizar-se muitas peregrinações ao 25 de Abril de 1974 com trajetos e até destinos diferentes, como se fossem pacotes de turismo da memória. Um tempo tão importante pelos lugares visitados como pelos evitados, pelo que vai ser dito como pelo que não vai ser dito. Remeto-me a imaginar os lugares evitados, o não-dito, propondo-me um exercício de sociologia das ausências. São três os 25 de Abril que vão estar ausentes.

O 25-de-Abril-de-quem-deve-teme. Para os poderosos, as elites de sempre (latifundiários, grandes industriais, banqueiros), todas com “sólida formação moral” certificada pela PIDE [a polícia política da ditadura salazarista], o 25 de Abril foi uma dor de cabeça, um desconforto inoportuno. Para alguns, até pareceu um bom negócio mas foi sol de pouca dura. A partir de 11 de Março de 1975, transformou-se numa ameaça que lhes causou medo e os obrigou a protegerem-se. Foi um susto passageiro, pois em 25 de Novembro do mesmo ano foi-lhes dito ao ouvido (para os portugueses comuns não ouvirem) que, com o tempo, tudo voltaria ao normal. Não seria sequer necessário criar uma comissão de verdade e reconciliação e muito menos uma que incluísse, além destas, justiça. Quarenta anos depois, quem teve medo já nem se lembra e quem lhes causou medo tem medo de lhes lembrar.

O 25-de-Abril-dos-revolucionários-aferventados. Foi a fulguração das ruas, das praças, dos campos, das escolas, das famílias, dos quarteis a incendiar a imaginação duma sociedade justa, como se a felicidade estivesse à mão, a opressão secular fosse um pesadelo passageiro e o futuro distante e radioso tivesse chegado aqui e agora para ficar. Havia partidos que se diziam de vanguarda mas nem retaguarda eram da alegria que transbordava. O país eram trabalhadoras rurais analfabetas a vasculharem maravilhadas as gavetas íntimas das senhoras da herdade; operários empolgados a tentarem convencer-se a si próprios de que tinham direitos contra o patrão; prostitutas a organizarem-se em sindicatos; jovens a fazerem sexo tão incessantemente quanto faziam cartazes e manifestos; camponeses a organizar “corporativas” por soar mais familiar do que cooperativas; jornalistas a poderem escrever socialismo ou comunismo como se fosse anúncio de filme em cartaz; professores a poderem leccionar Karl Marx e já não Carlos Marques como anteriormente faziam para despistar os informadores da PIDE no fundo da sala. Tudo aferventado porque mal cosido e a escaldar. A quem já foi senhor dos seus sonhos, mesmo que por pouco tempo, custa lembrar, em tempos de servidão, que já esteve levantado do chão.

O-25-de-Abril-das-grandes-manobras. No ano anterior, a primeira experiência de socialismo democrático do século XX, o governo de unidade popular de Salvador Allende no Chile, tinha sido esmagada por militares a soldo da CIA. Portugal corria o risco de repetir a experiência, o que, do ponto de vista dos EUA, seria ainda mais grave por ocorrer na Europa Ocidental, uma zona de influência sua nos termos do Tratado de Yalta. Kissinger considerou a invasão do país com o apoio da NATO, mas a social-democracia europeia (sobretudo alemã) opôs-se e propôs que, em vez de militares, viesse dinheiro, muito dinheiro, para fortalecer os partidos e os movimentos sociais que se opunham ao “modelo soviético”. Assim se fez e os resultados foram os esperados. Portugal ficou então em dívida para com os alemães e assim continua hoje. Mudam-se os tempos mudam-se as dívidas mas não o endividamento. Quarenta anos depois, seria impertinente falar de imperialismo norte-americano quando afinal ele é agora europeu.

O 25 de Abril foi a mega-expectativa de ontem que está na origem da mega-frustração de hoje. Aos peregrinos ao 25 de Abril de 1974 eu aconselharia que acampassem por lá durante um tempo, tomassem o ar livre, cheirassem o alecrim, conversassem sobre Portugal como se fosse outra vez coisa sua e, em vez de regressarem, organizassem uma expedição ao presente e, já que estamos a falar de peregrinos, expulsassem os vendilhões do templo.»


Abr. 2014