sábado, 19 de setembro de 2009

Alguns aspectos de cidadania participada dos jovens

A Perfect Purple Thank YouImage by [ r ♥ c e y t ♥ y ] {I br♥ke for bokeh} via Flickr


António Campos

A rua é por jovens reivindicada como um palco de cultura participativa. Vejamos o caso dos jovens skaters. Para eles, a rua é cenário de um compromisso com a cidade. De uma experiência sensorial da cidade feita através da escuta dos rolamentos, da visualização dos movimentos, do olfatar dos odores, da vibração corporal dos deslizamentos. Os jovens skaters produzem “espaços livres” no domínio das quadraturas formadas pelo “poder arquitectónico” das cidades (Menser, 1996).
Que fazem os jovens skaters do espaço urbano da cidade? Eles reinventam-no, dando-lhe novos usos e, desse modo, produzem um novo espaço, distinto do original.

O corpo do skater dialoga com a arquitectura do espaço por onde desliza, como se nesse “corpo a corpo” se produzisse uma nova discursividade urbana. O skater recusa aceitar o espaço como um dado pré-existente. Dá-lhe uma existência própria quando o desafia a usos diferentes dos previstos ou pré-estabelecidos.

As performances dos jovens skaters desafiam as hierarquias espaciais estabelecidas
pela arquitectura convencional das cidades; promovem uma espécie de comunidade
“translocal” (Willand, 1998) de contestação às fronteiras espaciais; apelam a uma reabilitação do usufruto de um “espaço total”, liberto dos constrangimentos
decorrentes de planificações urbanísticas top down; redefinem o tecido urbano,
criando-lhes novos significados, tomando o espaço numa concepção de “usos múltiplos”.A arquitectura das cidades segrega-a sem espacialidades mutuamente
exclusivas — de que são exemplo os condomínios fechados.

Os skaters reivindicam uma vivência democratizada dos espaços públicos das cidades.
Os conceitos de espacialidade e territorialidade conotam com relações de poder e
capacidades de inclusão e de exclusão. As cidades são aglomerações nodais espacializadas, construídas em torno de uma disponibilidade instrumental de poder
social. Elas constituem-se em centros de controlo, sendo desenhadas para proteger
e dominar, pondo em jogo uma subtil geografia de limites e confinamentos (Soja,
1989). O que nelas verificamos é uma submissão dos espaços públicos — onde se deveria potenciar a cidadania — a fluxos tecnofinanceiros da economia.

Os jovens skaters descobrem no espaço de regulação das cidades uma oportunidade de produção de outros fluxos: os da expressividade performativa. O espaço de regulação é um espaço pré-estabelecido, estruturado em ruas, calçadas, rotundas e semáforos que enquadram as apropriações espaciais. Mas os espaços de regulação podem também ser subvertidos. As ruas são transformadas pelos skaters em espaços que se afirmam por usos libertos de instâncias, movimentos que se expandem movidos por um desejo da expansão. É vê-los em rodopios de 180.º (rodando o corpo a “meia lua” e voltando a cair em cima do skate) ou em movimentos flip (rodando o skate debaixo dos pés) ou ollie (saltando com os skates nos pés).

Eles usam frequentemente a expressão drawing lines (traçar de linhas) como se nos quisessem fazer ver que a cidade é uma folha de inscrição da sua criatividade. À sua maneira, escrevem a cidade, embora a uma escala micro-espacial, criando registos, traços, sinais reveladores, como também o fazem os jovens graffiters.
O espaço estriado (Deleuze e Guattari, 1994) das cidades é recuperado pelos jovens skaters como um espaço liso. Com eles aprendemos que o espaço é muito mais do que a projecção de uma representação intelectual. É uma produção feita de movimentos, gestos, cumplicidades. O mesmo se pode pensar da cidadania.

A cidadania apenas se cumpre globalmente quando localmente é exercida. O streetskate
sugere-nos que as cidades podem ser actuadas a partir dos seus micro-espaços, tanto quanto através de grandes projectos e planos urbanos. Os skaters mostram-nos que o urbano não é somente um produto, é, sobretudo, um modo de vida. A ocupação preferencial que eles fazem de espaços simbolicamente fortes, como lugares turísticos e praças históricas ou monumentais, tem uma razão de ser. É aí onde mais flagrantemente as relações sociais podem ser invertidas para criar espaços heterotópicos (Foucault, 1993).

De um lado temos a polis, que remete para a ordem política, para a administração
centralizada da cidade; de outro lado temos a urbs, que é o pulsar da cidade,
esculpindo-se a si mesma, marcada por uma resistência ao controle da polis (Delgado,
1999). A polis é posterior à cidade, surgindo em finais do século XVIII, quando o
topos urbano se vê aprisionado nas amarras engendradas por engenheiros, arquitectos
e higienistas. A partir daí, dá-se um estriamento da cidade logo que passa a estar
submetida a princípios de racionalização que se haviam concebido para instituições
de enclausuramento, como as prisões, os internatos, os quartéis, as fábricas, os
hospitais.

Os planificadores da cidade procuravam então exorcizar as desordens, purificar as condutas, escrutinar as populações, periferizar a miséria. Instaura-se na cidade o “estado de peste”, para utilizar a consagrada expressão de Michel Foucault (1975), em Vigiar e Punir. A cidade transforma-se num espaço cerrado, cidade maqueta, com os cidadãos a verem os seus movimentos controlados e vigiados como agora também ocorre com as câmaras de vídeo que nos espiam em centros comerciais, edifícios públicos e residenciais.

É contra a cidade maqueta que se reclama uma cidade dos cidadãos, uma cidade humanizada, participada, insubmissa às modelagens de planificações deterministas e às realidades sociais (de miséria crime ou violência) que as sustentam. A cidadania é, em certa medida, um movimento de rejeição da cidade planificada a favor da cidade praticada. De uma cidade que seja abrigo de manifestações culturais, não inevitavelmente institucionalizadas, que promovam novas expressões identitárias e inclusivas de quem a habita (Zukin, 1995). Desde que, evidentemente, não ponham em causa princípios básicos da convivência social.



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