sexta-feira, 27 de julho de 2012

O cidadão não praticante



Memória, prática, finalidade. A cidadania faz-se da conjugação destas três dimensões. Nas noites eleitorais e nos dias que se lhes seguem, vai sendo comum que os valores elevados da abstenção suscitem comentários preocupados, senão indignados, com o alheamento demonstrado pelos cidadãos num momento em lhes era pedido que usufruíssem de um direito fundador das democracias, exprimindo através do voto o sentido da sua escolha. As eleições presidenciais de 23 de Janeiro último não foram excepção, tanto mais que a abstenção chegou aos 53,37%, sendo a maior de sempre em eleições presidenciais ou legislativas.

Nesses dias descobre-se, mais uma vez, que um número crescente de cidadãos, se tivesse chegado às urnas, teria votado sozinho; que não se sentiria acompanhado pela memória, ou pela presença física, de todos os homens e mulheres que antes dele deram o melhor de si, e até a vida, para pôr fim a décadas (e séculos) de regimes não democráticos. Mas o que feito a seguir para tornar a memória e a história parte fundamental da identidade dos cidadãos?

Nesses dias descobre-se também que o cidadão atomizado, que só se identifica com o seu presente, mais facilmente faltará à chamada… desse mesmo presente. Preguiça e desinteresse são invocados para explicar a inacção de quem não entendeu que, em dia de eleições, o exercício do voto é de facto exercício − do que faz músculo cidadão. Mas o que é feito a seguir para que essa prática faça parte da ginástica quotidiana de que depende a saúde das democracias?

Nesses dias descobre-se, por último, que o cidadão com fraca memória e fraca prática de democracia tem mais tendência para não participar nas escolhas em que se joga o nosso futuro colectivo, como se lhe fosse indiferente que na sociedade vingassem projectos tão distintos quanto, por exemplo, o que defende que o contrato de base da democracia tem como finalidade o bem comum e por isso exige um Estado social assente na prestação de serviços públicos universais e de qualidade e, por outro lado, o que defende um Estado mínimo e assistencialista, por ser o que melhor assegura a interesses privados todas as formas de predação dos recursos públicos. Mas o que é feito a seguir para fortalecer em cada um a impressão de que as suas escolhas importam e têm consequências na definição de finalidades partilhadas, ainda por cima quando, sejam mais ou menos vencedores nas urnas, os projectos e as políticas que se instalam são mais orientados para a criação de clientes, passivos e isolados, do que de cidadãos, sujeitos de acção colectiva?

A abstenção é um sintoma de uma doença que começou muito antes dos dias em que se fala nela, mesmo que por sua vez actue sobre a doença, agravando-a. Quando se repara no problema da abstenção já é tarde e a discussão torna-se bastante estéril. Porque o acto de ficar em casa e não votar é apenas uma pequena parte de um imenso empreendimento, central ao projecto do neoliberalismo, que consiste em construir cidadãos não praticantes. O objectivo deste empreendimento não é sequer, como a abstenção poderia fazer crer, criar um vazio de acção. É retirar a acção da esfera da cidadania e encaminhá-la para campos em que ela vá favorecer os interesses e lucros privados que, por estarem em contradição com a prossecução do bem comum, precisam, em democracia, do consentimento participante de cidadãos não participantes.

Na fase austeritária da democracia em que nos encontramos, isso é visível, por exemplo, nos dispositivos habilmente montados para tornar as famílias dependentes do crédito, mesmo para os bens de consumo mais essenciais. Com isso consegue-se assegurar os tremendos lucros dos bancos, mascarar as responsabilidades políticas pela situação e ainda amortecer na opinião púbica soluções que exigem que se enfrente o sistema financeiro e se abandone essa posição de refém-raptor que tem sido, neste sequestro colectivo que continua impune, a dos governos europeus.

As raízes desta armadilha programada são, contudo, identificáveis muito antes da eclosão desta crise. Dela fazem parte décadas de culto ao individualismo, como racionalidade suprema na gestão da vida, ou de culto à juventude, com a correlativa desvalorização dos mais velhos. As consequências existenciais deste processo podem demorar a sentir-se, mas os seus efeitos na corrosão do princípio da solidariedade intergeracional são já reconhecíveis em muitos discursos, propostas e práticas relacionados com o mundo do trabalho e com a segurança social.

No período em que agora entramos, vamos ser confrontados com os frutos desta armadilha do cidadão não participante. Os neoliberais esperam colher agora os resultados do martelamento muito ideológico que têm vindo a fazer, com apoio da generalidade dos meios de comunicação social, sobre a natureza pretensamente ineficiente e insustentável dos serviços públicos, a que se oporiam um mercado naturalmente eficiente e uma iniciativa privada sempre bem sucedida e até mais barata para todos. (...)

Sandra Monteiro
(adaptado)
Fev.2011


sexta-feira, 20 de julho de 2012

Física e Filosofia


Porto: Ponte do Freixo
«O século que agora se aproxima do fim viu na física uma expansão fantástica das fronteiras do conhecimento científico. As teorias da relatividade restrita e geral de Einstein modificaram para sempre a nossa visão do espaço, tempo e gravitação. Numa cisão ainda mais radical com o passado, a mecânica quântica transformou a própria linguagem que utilizamos para descrevermos a Natureza: em vez de partículas com posições e velocidades definidas, aprendemos a falar de funções de onda e probabilidades. Da fusão da relatividade com a mecânica quântica surgiu uma nova visão do mundo, na qual a matéria perdeu o seu papel central. Este papel foi usurpado por princípios de simetria, alguns deles invisíveis no estado actual do universo. Sobre estes fundamentos construímos uma teoria bem sucedida do electromagnetismo e das interacções nucleares fraca e forte entre partículas elementares. Muitas vezes sentimo-nos como Siegfried, que, depois de ter provado o sangue do dragão, descobriu, para sua surpresa, que entendia a linguagem dos pássaros». (Steven Weinberg)

Ontem, a propósito da descoberta da partícula de Higgs, fui levado a reviver os meus tempos de estudante universitário quando estudava física no curso de medicina. Antes disso já tinha realizado um estudo sobrecosmologia intitulado A Vertigem de Empédocles. Tenho muitas obras de física, incluindo os manuais que utilizei para a estudar. Felizmente, como não sou "político profissional", não tive as facilidades de que estas criaturas das trevas desfrutam para obter pseudo-diplomas, ao abrigo dessa terrível burla que é o processo de Bolonha. Embora não me sentisse especialmente atraído pelo programa demasiado extenso de física, tive de a estudar, aprofundando mais a física atómica do que a mecânica, o calor, a acústica, a electricidade, o magnetismo e a óptica. A mecânica quântica atraia-me mais do que os modelos mecânicos clássicos utilizados na fisiologia. O formalismo matemático da mecânica quântica assusta qualquer mortal e, como não estudei numa universidade particular, a Universidade Lusófona por exemplo, permeável aos jogos corruptos do poder estabelecido depois do 25 de Abril, não tive outra saída a não ser mergulhar de cabeça nesse formalismo matemático. O meu professor de física "massacrou" os meus neurónios com a equação de Schrödinger durante todo o ano lectivo. Confesso que a meio do ano já não suportava ouvir o nome de Schrödinger, que também invadiu as aulas de fisiologia e de biologia molecular. Sempre fui um aluno "massacrado" pelos professores: na física era "massacrado" com a função de onda, na fisiologia e biologia molecular com a natureza e origem da vida, e até na anatomia do sistema nervoso com as experiências docérebro dividido. Utilizei o termo "massacrado" entre aspas porque, na verdade, o conhecimento não me massacra; pelo contrário, alimenta-me. Este "massacre" mostra até que ponto os cientistas precisam da filosofia: eu era convocado nas aulas e nos gabinetes para pensar as implicações filosóficas das grandesdescobertas científicas. Infelizmente, na altura, dominava mais a parte científica do que a parte filosófica dessas descobertas científicas. A minha posição tomada nesse período pode ser resumida deste modo: precisamos de avançar mais no terreno científico antes de tentar solucionar problemas filosóficos. De certo modo, esta é a minha filosofia espontânea de cientista: primeiro, fazer ciência de boa qualidade e, depois, elaborar a filosofia mais adequada a essa ciência. (Doravante, ser "político profissional" significa ser burro diplomado: a experiência profissional que lhes dá - aos políticos profissionais - um diploma é, ela própria, uma fraude!)

Althusser defendeu a seguinte tese: as revoluções científicas - entendidas como rupturas epistemológicas - tendem a preceder as revoluções filosóficas. Esta tese não se aplica ao caso de Marx: a revolução filosófica ocorreu antes da abertura do continente-História à ciência. A tese de Althusser é demasiado complexa para ser aqui discutida em pormenor: o que interessa destacar é que, para Althusser, não podemos falar de rupturas na filosofia, porque nela «nada é radicalmente novo» e «nada é definitivamente resolvido». Em filosofia nada é radicalmente novo porque teorias antigas, retomadas e deslocadas, sobrevivem e revivem numa filosofia nova. Em filosofia nada é definitivamente resolvido porque há sempre o vaivém das tendências antagonistas, as viragens imprevistas, e as mais antigas filosofias estão sempre prontas a voltar ao assalto, disfarçadas sob formas novas, até mesmo sob formas mais revolucionárias. Ora, isso acontece porque a filosofia é, em última análise, luta de classes na teoria. Esta formulação da filosofia choca os ouvidos dos filósofos, mas ela constitui a realidade da filosofia. O que torna a filosofia tão difícil à compreensão dos físicos é precisamente o facto dela ser luta de classes na teoria. Ou por outras palavras: os físicos ainda são demasiado platónicos para compreender que a filosofia não tem idade, na medida em que as suas revoluções estão sempre expostas a ataques, a recuos e retrocessos, e até ao risco da contra-revolução, como sucedeu nas últimas décadas com o triunfo do neoliberalismo sobre o marxismo. A ciência é, actualmente, alvo do ataque de certas filosofias irracionais que parecem derivar de Marx. Convém dizer claramente que Marx nunca definiu a ciência como ideologia. A teoria da ideologia de Marx, ela própria uma descoberta científica, é genial. Quando generalizam o sentido da ideologia, fazendo dela um fenómeno ubíquo, os filósofos da desconstrução aniquiladora têm um único alvo a abater: a própria teoria da ideologia de Marx e a sua defesa da ciência. Mas nós sabemos, pelo menos depois da crise financeira de 2007, que a crítica da ciência é, ela própria, ideológica: as filosofias que criticam a ciência estão contaminadas pela ideologia mais reaccionária produzida pela classe dominante.

 Os físicos sabem que precisam da ajuda dos filósofos esclarecidos para evitar os erros destes filósofos da desconstrução. A grande linha de demarcação não é tanto entre ciência e metafísica mas entre ciência e ideologia. Esta é a função primordial da filosofia: traçar linhas de demarcação entre o científico e o ideológico. Desgraçadamente, devido à indigência cognitiva predominante, os filósofos não desenvolveram a teoria da ideologia de Marx: a filosofia está condenada a aperfeiçoar essa teoria enquanto intervém na prática científica, no seio da qual ela representa a política. A tese de Althusser permite-me defender outra tese: a mecânica quântica exige uma nova filosofia ou, por outras palavras, a revolução científica em curso só estará concluída quando der origem a uma imensa revolução filosófica. Os físicos estão convencidos de que a epistemologia é a única plataforma que lhes permite estabelecer um diálogo produtivo com os filósofos: eles ainda não compreenderam que a epistemologia sofreu o impacto poderoso da teoria da ideologia de Marx, embora já tenham entendido que a "sociologia" é tão ou mais importante do que a "psicologia". A análise da lição inaugural de Jacques Monod permitiu-me avançar com um modelo crítico. Pretendo agora aperfeiçoá-lo com a análise crítica das obras revolucionárias dos físicos. O facto de já ter estudado a teoria do Big Bang inclina-me a escolher a obra de Steven Weinberg: o objectivo da intervenção filosófica no domínio da física é, em última análise, elaborar uma Filosofia da Natureza. Já existem muitas teorias da realidade propostas pelos próprios físicos, uma das quais é a teoria da ordem implicada de David Bohm. Depois de um longo divórcio, a física regressa ao seio da própria filosofia. Aliás, é muito difícil distinguir entre física teórica e filosofia. Filosofia e Física não são, portanto, duas disciplinas avessas uma à outra: ambas são actividades teóricas que visam acrescentar ao mundo as suas determinações de conhecimento. Da sua cooperação resultará uma nova filosofia da natureza e do próprio conhecimento. 

J Francisco Saraiva de Sousa
Jul.2012

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Uma questão de sobrevivência

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Uma árvore não é a floresta e uma variação trimestral do Produto Interno Bruto (PIB) não é de costume, em si mesma, salvo quando convém ao Governo ou à oposição falha de agenda, motivo suficiente para ilações maiores. Não neste caso, que reputo simbólico, com o anúncio de uma contracção de 0,3% em cadeia nos últimos três meses do ano passado. O consenso generalizado é o de que Portugal vai entrar numa recessão cujo fim não é antecipável. Já começou, e o fundo do poço é uma incógnita, no tempo e na profundidade. Temos apenas algumas certezas tremendas: entramos, pela primeira vez na história, numa recessão, com a maior taxa de desemprego de que há memória estatística, oficialmente correspondente a mais de 600 mil desempregados. Do seu nível, quando batermos no fundo, nada sabemos, excepto que será uma tragédia nunca antes experimentada. A factura de uma década e meia perdida entrou agora a pagamento. Tudo, mas literalmente tudo o que o Governo tem feito, perante a ameaça do que se está já a concretizar, é tentar evitar a excacção das suas omissões ou acções desastrosas, as suas próprias ou as dos governos socialistas que o antecederam, com novas omissões ou acções desastrosas. 

O caso é, porém, mais grave. Esta crise será diferente. Não é uma crise cíclica. Trata-se do ponto de saturação de uma demorada evolução para o abismo, ilustrada por inúmeras curvas: a do défice externo, persistente desde 1995, a do desemprego, em alta desde 2000, salvo uma curta e inconsequente interrupção no princípio do lustro passado, a do endividamento do Estado, das famílias e das empresas, a da produção praticamente estagnada na última década, e em tendência longa para o zero - eis o nó do problema, o problema dos problemas. Vem já da década de 70 do século passado. Na esfera pública, o aumento insuportável do peso do Estado sobre a economia, com o crescimento constante da carga fiscal, da despesa social - representando actualmente mais de 20% do PIB - e da própria máquina das administrações, cuja folha de salários é um pouco mais de metade desse valor; recentemente, os juros, com um peso ainda da ordem dos 4% do PIB, mas em explosão. Parafraseando uma formulação sintética muito adequada do Pedro Braz Teixeira, em União Monetária, isto é, com câmbio fixo, a taxa de juro, o sintoma irrecusável da acumulação de todos os outros desequilíbrios, chega numa altura em que, em vez de ser alerta para uma necessária, atempada e por isso útil mudança de rumo capaz de evitar o naufrágio, torna-se, por tardio na sua manifestação, naquilo mesmo que leva ao fundo. A febre, quando se faz sentir, é tarde de mais. E mata. O sinal converte-se ele próprio no precipitante do colapso.

 Vivemos, até agora, numa ilusão - uma ilusão de prosperidade sem correspondência na realidade. E continuamos a viver. Tudo conspira para a laboriosa construção da nossa irrealidade quotidiana. Um Governo acossado, cujo único norte é a sua sobrevivência imediata. Uma oposição sem vozes com peso político capazes de dizer a verdade, pois a verdade - a bancarrota (a insolvência) generalizada em que entrámos - é demasiado insuportável: para si e para a sua audiência. Não creio que a gritante incongruência entre a dimensão e a natureza dos problemas que enfrentamos e a sua (não) inscrição no discurso público seja necessariamente o resultado de uma manha oportunista deliberada. A tendência natural dos actores políticos medíocres, os que nos sobram, é a demasiado humana tendência para reduzir o perigo à escala dos meios imediatamente disponíveis para o enfrentar. À falta de coragem, a confusão é um expediente vital. Algo disto tem a ver com o facto de os teólogos medievais considerarem a estupidez um pecado mortal. 

O que deveria, a meu ver, ser já claro nesta altura é que esta crise é uma crise de regime: a democracia inaugurada no pós-25 de Abril supunha um pacto de assistência social, com um nível crescente de cobertura de riscos e provimento de garantias, sem relação com as realidades fundamentais da geração de riqueza, que está condenado. A noção de direito social é, em si mesma, perigosamente equívoca. O Estado propõe-se garantir - e retira daí uma parcela considerável da sua legitimidade - o que não pode garantir, pois não está nas suas mãos cumprir. Os inúmeros défices que acumulámos e se transformaram em compromissos não honráveis são apenas a expressão contabilística de um modelo garantista de relação do Estado com os cidadãos, que se revelou impossível. O outro pilar da democracia, a opção europeia, consagrada na União Monetária, foi simultaneamente aquilo que possibilitou a ilusão de viabilidade do nosso modelo democrático e - sabêmo-lo agora - o que pesadamente inclinou à sua inviabilização. 

Esta crise não será, pois, como as outras. As relações entre o Estado e a sociedade, por um lado, e o Estado português e o seu espaço de inserção pós-imperial estão  - radicalmente - em causa. Queiramos, aceitêmo-lo, gostemos, ou não. A irrealidade em que vivemos é filha da impotência política em que vegetamos face à magnitude dos desafios. Na melhor das hipóteses, e até que aconteça qualquer coisa de não antecipável no actual quadro político e mental português, todas as mudanças que nos serão impostas serão apresentadas à sociedade e experimentadas por ela como privação face a um modelo normativo inquestionável. Há um défice - um défice de imaginação moral e de imaginação política - no fundo de tudo isto. Mas é da sua superação, em última instância, que depende a sobrevivência: de Portugal e da sua democracia.

Jorge Costa

Fev.2011

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Por entre as ruínas do consumismo



A atual situação económica é vista pela maioria dos especialistas como resultado de algum desregramento dos cidadãos na gestão dos seus instintos, desejos e capacidades. Acontece que alguns deles chegam a gerir as coisas públicas, administrando os dinheiros que são de todos. À falta de recursos, e representando os seus cidadãos, estes altos responsáveis por alguns países contraem empréstimos, não em seu nome, mas em nome de todos. Algumas vezes bem, outras... menos.

O consumo é, por definição, a destruição de bens ou serviços através da sua utilização. Por vezes, como nas indústrias e em alguns serviços, destroem-se uns em favor da produção de outros. Mas curiosamente, no final de qualquer das sequências, é sempre a uma destruição que se chega.

A nossa sociedade aposta num alinhamento de todos os (seus) consumidores e há uma certa pressão para que todos se sintam num primeiro momento iguais, para que, logo depois, lhes sejam apresentadas propostas de diferenciação, fórmulas para a ultrapassagem dos seus semelhantes.

É a competição entre os cidadãos/consumidores que se constitui como o motor do consumismo, prometendo a satisfação de uma necessidade que parece vital: a diferenciação de status. Costuma dizer-se que as empresas vendem os produtos para os quais despertaram necessidades inexistentes até aí. Como se se criasse gratuitamente uma necessidade, a fim de conseguir vender a solução para a satisfazer e, assim, extingui-la. Talvez funcione desta maneira mas, na verdade, a base deste tipo de mecanismo é a necessidade primária, e profunda, do ser humano querer ser mais que os seus semelhantes.

Numa lógica de soluções abrangentes, existem até empresas que apresentam propostas para fora da linha da maioria, chamam-lhe nichos, esta espécie de produtos servem a quem não quer consumir os outros mais comuns... propostas estas que são afinal a mais clara evidência de que o consumidor quer ser mais que os seus pares. Analisando bem o que oferecem estas empresas, que se apresentam como tendo a solução para quem não se identifica com as massas, verificamos que afinal são propostas de consumismo ainda mais descaradas do que aquelas das quais se pretendem diferenciar... bastando, tantas vezes, introduzir subtis diferenças e preços muito acima dos seus concorrentes. Muitos são os que pagam muito dinheiro para não terem de o gastar onde a maior parte dos outros o gastam... a fim de que, quando se cruzarem, uns se sintam mais do que outros...

Na verdade, é de extrema dificuldade perceber quem é o mais pobre: o que tem pouco e isso lhe basta ou o que tem muito e isso não lhe chega.

Serei melhor quando o for pelo meu valor intrínseco e não pela quantidade de coisas que possa comprar e ter. Ser mais não passa por ter mais. O ter é efémero, ambiciona-se, ganha-se e perde-se mas nunca integra a essência. O ser constrói-se (e destrói-se), revela-se (e oculta-se) e (pode) constituir-se como a única verdadeira riqueza, mas só quando conseguimos que a vida seja autêntica e longe das largas avenidas, cheias de vãs promessas de felicidade a cada passo, caminhamos no nosso carreiro, umas vezes muito sós, mas (quase) sempre acompanhados da certeza de que é por ali o caminho.

As pessoas não são o que consomem apesar de, muito pouco inteligentemente, tantas, julgarem que sim. Mas o facto de acreditarem nisso manifesta de forma simples o que estas pessoas são, ou melhor, não são: valiosas.

Afinal, o consumo não destrói só os bens, mas também todos quantos neles julgam, frustradamente, encontrar algo de bom.

José Luís Nunes Martins
Jun.2012