Memória, prática, finalidade. A cidadania faz-se da conjugação destas três
dimensões. Nas noites eleitorais e nos dias que se lhes seguem, vai sendo comum
que os valores elevados da abstenção suscitem comentários preocupados, senão
indignados, com o alheamento demonstrado pelos cidadãos num momento em lhes era
pedido que usufruíssem de um direito fundador das democracias, exprimindo
através do voto o sentido da sua escolha. As eleições presidenciais de 23 de
Janeiro último não foram excepção, tanto mais que a abstenção chegou aos
53,37%, sendo a maior de sempre em eleições presidenciais ou legislativas.
Nesses dias descobre-se, mais uma vez, que um número crescente de cidadãos,
se tivesse chegado às urnas, teria votado sozinho; que não se sentiria
acompanhado pela memória, ou pela presença física, de todos os homens e
mulheres que antes dele deram o melhor de si, e até a vida, para pôr fim a
décadas (e séculos) de regimes não democráticos. Mas o que feito a seguir para
tornar a memória e a história parte fundamental da identidade dos cidadãos?
Nesses dias descobre-se também que o cidadão atomizado, que só se
identifica com o seu presente, mais facilmente faltará à chamada… desse mesmo
presente. Preguiça e desinteresse são invocados para explicar a inacção de quem
não entendeu que, em dia de eleições, o exercício do voto é de facto exercício
− do que faz músculo cidadão. Mas o que é feito a seguir para que essa prática
faça parte da ginástica quotidiana de que depende a saúde das democracias?
Nesses dias descobre-se, por último, que o cidadão com fraca memória e
fraca prática de democracia tem mais tendência para não participar nas escolhas
em que se joga o nosso futuro colectivo, como se lhe fosse indiferente que na
sociedade vingassem projectos tão distintos quanto, por exemplo, o que defende
que o contrato de base da democracia tem como finalidade o bem comum e por isso
exige um Estado social assente na prestação de serviços públicos universais e
de qualidade e, por outro lado, o que defende um Estado mínimo e
assistencialista, por ser o que melhor assegura a interesses privados todas as
formas de predação dos recursos públicos. Mas o que é feito a seguir para
fortalecer em cada um a impressão de que as suas escolhas importam e têm
consequências na definição de finalidades partilhadas, ainda por cima quando,
sejam mais ou menos vencedores nas urnas, os projectos e as políticas que se
instalam são mais orientados para a criação de clientes, passivos e isolados,
do que de cidadãos, sujeitos de acção colectiva?
A abstenção é um sintoma de uma doença que começou muito antes dos dias em
que se fala nela, mesmo que por sua vez actue sobre a doença, agravando-a.
Quando se repara no problema da abstenção já é tarde e a discussão torna-se
bastante estéril. Porque o acto de ficar em casa e não votar é apenas uma
pequena parte de um imenso empreendimento, central ao projecto do
neoliberalismo, que consiste em construir cidadãos não praticantes. O objectivo
deste empreendimento não é sequer, como a abstenção poderia fazer crer, criar
um vazio de acção. É retirar a acção da esfera da cidadania e encaminhá-la para
campos em que ela vá favorecer os interesses e lucros privados que, por estarem
em contradição com a prossecução do bem comum, precisam, em democracia, do
consentimento participante de cidadãos não participantes.
Na fase austeritária da democracia em que nos encontramos, isso é visível,
por exemplo, nos dispositivos habilmente montados para tornar as famílias
dependentes do crédito, mesmo para os bens de consumo mais essenciais. Com isso
consegue-se assegurar os tremendos lucros dos bancos, mascarar as
responsabilidades políticas pela situação e ainda amortecer na opinião púbica
soluções que exigem que se enfrente o sistema financeiro e se abandone essa
posição de refém-raptor que tem sido, neste sequestro colectivo que continua
impune, a dos governos europeus.
As raízes desta armadilha programada são, contudo, identificáveis muito
antes da eclosão desta crise. Dela fazem parte décadas de culto ao
individualismo, como racionalidade suprema na gestão da vida, ou de culto à
juventude, com a correlativa desvalorização dos mais velhos. As consequências
existenciais deste processo podem demorar a sentir-se, mas os seus efeitos na
corrosão do princípio da solidariedade intergeracional são já reconhecíveis em
muitos discursos, propostas e práticas relacionados com o mundo do trabalho e
com a segurança social.
No período em que agora entramos, vamos ser confrontados com os frutos
desta armadilha do cidadão não participante. Os neoliberais esperam colher
agora os resultados do martelamento muito ideológico que têm vindo a fazer, com
apoio da generalidade dos meios de comunicação social, sobre a natureza
pretensamente ineficiente e insustentável dos serviços públicos, a que se
oporiam um mercado naturalmente eficiente e uma iniciativa privada sempre bem
sucedida e até mais barata para todos. (...)
Sandra Monteiro
(adaptado)
Fev.2011