sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Child Come Away
Image via Wikipedia


violência ou criminalidade intra-familiar… no natal


António Campos


esbofetear crianças é mais comum do que se pensa, ainda em dia de Natal

Violência intra-familiar não é um tema fácil de abordar. Mas acontece até em dia de Natal. Pensa-se sempre que um grupo de parentes ou seres humanos relacionados entre si, por laços de consanguinidade ou de afinidade, é um grupo feliz. No seio do grupo, cabe aos adultos protegerem os mais novos  orientando-os desde muito cedo na vida, pelas sendas do amor, o respeito filial ou o respeito que os pais têm pelos filhos. Pelo menos, é assim que eu penso.

Mas a realidade parece ser outra. Não foi por acaso que coloquei a imagem de uma criança punida, com as marcas de uma bofetada recebida na sua pequena cara. Bofetada de quem se desconhece a autoria e o motivo da punição material, reflectida na cara triste e sofrida de quem não entende qual o mal que fez para receber tamanho castigo. Castigo reiterado ao longo do tempo pela pequena da imagem, e por muitas outras mais.
Essa bofetada marca pelo menos três aspectos da vida da infância. A primeira é visível e não precisa ser comentada, a imagem fala o que as palavras da pequena não sabem dizer porque as desconhece ou, ainda, porque não espera que o seu adulto a use contra ela. Essa bofetada pode ser o resultado de quem tem raiva contra si próprio e desabafa nos mais pequenos, como comenta Sigmund Freud em 1905 em húngaro, traduzido para inglês por Hoggart Press, Londres, em Obras Completas, Volume VII, 1953: Three essays on Sexuality, ou Melanie Klein em: Inveja e Gratidão (1943 em alemão, 1954 em inglês e em luso brasileiro, 1991(…).

Textos todos que defendem a criança das ameaças dos seus adultos, que esperam delas comportamentos formais, gentis e de uma responsabilidade mais além dos seus curtos anos. Este tipo de violência, é, para mim, um crime não apenas contra o seu corpo, como contra os seus sentimentos. Sentimentos que devem converter essa criança em adulto triste, deprimido e pouco feliz com a vida. E o círculo continuará a ser repetido por ter aprendido em tenra idade que os pequenos devem ser ensinados às chicotadas e sem nenhum respeito por tudo o que lhe falta saber.

Bem sabemos que a lei protege a infância com leis especiais, veja-se, para o caso português, a Lei da Protecção de Crianças e Jovens em Perigo,  Nº 147 de 1999. Até esse dia, apenas o Código Civil imperava, falando unicamente de filiação, heranças e tutorias nos artigos 1776 e seguintes, ignorando absolutamente essa realidade de trair a infância, como se na sociedade nada acontecesse em relação às punições mencionadas.
Este pequeníssimo ensaio, é apenas um rascunho do livro que preparo sobre a criminalidade intra-familiar, que é, de forma ignorante, denominada violência doméstica. Nem sempre acontece entre as famílias, mas há mais maus tratos de palavra ou de obra, do que o que a lei quer reconhecer. Andreia Sanches, diz no jornal «O Público» de 16 de Julho: 26 das 41 famílias analisadas com menores maltratados não tinham mais de quatro elementos. “A configuração das famílias é cada vez mais reduzida, há mais monoparentalidade, pode estar a haver uma degradação das condições económicas nestas famílias.”

Que fazemos nós?

Raul Iturra (adaptado)
 Dez.2010

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sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Contra a equidade

Equity (trade union)Image via Wikipedia



António Campos


Os liberais andam agora preocupados com os pobres. No Reino Unido, por exemplo, o primeiro-ministro conservador David Cameron pretende, inspirando-se no antecessor trabalhista Tony Blair, aumentar brutalmente as propinas nas universidades [1]. Tratar-se-ia de uma medida social. Com que objectivo? Impedir que todos os contribuintes paguem estudos superiores cujos «clientes» são, na sua maioria, provenientes das camadas privilegiadas. O Estado poupa; os pobres dispõem de bolsas. Há três anos, em França, o editorialista Jacques Julliard já afirmava que «a gratuitidade é um subsídio aos ricos que enviam os filhos para a universidade» [2]. Obrigar ao pagamento de propinas seria, portanto, uma reforma igualitária…

A dimensão dos défices públicos permite estender este raciocínio ao conjunto das prestações sociais, pondo em causa o seu carácter universal. Para começar, os abonos familiares:«Para lá de um certo limiar (de rendimentos), não se compreende que se receba subsídios. O dinheiro que o Estado gasta com isso é uma pura perda», reiterou o antigo ministro de direita Luc Ferry, secundado pelo antigo primeiro-ministro socialista Laurent Fabius [3]. A seguir vem a assistência médica: Alain Minc, conselheiro de Nicolas Sarkozy e apesar disso próximo de Martine Aubry, evocou o caso do pai,«hospitalizado durante quinze dias num serviço de ponta», para fingir sentir-se chocado com o facto de «a colectividade francesa ter gasto 100 000 euros para tratar um homem de 102 anos. (…) Vai ser preciso pensar em como se pode recuperar as despesas médicas feitas com os muito velhos, indo buscar uma contribuição ao seu património ou ao dos seus herdeiros. Devia ser o programa socialista a fazer esta proposta» [4]. Por fim, é a vez das pensões de reforma: o semanário liberal The Economist lamentou que George Osborne, ministro britânico das Finanças, não tenha sistematizado o seu ataque «contra o princípio do universalismo que caracteriza o sistema social. Podia, por exemplo, ter apontado os dispendiosos privilégios concedidos aos reformados independentemente dos seus rendimentos» [5].

Parece, assim, que os liberais estão agora preocupados com a «equidade» da redistribuição, depois de terem reduzido a progressividade fiscal… Já se sabe qual vai ser a sua próxima etapa, pois ela já foi experimentada nos Estados Unidos: em sistemas políticos dominados pelas classes médias e altas, a amputação dos serviços públicos e das prestações sociais torna-se uma brincadeira de crianças quando as camadas privilegiadas deixam de lhes ter acesso. Quando se chega a esse momento, essas camadas consideram que tais privilégios alimentam uma cultura de dependência e de fraude, o número de beneficiário reduz-se e é-lhes imposto um controlo minucioso. Fazer com que as prestações sociais dependam dos rendimentos significa portanto, quase sempre, programar o seu desaparecimento para todos.

Notas
[1] David Cameron quer aumentar o valor anual das propinas nas universidades de 3290 para 9000 libras esterlinas (10 600 euros), depois de Tony Blair as ter já aumentado, em 2004, de 1125 libras para 3000 libras.
[2] LCI, 7 de Julho de 2007.
[3] Respectivamente, no Le Figaro (18 de Novembro de 2010) e na Europe 1 (4 de Novembro de 2010).
[4] «Parlons Net», France Info, 7 de Maio de 2010.
[5The Economist, Londres, 23 de Outubro de 2010.

Dezembro de 2010
Serge Halimi


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sexta-feira, 25 de novembro de 2011

O valor das coisas

ThingsImage by icedbuddha via Flickr



António Campos


Estou mudando de cidade e por isso tive de fazer uma limpeza geral na minha casa, preparando-me para desocupá-la. Como é estressante decidir o que vai e o que fica, o que vender, o que doar, o que pôr no lixo... Essa é a hora de decidir qual é o valor das coisas.

Algumas coisas estão velhas, desgastadas, quebradas, mas tudo isso parece converter-se em virtude, significando que as mudanças que sofreram as moldaram à nossa personalidade. Algumas são carregadas de história, de lembranças, e então parece impossível não mantê-las consigo.

Algumas coisas são úteis, outras são apenas belas. Mas aí é preciso pensar se serão úteis no novo lugar em que se vai viver. E as coisas belas, são belas em todos os lugares?

As coisas dizem quem nós somos, mas principalmente quem nós não somos, e esse também é seu valor. Compramos um violão ou uma bicicleta ergométrica na intensão de ir além do que somos cotidianamente. Às vezes vamos, às vezes não. As coisas retratam nossos fracassos e nossos sucessos. Quer conhecer alguém, conheça as suas coisas, mas para além de seu valor económico.

As coisas têm valor enquanto objetos de desejo. Há coisas que compramos pelo valor que adquirem por serem desejadas pelas outras pessoas. Mas quando precisamos decidir o que é realmente importante manter consigo, muitas vezes concluimos que nem sempre os objetos de desejo da grande massa são realmente importantes.

As coisas que preferimos jogar fora são normalmente as mais velhas. Por que estão gastas? Por que não servem mais? Nem sempre. Muitas vezes apenas porque são velhas.Tente vender um móvel usado e verá o valor do velho. A palavra “usado” quase que anula o valor dos bens de consumo. É como uma mácula, que adere mesmo ao mais bem cuidado dos objetos. O novo pode ser mais fraco, mais feio, mais simples, mas foi abençoado pela virtude da embalagem inviolada. Talvez por isso seja tão difícil cultivar o hábito do reutilizar e reciclar objeto, mesmo diante da crise ambiental que vivemos. A indústria é uma espécie de pia batismal, pela qual os objetos precisam passar para estarem puros ao ponto de poderem ser consumidos.

Mas uma grande alegria que vivemos ao desfazer-se das coisas que ou não queremos ou não podemos carregar ocorre no momento da doação. Muitas vezes temos apenas a intensão mesquinha de livrar-se daquilo que no final das contas se tornou um entulho. Não bastasse a realização desse objetivo, ainda somos brindados com o agradecimento sincero de alguém que se acha ajudado pelo nosso ato. Ainda bem que o que não tem valor para um, muitas vezes tem muito valor para outro.

Mas o mais curioso é aquela situação em que se põe o lixo na rua e rapidamente pessoas o reviram procurando por algo que tenha algum valor. Procuram valor onde não deveria mais haver valor. E encontram. Lembro-me de uma criança que ficou feliz ao encontrar algo, não sei exatamente o quê, que repidamente tomou por brinquedo. Deixando de lado a questão social que está em jogo, acho interessante pensar que o valor que damos aos objetos, que se concretiza em seu valor comercial, muitas vezes nos impede de pensar sobre qual é mesmo o valor de cada coisa para nós. Parece que o valor já está dado, é aquele mesmo da etiqueta. Mas o que vale cada coisa mesmo? Aquela criança não havia ainda aprendido que aquilo não valia nada.


Ediovani A. Gaboardi
Dez.2010


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sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Novo Acordo Ortográfico - como ESPETAR a Língua Portuguesa

Leonardo Di CaprioImage via Wikipedia



António Campos


Em Portugal muitas idiotices acabam por ser impostas por via do hábito e da inércia, optando o cidadão comum tantas vezes por uma situação fatalista, encolhendo os ombros a mais uma nova regra ou lei que foi criada sem o ter em conta. Na verdade, chamar "cidadão" ao habitante de Portugal é geralmente um eufemismo, pois o nosso maior drama será precisamente essa de não termos a noção da nossa cidadania, dos direitos que ela envolve, mas também das responsabilidades que temos em intervir e questionar. Diz-se "Oh , em Portugal é mesmo assim, que se há-de fazer? É tudo uma malandragem a mandar em nós e só nos resta obedecer!". E vai o português e segue com a sua vida quase escravizada, entalado entre as dívidas ao banco e o trabalho precário, com um olho na "bola" (que, já a pensar na sua alienação, não "dá" apenas aos Domingos, como em tempos idos) e outro na telenovela formatada onde, ao contrário da realidade, as personagens vão conseguindo alterar os seus destinos até ao fiinal feliz.

Apesar de tudo isso, sou das pessoas que teimam em questionar o que não se quer contestado só porque "não há tempo a perder" na corrida desenfreada até ao famoso Abismo. E muitas vezes pequenos incidentes do quotidiano fazem-me pensar de novo no que está dado como facto consumado, embora num apenas leve esgravatar salte à vista a estupidez que fundamenta esse facto.

Vem isto a propósito do
 Novo Acordo Ortográfico (A.O.), agora dito em fase de experimentação em Portugal,mas, como vimos AQUI, já a ser imposto nas Escolas no próximo Ano lectivo.

Num inocente jornal publicitário e gratuito colocado nas caixas do correio pelo país fora, era salientada uma entrevista com o famoso Leonardo Di Caprio. Folheia-se o dito, distraidamente, passa-se os olhos pela entrevista à estrela cinematográfica e o que mais se destaca e fere a vista é desde logo a espantosa ortografia. Ou seja, no mesmo jornal misturam-se artigos ainda obedecendo à "antiga" ortografia com outros já na nova moda desventurosa e sinistra do novo A.O.. Como é o caso da referida entrevista.

Então vejamos. Já nos fazem estremecer palavras como
 "ator", "ação", "perspetiva" ou "caráter", mas que poderão vir a cair no tal hábito. Por outro lado, não se entende completamente a manutenção de termos como "impacto" (talvez para não julgarmos que se trataria de um antónimo de "pato"), visto que a presença do "c" neste caso nem ajuda a indicar a abertura da vogal (a palavra já é grave, quanto à acentuação), como no "antigo "ACTOR". E. aliás, a origem etimológica é a mesma... Mas é que é uma consoante que se lê, bláblá...(ai aqui já vale...)

Já termos como "
afetou" arrepiam ainda mais e nos levam a duvidar como a sua dicção/dição irá sobreviver. Porém o que mais ridículo surge é o termo "ESPETADOR", numa frase como " ...mas são as personagens que mantêm o ESPETADOR envolvido.". Fica a dúvida sobre que crueldade leva as ditas personagens a "espetar" e onde é que "envolvem" o dito "espetador"!

Consultando diversos dicionários mais ou menos "atualizados", a dúvida persiste. Uns dizem que o termo "
espetador" não existe, outros dizem que é o equivalente no Brasil a "espectador", mas tudo remete para esse "arcaico" termo "espectador", se por exemplo quisermos traduzir para outra Língua.

Também vemos que esta palavra foi precisamente uma das mais citadas em debate, aquando da
 polémica prévia ao assinar do A.O., nomeamente em jornais e na blogosfera, por linguistas, tradutores (por exemplo, Desidério Murcho) e outros especialistas. EM RESUMO: o novo AO permite ambas as grafias espectador/espetador, visto que os brasileiros assim grafaram erradamente por décadas. E a polémica é precisamente pelo que esta opção ambígua do "igual ao litro" deita por terra do famoso argumento de que só desapareceriam as consoantes que não eram PRONUNCIADAS, as chamadas consoantes mudas. O que não se passa, logicamente, com esta palavra ESPECTADOR, onde o "C" é bem "sonoro" e indica a abertura da vogal que a antecede.

É que os assassinos linguísticos que cozinharam este acordo (meramente político!) parecem esquecer que a ortografia
 não serve apenas para passar ao papel as palavras como são ditas, mas também, ao serem lidas, lembrar/ensinar a forma como DEVEM SER DITAS! Esquecem todas as crianças que ainda vão aprender a ler e para as quais os professores ficarão com menos apoios lógicos e linguísticos para explicar porque algo se diz de uma forma e não de outra. Esquecem todos aqueles milhões de estrangeiros que querem aprender Português e que assim ficarão com mais dúvidas e com mais um argumento para considerar difícil este idioma! Claro que, se aprenderem com um professor brasileiro, que os ensinará a simplesmente abrir TODAS as vogais, o caso estará resolvido (a não ser que tenham de fazer um exame de acesso à Universidade no Brasil, o famoso Vestibular, para o qual terão de empinar uma série de regras absurdas e de pesadelo , sobre a acentuação, para quem não sabe já acentuar graficamente as palavras...na escrita).Portugal pode ficar a "vê-los passar"....

Repito: Isto é um CRIME contra a língua Portuguesa e, como se vê pela pequena amostra do jornalito, já está a criar confusão, pois
 o novo AO já está a ser aplicado em palavras que estão, segundo este, isentas de serem sujeitas ao decepar de consoantes, pois simplesmente NÃO são mudas! E a regra de "nuns casos desaparece noutros aceita-se a dupla grafia" (tudo para não causar qualquer mossa ou adaptação à forma como os falantes brasileiros já escrevem!) está assim já começar a criar o caos, com uma ortografia que ignora o problema da aprendizagem da Língua, a pronúncia de uma boa parte dos falantes (em Portugal mas também na maioria dos PALOP) e as origens linguísticas que ajudavam a clarificar certas situações. Bem podem comparar com a arbitrariedade da Grafia do Inglês, mas com o mal dos outros podemos bem e não devemos esquecer que a nossa Língua não tem a divulgação comercial e planetária da Língua Inglesa e tem já bastante complexidade a nível da sintaxe, só por exemplo, para dar que fazer a quem a está a aprender como Língua estrangeira!
Por isso não duvidem: a
 Língua Portuguesa já está a ser devidamente ESPETADA e cozinhada no forno da estupidez dos burocratas e dos criminosos da Cultura!

(ADENDA:
Como mencionei em post anterior, sempre achei que deveria haver mais do que uma negociata por detrás desta pressa em impôr o novo AO. E não me enganava,até de forma mais lucrativa do que eu julgava. A verdade à tona vem....Mas como o texto já vai longo, deixarei isso para outra ocasião).

Alergia
Dez.2010



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sexta-feira, 11 de novembro de 2011

A Ditadura da Necessidade

A302 Victoria street, London. Near Victoria St...Image via Wikipedia



António Campos


Aqueles que agora invocam a necessidade foram os mesmos que a provocaram

Um velho provérbio lembra: a necessidade não precisa de lei. Foi em torno desta ideia fundamental, formulada inicialmente por teólogos e canonistas medievais, que se veio a estruturar a teorização de regimes autoritários e ditaduras. Os argumentos utilizados pela retórica política autoritária assentam no binómio necessidade e urgência. Actos administrativos ilegais e leis inconstitucionais sempre foram apresentados e justificados debaixo da ideia de que eram urgentes e necessários.

Outra máxima política dos tempos da monarquia absoluta era que as loucuras dos reis pagam os povos. Hoje, mesmo sem reis, continuam a ser os povos a pagar as loucuras dos governantes. Quando ainda ecoam as comemorações da República e a invocação da ética e do ethos republicano, fica claro que a retórica dos discursos comemorativos nada tem que ver com a prática política, nomeadamente a expropriação sem justa causa ou a nacionalização arbitrária dos rendimentos de tantos portugueses.

Estão em causa três exigências fundamentais da política e da ética democráticas: representação, diálogo, publicidade. Se os deputados representam o povo é debaixo da condição de respeitarem as promessas políticas que determinaram a sua eleição. Se os deputados não respeitam esse compromisso não são dignos desse nome. Como escreveu Norberto Bobbio, as promessas não cumpridas matam a democracia. A democracia é também diálogo. Contraposta à ideia de razão de Estado, que não pode ser negociada, a ideia de razão pública é que tem de existir debate, consenso social alargado nas questões fundamentais da coisa pública. Hoje regressa a política do segredo e da razão de Estado. Mas precisamente o que a opinião pública quer saber, precisa de saber e numa democracia tem o direito de saber é a razão de ser das medidas decretadas pelos políticos, em que estudos preparatórios se baseiam, que consequências foram medidas. O segredo domina, quando não sabemos o que levou o governo a mudar de ideias, dias passados sobre promessas e compromissos com negócios. A opinião pública gostaria de ter acesso às actas do Conselho de Ministros e aos documentos preparatórios do Orçamento do Estado.

A opinião pública gostaria que existisse um relatório público com os gastos com a nacionalização do BPN: se os contribuintes têm de pagar milhares de milhões de euros dos seus impostos e salários, isto significa que outras pessoas beneficiaram com esses milhões. Os representantes dos contribuintes têm o dever de se interessar por saber para que bolsos foram transferidos esses dinheiros. Ou os dinheiros das parcerias público-privadas. Ou dos estádios do Euro, entre tantos gastos sumptuários e desnecessários.

Os escândalos financeiros da Primeira República foram uma das principais causas do seu descrédito. E os da Terceira República? Denunciados por muitos, demonstrados pelo Tribunal de Contas em muitos casos não pode passar-se uma esponja sobre eles.

Ao mesmo tempo, uma imensa oligarquia beneficia da desestruturação do Estado. Aqueles que agora invocam a necessidade foram os mesmos que a provocaram. A ética republicana apregoada ontem deveria recordar que em nenhum caso pode um funcionário do Estado receber mais que o chefe de Estado. A redução dos salários excessivos é imperiosa, por uma questão de princípio e de justiça.

Chegamos assim a um ambiente geral de fim da República, assente nos escândalos financeiros, na falta de moralidade com os gastos públicos, na ausência de uma política de coesão social e regional, mas também na ausência de representação democrática. Quanto ao argumento invocado é o de que a ditadura da necessidade impõe estas soluções – e não quaisquer outras, a estudar e negociáveis – e, quando os políticos estão comprometidos com anos de governação que não evitaram chegar à solução da necessidade, o regime é afinal o da ditadura da necessidade.

Se não existe representação nem publicidade não vivemos numa democracia. Quando muito, recorrendo a uma velha intuição de Platão, vive-se numa teatrocracia, que utiliza a televisão e outros meios de comunicação para representar um papel – como no teatro os actores declamam e repetem um texto anterior. Ou numa oligarquia, em que um grupo restrito monopoliza o poder para seu benefício. Não se ouviu, aliás, proclamar que o povo tem de sofrer as dores dos seus governantes? Nem mesmo um nobre numa monarquia seria capaz de dizer semelhante absurdo.

A ditadura da necessidade é apenas um argumento utilizado para justificar a suspensão da democracia e do que ela implica: valores e princípios, discussão na esfera pública acerca das decisões políticas, consenso sobre os aspectos fundamentais da vida social.

Em democracia há sempre alternativas.

Pedro B. Homem de Melo
Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa


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sexta-feira, 4 de novembro de 2011

A chico-espertice entra na percepção da corrupção?

Corruption-NouakchottImage via Wikipedia



António Campos


A divulgação do Barómetro Global da Corrupção 2010, de que o DN dá conta, contendo conclusões que revelam terem os portugueses (83%) a percepção de que a corrupção aumentou desde 2007 e que os políticos são a classe mais corrupta de Portugal, pode ter muitas explicações de natureza científica ou técnica. Para tudo é possível encontrar uma explicação que tenha sentido.

Essa percepção não é nova e eu próprio estou convencido de que ela tem vindo a agravar-se sistematicamente e não apenas desde 2007. Vem de muito antes. Estaria mesmo tentado a dizer que desde finais dos anos 70 que a tendência verificada é sempre a mesma e só não o digo porque não possuo dados que me permitam afirmá-lo. Não será uma percepção, mas antes uma convicção.

Estudos e barómetros como aqueles que regularmente aparecem sobre o tema da corrupção se por um lado podem continuar a alertar-nos para a necessidade do Estado de Direito e das suas instituições travarem uma luta sem quartel contra a corrupção, ao mesmo tempo podem deixar nas pessoas que se apercebem dessas percepções e da evolução do barómetro uma tremenda sensação de impotência e de resignação que poderá levá-las a pensar que esse combate se torna mais difícil em cada dia que passa, levando-as a continuarem a condescender com o pequeno tráfico de influências, com a vulgar e portuguesíssima "cunha". Os tribunais têm também contribuído para o agravamento do sentimento de impunidade com algumas decisões que ofendem de forma gravosa e acintosa o sentimento jurídico dominante na comunidade e tudo isto concorre para o aumento do "bolo".

Acontece que esse sentimento de que os estudos dão conta continua a merecer condescência, quando não compreensão por parte dos agentes políticos, cuja tendência é muitas vezes para desvalorizarem os sinais, seja por razões de tacticismo político e eleitoral, seja porque eles próprios,  descrentes das virtudes do sistema embora não o possam dizer, temem o alarme social causado por uma valorização excessiva desses mesmos sinais.  Em qualquer um dos casos é, a meu ver, uma atitude errada e que merece ser criticada.

Há muito que defendo um maior vigor na taxação das sociedades "offshore" como primeiro passo para a sua ilegalização; ao lado de um aumento e maior empenho nos mecanismos da transparência e de combate à corrupção, que sem demagogia barata ou populismos desnecessários vá criando nos agentes do fenómeno da corrupção - activos e passivos - e na generalidade das pessoas um sentimento diferente daquele de impunidade que ainda hoje, como se vê, continua a imperar.

Os Açores não são diferentes da Madeira e é óbvio que não pode haver dois pesos e duas medidas consoante esteja em causa um ou outro dos arquipélagos. Cavaco Silva já se viu que sofre de um complexo autonómico (de outros também) em relação aos socialistas açorianos, que não encontra correspondência nas suas declarações e tomadas de posição sobre o que se vai passando na Madeira, mas é de todo inaceitável que gente com responsabilidades executivas esteja pronta para contemporizar com o discurso de Carlos César. É que é tão mau este discurso quanto o daqueles que esquecem ou silenciam o que diariamente ocorre na Madeira, como o que ainda recentemente ocorreu com o "perdão" aos milhões generosamente distribuídos pelos partidos políticos da região.

Mais do que punir a corrupção, e puni-la de forma exemplar, tarefa que terá de continuar reservada aos tribunais se quisermos ser um Estado de direito, começa ser imperioso "punir" a chico-espertice. Só que este é um combate solitário travado diariamente e no qual me quer parecer que são cada vez menos os que nele se empenham. Mas esse é também um combate pela cidadania e é nestas alturas em que as convicções tendem a ser ofuscadas pela frivolidade mediática e as necessidades do quotidiano que importa resistir, marcar uma posição, recusar a contemporização, dizer não à complacência.(…)

(adaptado)
Sérgio de Almeida Correia
Dez2010

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sexta-feira, 28 de outubro de 2011

amigos e companheiros

Best Friends TogetherImage via Wikipedia



António Campos


a solidariedade é o bem mais prezado.

Dois conceitos de difícil definição. Dois conceitos relacionados com os sentimentos, com a interacção social. Conceitos diferentes para adultos e crianças, para classe social, para o tempo que passa e se escorre entre a cronologia da História e os hábitos definidos ao longo do tempo.

Normalmente, o conceito de amigo, é ser solidário com problemas, alegrias, amarguras, amores e desencantos das pessoas com quem convivemos em momentos e alturas diferentes. Por outras palavras, eu diria que é estar ao dispor de seres humanos que amamos e dos quais dependemos nas ideias, no trabalho e, especialmente, na educação das crianças que, por causa da nossa amizade de adultos, passam a ser não apenas pequenos que entendem em conjunto a interacção social, a dependência dos adultos e a disciplina que estes lhes incutem. Este comportamento separa já os dois conceitos que refiro: amigos e companheiros. A subordinação às formas de ser, agir, ouvir e aceitar, faz das crianças amigas e companheiras. O adulto, com maior experiência de interacção na vida social e na cronologia histórica acumulada no tempo, torna possível separar as duas palavras: amigo, dependente; companheiro, fidelidade sem condições. Acrescentaria ainda que, como conceito, amigo define uma hierarquia que depende do lugar social que a pessoa ocupa ou do lugar que alcançou na vida. Além desta ideia, tenho a ousadia de dizer que, perdida a hierarquia, a pessoa que se diz amiga acaba por não ter ninguém que o acompanhe: Difícil querer definir amigo.

Amigo é quem te dá um pedacinho do chão, quando é de terra firme que precisas, ou um pedacinho do céu, se é o sonho que te faz falta. Amigo é mais que ombro que aconchega, é mão estendida, mente aberta, coração pulsante, costas largas. É quem tentou e fez, e não tem o egoísmo de não querer compartilhar o que aprendeu. É aquele que cede e não espera retorno, porque sabe que o acto de compartilhar um instante qualquer contigo já o alimenta, satisfaz. É quem já sentiu ou um dia vai sentir o mesmo que você. É a compreensão para o seu cansaço e a insatisfação para a sua reticência.

É aquele que entende seu desejo de voar, de sumir devagar, a angústia pela compreensão dos acontecimentos, a sede pelo “porvir”. É ao mesmo tempo espelho que te reflecte, e óleo derramado sobre suas águas agitadas. É quem fica enfurecido por enxergar seu erro, querer tanto o seu bem e saber que a perfeição é utopia. É o sol que seca suas lágrimas, é a polpa que adocica ainda mais seu sorriso.

Este comentário, define essa interacção individual, hierarquizada na interacção amigável. Queria, ainda, recordar o leitor, as minhas lembranças das relações de Durkheim, Lenine, Marcel Mauss e a orientação que o saber de Marx soube entregar, enquanto todos estavam ainda vivos e em interacção, “espelho que te reflecte, e óleo derramado sobre a água agitada”, esses tempos partilhados enquanto as relações sociais mudavam na Europa.
As crianças aprendem as relações de amizade sem comentários, esses que eu ofereço ao leitor em jeito de companheira (ou nota de nota de roda pé). Companheira, enquanto queria definir companheiro ou a pessoa que substitui o amigo que partiu e desenvolve o seu legado, como Durkheim fez de Marx e Mauss de Durkheim e Lenine. Companheiro é quem desenvolve a amizade “companheiro é mais que ombro amigo, é mão estendida, mente aberta, coração pulsante, costas largas. É quem tentou e fez, e não tem o egoísmo de não querer compartilhar o que aprendeu.”

Queria acabar apenas com uma ideia: perdido o poder, o companheirismo suporta a amizade que parece ter fugido quando mais dela se necessita.

É-me imperativo perguntar, após escrita e como nota de fim: afinal, onde estão os amigos? (…)
(adaptado)
 Raul Iturra
Dez2010


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sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Os mitos

"O Basto" - estátua de guerreiro lus...Image via Wikipedia



António Campos


"Boa parte de nossa infelicidade nasce do fato de vivermos rodeados por mitos. Deixamos que aflorem e construímos em cima deles a nossa desgraça"

Boa parte de nossa infelicidade ou aflição nasce do fato de vivermos rodeados (por vezes esmagados ou algemados) por mitos. Nem falo dos belos, grandiosos ou enigmáticos mitos da Antiguidade grega. Falo, sim, dos mitinhos bobos que inventou nosso inconsciente medroso, sempre beirando precipícios com olhos míopes e passo temeroso. Inventam-se os mitos, ou deixamos que aflorem, e construímos em cima deles a nossa desgraça.

Por exemplo, o mito da mãe-mártir. Primeiro engano: nem toda mulher nasce para ser mãe, e nem toda mãe é mártir. Muitas são algozes, aliás. Cuidado com a mãe sacrificial, a grande vítima, aquela que desnecessariamente deixa de comer ou come restos dos pratos dos filhos, ou, ainda, que acorda às 2 da manhã para fritar (cheia de rancor) um bife para o filho marmanjo que chega em casa vindo da farra. Cuidado com a mãe atarefada que nunca pára, sempre arrumando, dobrando roupas, escarafunchando armários e bolsos alheios sob o pretexto de limpar, a mãe que controla e persegue como se fosse cuidar, não importa a idade das crias. Essa mãe certamente há de cobrar com gestos, palavras, suspiros ou silêncios cada migalhinha de gentileza. Eu, que me sacrifiquei por você, agora sou abandonada, relegada, esquecida? E por aí vai...

Ou o mito do bom velhinho: nem todo velho é bom só por ser velho. Ao contrário, se não acumularmos bom humor, autocrítica, certa generosidade e cultivo de afetos vários, seremos velhos rabugentos que afastam família e amigos. Nem sempre o velho ou velha estão isolados porque os filhos não prestam ou a vida foi injusta. Muitas vezes se tornam tão ressequidos de alma, tão ralos de emoções, tão pobres de generosidade e alegria que espalham ao seu redor uma atmosfera gélida, a espantar os outros.

E o mito do homem fortão, obrigado a ser poderoso, competente, eterno provedor, quando esconde como todos nós um coração carente, uma solidão fria, a necessidade de companhia, de colo e de abraço – quando é, enfim, apenas um pobre mortal.

Falemos ainda no mito da esposa perfeita, aquela da qual alguns homens, enquanto pulam valentemente a cerca, dizem: "Minha mulher é uma santa". Sinto muito, mas nem todas são. Eu até diria que, mais vezes do que sonhamos, somos umas chatas. Sempre reclamando, cobrando, controlando, não querendo intimidades, ocupadas em limpar, cozinhar, comandar, irritar, na crença vã de que boa mulher é a que mantém a casa limpa e a roupa passada. Seria bem mais humano ter braços abertos, coração cálido, compreensão, interesse e ternura.

O mito de que a juventude é a glória demora a ruir, mas deveria. Pois jovem se deprime, se mata, adoece, sofre de perdas, angustia-se com o mercado de trabalho, as exigências familiares, a pressão social, as incertezas da própria idade. A juventude – esquecemos isso tantas vezes – é transformação por vezes difícil, com horizontes nublados e paulatina queda de ilusões. É fragilidade diante de modelos impossíveis que nos são apresentados clara ou subliminarmente o tempo todo.

Enfim, a lista seria longa, mas, se a gente começar a desmitificar algumas dessas imagens internalizadas, começaremos a ser mais sensatamente felizes. Ou, dizendo melhor: capazes de alegria com aquilo que temos e com o que podemos fazer numa vida produtiva, porque real.


Lya Luft é escritora
Dez.2010

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sexta-feira, 14 de outubro de 2011

As desigualdades são a maior insegurança

Padrão dos Descobrimentos. The Monument to the...Image via Wikipedia

António Campos


No final de Novembro, com poucos dias de intervalo, Portugal foi palco de dois acontecimentos que mostram bem como existem, em linhas gerais, duas narrativas em disputa sobre o que se entende por segurança. O primeiro foi a Cimeira da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), que teve lugar em Lisboa a 19 e 20 de Novembro, e o segundo a Greve Geral de 24 de Novembro, a maior que o país conheceu em toda a sua história. A Aliança Atlântica privilegia uma concepção de segurança como resposta político-militar a ameaças que, em qualquer parte do globo, ponham em causa os interesses estratégicos dos seus Estados-membros. O movimento de contestação às políticas de austeridade que se traduziu na Greve Geral entende a segurança como a construção de sociedades de bem-estar, processo em que é dada prioridade ao combate às desigualdades socioeconómicas.

A primeira narrativa toma como um dado a existência, e até a multiplicação, de ameaças à segurança (das convencionais às sanitárias e ambientais), não actuando sobre as suas causas e acabando por recorrer a meios que tendem até a agravar os problemas A segunda narrativa procura intervir sobre as causas fundamentais da insegurança que corrói as sociedades (das assimetrias de rendimentos à injustiça fiscal, ao desemprego ou à pobreza), inserindo-se numa história de movimentos sociais que tem sido responsável pelas configurações de sociedades mais estáveis e morais, mais coesas e seguras, que conhecemos.

Sobretudo em momentos de crise como o que atravessamos, em que se tornam mais evidentes as escolhas envolvidas na afectação de recursos escassos e em que tendem a aumentar as respostas securitárias à legítima manifestação da discordância, seria útil que se deixasse de pensar, à boleia do que é veiculado pela generalidade da comunicação social, que do lado do conceito de segurança da OTAN está um qualquer consenso global sobre como garantir a paz e só do lado da concepção dos movimentos sociais existe uma posição não consensual, que traduz e gera conflitos internos. Mesmo correndo o risco de alguma simplificação, é importante que se compreenda que ambas as formas de entender a segurança correspondem a visões do mundo e à defesa de princípios e interesses que conflituam… com outros princípios e interesses. E que se compreenda também que em ambas as narrativas estão presentes leituras actualizadas da globalização neoliberal, que não estão presas a qualquer perspectiva do passado (a Guerra Fria ou o pré-crise), mesmo quando divergem, por exemplo, na necessidade de promover ou combater os mecanismos de desenvolvimento do capitalismo financeiro.
Atente-se em alguns aspectos da concepção de segurança mundial que está patente no «Novo Conceito Estratégico» aprovado em Lisboa na Cimeira da OTAN, intitulado«Compromisso Activo, Defesa Moderna». Em primeiro lugar, formaliza-se a associação entre defesa e segurança, alargando a esfera de actividade: da resposta aos ataques convencionais até à gestão de crises e à segurança colectiva. Daqui decorre a extensão, virtualmente à escala global, do perímetro geográfico de actuação para fora do espaço do Atlântico Norte, mesmo que a organização continue a definir-se como regional (formalizam-se práticas anteriores).

Aos novos espaços de actuação da organização juntam-se as novas parcerias e as novas alianças com diferentes actores políticos, militares e civis, bem como a definição das «novas ameaças» à «segurança do século XXI»: armas convencionais, nuclear, terrorismo, grupos extremistas, pirataria, ciber-ataques, actividades ilegais transnacionais (tráfico de armamento, narcóticos e seres humanos), ataques a vias de comunicação e de transporte de recursos estratégicos (controlo da energia, comércio…), bem como perigos para a saúde ou decorrentes das alterações climáticas, da escassez de água, etc. A Aliança Atlântica entende que todas estas «ameaças» vão «moldar o ambiente de segurança futura em áreas importantes» para os seus Estados-membros, ou seja, que a defesa dos interesses estratégicos (políticos, económicos…) destes países poderá suscitar, para todas essas ameaças, intervenções político-militares a oscilar entre a concertação, a persuasão e o conflito aberto.

Há que reconhecer que o instrumento político-militar forjado por este «Novo Conceito» está bem ajustado à geopolítica da globalização. A aposta num conceito ágil e capaz de se moldar à «instabilidade» e às «incertezas» do mundo contemporâneo não é uma indefinição ou fraqueza existencial, é uma opção estratégica e eficaz − preocupante. É uma resposta bem adaptada a dar segurança ao mundo líquido dos mercados financeiros, ao mundo dos conflitos pelo controlo dos recursos naturais «estratégicos» e ao mundo das alianças em constante (e imprevisível) reconfiguração. Um instrumento flexível, a meio caminho entre a substituição do «mundo unipolar» pela«renovação da nova liderança dos Estados Unidos» [1] e as novas disputas de hegemonia por parte de potências emergentes, como a China, de cujo desenvolvimento económico não resultará necessariamente um mundo multipolar.

Mas serão estes os verdadeiros perigos para a insegurança com que as sociedades hoje se confrontam e será o instrumento político-militar o mais adequado para lhes dar resposta? Será possível encarar o problema do fundamentalismo sem pôr fim à islamofobia ou sem resolver os problemas socioeconómicos das sociedades onde ele cresce, quando essas zonas são tratadas como interesses estratégicos devido ao acesso a recursos energéticos? Será possível resolver de forma justa conflitos sobre a água enquanto este bem escasso for tratado como recurso estratégico pelo qual se luta, e que ganhe o mais forte, em vez de ver visto como um bem comum? Será possível cuidar da saúde da humanidade com remédios político-militares quando a montante não se dá prioridade à garantia de que todos os cidadãos estão bem nutridos e têm acesso universal e gratuito a cuidados de saúde de qualidade?

Para o movimento sindical e social que ganhou corpo na Greve Geral de 24 de Novembro, o maior perigo para a segurança das sociedades, em particular a europeia, é actualmente essa concertação entre os governos nacionais e as instâncias da União Europeia para impor políticas cada vez mais austeritárias, que condenam as economias, sobretudo as periféricas, a espirais recessivas e que são acompanhadas de um aumento galopante das desigualdades socioeconómicas.

De acordo com este ponto de vista, a insegurança − a falta de autonomia, a angústia, o medo − tem como causa o processo de disputa do Estado pelo neoliberalismo que tem vindo a desviar os recursos e as finalidades dos poderes públicos, a que estão obrigados pelo contrato social democrático, para permitir a acumulação do capital financeiro e o aprofundamento das desigualdades socioeconómicas. O projecto neoliberal fá-lo através de rendimentos cada vez mais assimétricos, e não redistribuídos, de políticas fiscais que continuam a recusar-se a taxar o sistema financeiro (apesar de ser o responsável pela crise) e pela destruição activa dos mecanismos de segurança que as sociedades conseguiram construir através das leis laborais e dos serviços públicos (educação, saúde, segurança social…). O maior desafio à segurança do século XXI é a defesa do Estado social, do chamado modelo social europeu, que está a ser destruído pela própria União Europeia.

É a clarificação de posições divergentes que dignifica a informação e o debate de ideias e que permite que os cidadãos participem na democracia como coisa sua. A imagem meramente ritualista dos acontecimentos, seja ela positiva ou negativa, que ignora os seus contextos e o que de substantivo neles está em jogo, assemelha-se, na melhor hipótese, a esses alimentos-lixo que podem dar alguma satisfação momentânea mas são vazios de nutrientes ou, na hipótese pior (mas realista), esconde a imposição mediática de falsos consensos políticos que só traduzem uma relação de poder. E, nas condições actuais, bem se sabe de que lado está o poder, o dos que tudo podem fazer, sem nunca pagarem por isso, porque outros são sempre chamados a pagar a factura. Até que um dia a devolvam ao remetente, de preferência com juros de mora e indemnização por danos causados.


Notas
[1] Barack Obama, «Renewing American Leadership», Foreign Affairs, Julho de 2007.

por Sandra Monteiro
Dez.2010


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sexta-feira, 7 de outubro de 2011

A maior desgraça de uma nação pobre é que em vez de produzir riqueza, produz ricos. Mas ricos sem riqueza…

Mia Couto (Mozambican writer)Image via Wikipedia



António Campos


A maior desgraça de uma nação pobre é que em vez de produzir riqueza, produz ricos. Mas ricos sem riqueza.

Na realidade, melhor seria chamá-los não de ricos mas de endinheirados. Rico é quem possui meios de produção. Rico é quem gera dinheiro e dá emprego.

Endinheirado é quem simplesmente tem dinheiro. ou que pensa que tem. Porque, na realidade, o dinheiro é que o tem a ele.A verdade é esta: são demasiados pobres os nossos "ricos". Aquilo que têm, não detêm. Pior: aquilo que exibem como seu, é propriedade de outros. É produto de roubo e de negociatas.

Não podem, porém, estes nossos endinheirados usufruir em tranquilidade de tudo quanto roubaram. Vivem na obsessão de poderem ser roubados. Necessitavam de forças policiais à altura. Mas forças policiais à altura acabariam por lança-los a eles próprios na cadeia. Necessitavam de uma ordem social em que houvesse poucas razões para a criminalidade. Mas se eles enriqueceram foi graças a essa mesma desordem (...)

 Rico é quem possui meios de produção. Rico é quem gera dinheiro» dá emprego. Endinheirado é quem simplesmente tem dinheiro. Ou que pensa que tem. Porque, na realidade, o dinheiro é que o tem a ele. A verdade é esta: são demasiado pobres os nossos “ricos”. Aquilo que têm, não detêm. Pior, aquilo que exibem como seu é propriedade de outros. É produto de roubo e de negociatas. Não podem, porém, estes nossos endinheirados usufruir em tranquilidade de tudo quanto roubaram. Vivem na obsessão de poderem ser roubados.

Necessitariam de forças policiais à altura. Mas forças policiais à altura acabariam por os lançar a eles próprios na cadeia. Necessitariam de uma ordem social em que houvesse poucas razões para a criminalidade. Mas se eles enriqueceram foi graças a essa mesma desordem.

O maior sonho dos nossos novos-ricos é, afinal, muito pequenito: um carro de luxo, umas efémeras cintilâncias. Mas a luxuosa viatura não pode sonhar muito, sacudida pelos buracos das avenidas. O Mercedes e o BMW não podem fazer inteiro uso dos seus brilhos, ocupados que estão em se esquivar entre chapas muito convexos e estradas muito côncavas. A existência de estradas boas dependeria de outro tipo de riqueza Uma riqueza que servisse a cidade. E a riqueza dos nossos novos-ricos nasceu de um movimento contrário: do empobrecimento da cidade e da sociedade.

As casas de luxo dos nossos falsos ricos são menos para serem habitadas do que para serem vistas. Fizeram-se para os olhos de quem passa. Mas ao exibirem-se, assim, cheias de folhos e chibantices, acabam atraindo alheias cobiças. O fausto das residências chama grades, vedações electrificadas e guardas privados. Mas por mais guardas que tenham à porta, os nossos pobres-ricos não afastam o receio das invejas e dos feitiços que essas invejas convocam.

Coitados dos novos ricos. São como a cerveja tirada à pressão. São feitos num instante mas a maior parte é só espuma. O que resta de verdadeiro é mais o copo que o conteúdo. Podiam criar gado ou vegetais. Mas não. Em vez disso, os nossos endinheirados feitos sob pressão criam amantes. Mas as amantes (e/ou os amantes) têm um grave inconveniente: necessitam ser sustentados com dispendiosos mimos. O maior inconveniente é ainda a ausência de garantia do produto. A amante de um pode ser, amanhã, amante de outro. O coração do criador de amantes não tem sossego: quem traiu sabe que pode ser traído.

Os nossos endinheirados-às-pressas não se sentem bem na sua própria pele. Sonham em ser americanos, sul-africanos. Aspiram ser outros, distantes da sua origem, da sua condição. E lá estão eles imitando os outros, assimilando os tiques dos verdadeiros ricos de lugares verdadeiramente ricos. Mas os nossos candidatos a homens de negócios não são capazes de resolver o mais simples dos dilemas: podem comprar aparências, mas não podem comprar o respeito e o afecto dos outros. Esses outros que os vêem passear-se nos mal-explicados luxos. Esses outros que reconhecem neles uma tradução de uma mentira. A nossa elite endinheirada não é uma elite: é uma falsificação, uma imitação apressada.

A luta de libertação nacional guiou-se por um princípio moral: não se pretendia substituir uma elite exploradora por outra, mesmo sendo de uma outra raça. Não se queria uma simples mudança de turno nos opressores. Estamos hoje no limiar de uma decisão: quem faremos jogar no combate pelo desenvolvimento? Serão estes que nos vão representar nesse relvado chamado “a luta pelo progresso”? Os nossos novos ricos (que nem sabem explicar a proveniência dos seus dinheiros) já se tomam a si mesmos como suplentes, ansiosos pelo seu turno na pilhagem do país.

São nacionais mas só na aparência. Porque estão prontos a serem moleques de outros, estrangeiros. Desde que lhes agitem com suficientes atractivos irão vendendo o pouco que nos resta. Alguns dos nossos endinheirados não se afastam muito dos miúdos que pedem para guardar carros. Os novos candidatos a poderosos pedem para ficar a guardar o país. A comunidade doadora pode irás compras ou almoçar à vontade que eles ficam a tomar conta da nação. Os nossos ricos dão uma imagem infantil de quem somos. Parecem criancas que entraram numa loja de rebuçados. Derretem-se perante o fascínio de uns bens de ostentação.

Servem-se do erário público como se fosse a sua panela pessoal. Envergonha-nos a sua arrogância, a sua falta de cultura, o seu desprezo pelo povo, a sua atitude elitista para com a pobreza. Como eu sonhava que Moçambique tivesse ricos de riqueza verdadeira e de proveniência limpa! Ricos que gostassem do seu povo e defendessem o seu país. Ricos que criassem riqueza. Que criassem emprego e desenvolvessem a economia. Que respeitassem as regras do jogo. Numa palavra, ricos que nos enriquecessem. Os índios norte-americanos que sobreviveram ao massacre da colonização operaram uma espécie de suicídio póstumo: entregaram-se à bebida até dissolverem a dignidade dos seus antepassados. No nosso caso, o dinheiro pode ser essa fatal bebida. Uma parte da nossa elite está pronta para realizar esse suicídio histórico. Que se matem sozinhos. Não nos arrastem a nós e ao país inteiro nesse afundamento.

Mia Couto
Dez 2010

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