sexta-feira, 25 de abril de 2014

Ensaio da auto-flagelação, Boaventura

 

 Boaventura de Sousa Santos

"Boaventura de Sousa Santos escreveu um Ensaio Contra a Auto-Flagelação, que tem Portugal no centro do furacão. As palavras centrais do discurso: identidade, crise, esperança. Os protagonistas: a Grécia, as instâncias internacionais, o português (suave) modo de ser numa Europa belicosa. Quem é que leva uma corrida? Cavaco, a banca, Merkel e Sarkozy, os que têm olho rútilo nos lucros, mesmo que isso implique o desmoronamento de uma economia, e consequentemente de um país, e consequentemente de um povo.
Portugal vive dias especialmente inquietantes. Boaventura diz que cada geração vive o seu momento como se fosse o último. Somos, como numa canção de Chico Buarque, uma gente que tem medo de morrer na contramão atrapalhando o tráfego. E falamos, mais do que nunca, desse medo, da urgência, das nossas idiossincrasias. Pensamo-nos. E pelo meio dedicamo-nos ao nosso desporto favorito: a fustigação.
Com o sociólogo Boaventura Sousa Santos, iniciamos uma série de entrevistas em que o nosso foco, mais do que qualquer outro, é Portugal e os mecanismos do Poder. Não falámos, por isto, com ele, e como seria habitual neste registo de entrevistas, das razões porque divide os meses entre Portugal e os Estados Unidos, da sua imensa popularidade no Brasil, das razões porque a sua lupa incide sobre o homem na esfera social, e muito sobre a sociologia do direito. Doutorou-se na reputada universidade de Yale. Mantém um sotaque de Coimbra de quem faz daquela terra, ainda, a sua terra.

(Preâmbulo: grava a entrevista para ficar com um registo para si? Não é a primeira vez que me acontece, mas foi quase sempre com estrangeiros.
É por vício profissional. Entre o jornalista e o sociólogo há alguma convergência: usam os mesmos métodos de recolha de dados.

O testemunho.
No projecto para o doutoramento que fiz, vivendo nas favelas do Rio de Janeiro, não podia usar gravador. Estávamos num período de ditadura. Quase não podia entrevistá-los com papel na mão. Tinha um diário de campo, acabava as entrevistas, metia-me num botequim e transcrevia tudo de cabeça. Quando é possível, o gravador capta uma presença da minha vida. Posso, amanhã, pô-la na minha página.

Este pormenor pode dizer coisas do que são os portugueses – e já entro no âmbito da entrevista. É normal sentirem-se postos em causa, que a acção do outro é questionante de quem são e do seu espaço. Quando alguém diz: “O teu trabalho não está bem feito”, a reacção, frequentemente, é: “Porque é que me estás a atacar?”.
Não é nada o caso. Desligo a minha gravação, se fica mais à vontade. Não tenho medo que me ponha em causa.

Não. Seria eu a pessoa posta em causa. Mas não me incomoda nada que grave.) Acha que Portugal está num particular “momento de perigo”, que é uma expressão que usa no Ensaio Contra a Auto Flagelação? Se olharmos para os últimos séculos, Portugal parece estar sempre num momento de agonia, ou de pré-agonia, na véspera de qualquer coisa que vai suceder e que se imagina salvífica, e que é sempre protelada.
Qualquer geração tem tendência a ler o momento que vive como um momento de perigo, como uma situação única, sem precedentes. Se analisarmos a história contemporânea de Portugal não é essa a leitura que colhemos. Apesar de todas as crises e conflitos, não deixa de ser evidente que a sociedade portuguesa, neste século [XX], teve progressos extraordinários. Um discurso extremamente crítico das suas condições, alertas para perigos abissais, não impediram a sociedade de fazer o seu caminho. Mas não soubemos pactuar grandes transformações. Nenhuma das independências deste vastíssimo império colonial que tivemos pôde depender de negociações tranquilas, programadas, pactadas entre a potência colonial e as colónias. O mesmo sucedeu com os nossos aliados – fosse a Inglaterra, fosse a Alemanha – no final do século XIX.

Conseguimos impor-nos – expressão disso é a maneira como nos instalámos nos territórios que foram sendo desbravados durante a Expansão. Mas, historicamente, parece haver uma crónica dificuldade em negociar com o outro. Estamos sempre no tudo ou nada.
Negociámos muito bem no mundo. Não negociámos bem na Europa. Os nossos comerciantes, os que quiseram expandir o império, em nome dos nossos reis, fizeram-no negociando muito. Gungunhana, antes de ser um celerado nas mãos de Mouzinho de Albuquerque, foi um rei com o qual Portugal negociou e teve embaixadores. Foi um tipo de colonialismo assente na negociação.

A dificuldade em negociar com a Europa: é uma dificuldade em negociar com iguais?
Com aqueles que não são iguais. Na Europa nunca houve iguais. E por isso houve aqui tanta guerra. E por isso temos de zelar tanto por ela. É um continente violento, de lutas fratricidas e com duas guerras mundiais no mesmo século. O que tem havido sempre é hierarquia. Entre países do norte, países do sul, países do ocidente, países do leste, com situações de colonialismo (o da Inglaterra sobre a Irlanda, por exemplo). Desde muito cedo Portugal e Espanha tiveram um papel dominante que termina, no nosso caso, no final do século XVI. Dividiram o mundo entre si, ninguém lhes disputava o poder. Quando entram em crise, são outros os países que começam a dominar o mundo.

O que é que faz que uma nação exerça domínio sobre outras? É sobretudo o aspecto financeiro? Quem manda é quem tem dinheiro?
Não quer dizer que seja capital financeiro. Vai haver sempre uma luta entre aqueles que dominam o capital produtivo e aqueles que dominam o capital financeiro. Até muito recentemente, até 1980, dominou sempre o capital produtivo. O capital financeiro é o que ajuda o capital produtivo a criar riqueza. Fica com uma parte – as comissões, os juros – mas sempre foi uma instância de segunda linha, ao serviço do capital produtivo, e fortemente regulada. Em 1960 um banco de Nova Iorque não podia emprestar em New Jersey – que é do outro lado do rio. Veja o nível de regulação. Temia-se que este capital financeiro, desregulado, se sobrepusesse ao capital produtivo. Foi exactamente o que aconteceu nos anos seguintes.
Portugal, como perdeu essa hegemonia, ficou dependente.

A história da dependência é antiga. Conseguimos furar este círculo?
Não furamos. Temos é de negociar melhor as nossas dependências no sentido de criar interdependências. Isso é que não temos sido capazes de fazer bem.
Foi muito importante que Portugal se tivesse libertado em 1974 do fascismo e em 75 do colonialismo. Era um país pária. Estava duplamente rejeitado pela Europa de então – porque era fascista e colonialista.

Espanha teve uma ditadura com o peso do franquismo, mas o que aconteceu a seguir foi muito diferente do que aconteceu em Portugal. No pós-franquismo, os espanhóis juntaram-se para pensar o que queriam para Espanha e como fazê-lo; em Portugal houve uma pulverização de partidos no pós-25 de Abril, uma desunião, o PREC. São duas atitudes diferentes face a um momento de ruptura.
Tinha muitos amigos em Espanha, que conhecia dos EUA ou de Inglaterra, e que foram pessoas importantes no processo, alguns ministros. Várias vezes discutimos num parador. Queriam ouvir-me sobre o que se estava a passar em Portugal. Para mim, a grande diferença entre Portugal e Espanha foi causada pelo facto de nós termos colónias e eles não. Não tínhamos condições para fazer uma continuidade. Os espanhóis puderam fazer o Pacto de Moncloa, que foi uma forma de se articularem em relação ao futuro. Em 1961, Franco entendeu que devia abrir a economia espanhola ao mercado mundial e ao investimento estrangeiro. Foi nessa altura que começou a guerra colonial e que Salazar fecha [o país].

Salazar escreveu uma carta à Coca Cola, citada no livro Os Portugueses de Barry Hatton: “O senhor arrisca-se a introduzir em Portugal aquilo que detesto acima de tudo, o modernismo e a famosa efficiency.”
Ele queria organizar uma economia de guerra. De todo o modo, quer Portugal, quer Espanha, estiveram numa situação de inferioridade em relação ao norte da Europa a partir do século XVII. Isto deu origem a muitas formas de colonialismo interno. Não colonialismo no sentido técnico, mas de concepção do outro como sendo inferior. Os frades franceses e alemães diziam de nós o que nós dizíamos dos selvagens africanos ou dos indígenas latino-americanos. Que éramos preguiçosos, lascivos, pouco higiénicos, que comíamos com as mãos, que as casas eram tegúrios.

Apesar de tudo, é um pouco diferente o que dizem hoje de nós os franceses e os alemães. Mas temos fama de preguiçosos. Somos assim?, ou somos simplesmente desorganizados?
Não somos. São estigmas. A estigmatização do outro ocorre em função de comparações que não toleram a diferença. Se os alemães têm poucos impulsos sexuais e transformam isso numa vantagem, são capazes de dizer que somos lascivos. O que disse a Sra. Merkel sobre as férias [dos portugueses] é ofensivo e não é verdade. Segundo estatísticas da OCDE que revelo no livro, trabalhamos 8,9 horas por dia.

O problema não é a quantidade, mas a produtividade.
Temos um problema de produtividade – é essa a questão. Desde há cinco séculos, só durante 12 anos Portugal esteve confinado a um rectângulo ibérico. Quando nos lançámos nas descobertas em 1415 – e é impressionante como o império esteve em três continentes – imediatamente nos extrovertemos. É aí que se dá o primeiro golpe na nossa agricultura. Depois mantivemos as colónias até 1974. Em 86, já cá não estamos, já estamos na Europa.

E isso depois de séculos nos quais se investiu nessa extensão imperial, e usufruiu do que aí vinha. Há efeitos ainda visíveis do desinvestimento que foi feito neste rectângulo, nos recursos próprios?
Como tínhamos todo este território, que o Papa dizia que era nosso, à disposição, porque havíamos de nos preocupar com as serras do Marão? O que pensávamos era que as riquezas que traríamos de fora haveriam de desenvolver aquelas regiões.

Nenhuma riqueza do Minho seria tão valiosa quanto a pimenta da Índia…
Ou o Ouro de Minas Gerais, o açúcar do Brasil, os escravos. Foi a grande ilusão, a de que não precisávamos de um centro produtivo. Tudo isto é antes do século XIX. Com a revolução industrial, as potências europeias interessam-se por África, precisam das suas matérias-primas. Carvão, minério, algodão. Queriam desenvolver os seus territórios, a Inglaterra, a Alemanha, a Itália. Portugal, que não tinha feito a revolução industrial, não tinha este imperativo. Os nossos colonizadores, depois da conferência de Berlim (em 1894/5, que faz a divisão de África), e do Ultimato, sobretudo em Moçambique, queriam fazer uma administração colonial “à inglesa”. O Terreiro do Paço não tinha essa necessidade endógena de explorar as colónias dessa maneira. António Ennes, que diz que Inglaterra, que administrou a Índia, administra melhor do que nós, sai amargurado; e Mouzinho de Albuquerque suicida-se.

“Fazer à inglesa”. Temos a ideia de que o ideal é fazer como se faz lá fora. E somos manifestamente incapazes de fazer dessa maneira. Ou porque não aprendemos, ou porque, simplesmente, não somos assim, temos outra matriz. Mas nunca se pensa em potenciar características próprias (como se fossem recursos naturais).
Tem toda a razão. Devemos fazer à portuguesa e bem. Para isso, é preciso valorizar o que temos de positivo.

E então?
Podemos ser preguiçosos, lascivos…, digam tudo o que quiserem. Mas nós não destruímos a Europa duas vezes no mesmo século. Nós não matámos seis milhões de judeus e ciganos. Isto não se pode dizer? Eu digo! Os alemães, que são a nossa referência, podem ser a nossa referência para tudo? Quando avaliamos um país, não podemos reduzi-lo a uma cifra da economia, que é o que domina hoje o comentário. Os países não são só negócios, as pessoas não são só negócios. Os países bem organizados: também são os países como mais alta taxa de suicídio. A Finlândia tem a mais alta taxa de suicídio. Será a organização que traz felicidade? A felicidade não conta? Nós não temos uma extrema-direita agressiva, xenófoba.

Agressivos? Pelo contrário, parecemos apáticos, amorfos. Parecemos?, estamos?, somos?
Agradeço-lhe que não me faça cair no preconceito dos brandos costumes. Não somos um país de brandos costumes. Temos massacres do colonialismo por esclarecer. Alguns foram crimes cometidos contra a Humanidade. Não podemos pensar que fomos benévolos… O que é que significa parecer? O que dizem publicamente de nós. Numa tradição muito portuguesa, o comentário é negativista, miserabilista, humilhante..."[...]

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sexta-feira, 4 de abril de 2014

Geopolítica do salto de esquis


"A questão do respeito pelos direitos humanos e das regulamentações ambientais, quando colocada a um mestre-de-obras que trabalha nas instalações olímpicas, vale-nos um olhar incrédulo, de tal forma o tema lhe parece extravagante. No essencial, é isto que nos respondem: se tivesse sido necessário começar por erradicar a corrupção sistémica e consultar a população a cada decisão administrativa, as fundações da pista de patinagem ainda hoje mal estariam secas. «O Comité Internacional Olímpico suspendeu qualquer iniciativa democrática quando caucionou a realização de obras colossais num tempo recorde!», confirma Fedor Lukianov, chefe de redacção da revista de diplomacia Russia in Global Affairs«A partir desse momento, por natureza, o que se passa em Sochi não poderia ser, em caso algum, um teste para o Estado de direito no nosso país.»
Que importam as críticas: o facto de o país respeitar os compromissos assumidos permitiu ao presidente Vladimir Putin vencer uma primeira batalha simbólica. A Rússia consolida o seu estatuto de Estado próspero e estruturado, numa encenação totalmente contrastante com a humilhação suscitada pela sua falência, duas décadas antes. A destruição das instituições e dos serviços públicos diligenciada pelo Ocidente, a predação dos oligarcas aquando das privatizações, o colapso da produção – uma diminuição de 40% entre 1991 e 1998 – haviam generalizado a sensação de desclassificação. Esta traduziu-se, em particular, pela convicção de que a nação nunca mais teria capacidade para acolher uma competição internacional.

Tudo isto aumentou ainda mais, portanto, o orgulho de se ver a chama olímpica entrar no recinto do Fisht Stadium, em Sochi. «Com a glasnost [transparência] e com a passagem do modelo colectivista para a economia de mercado, o Estado russo atravessou, com Mikhail Gorbachov e depois com Boris Ieltsin, períodos revolucionários aos quais tinha de suceder um período de estabilização», expõe o analista político Konstantin von Eggert. «Ora, é precisamente esta estabilidade que Putin e os Jogos de Sochi representam.»
O símbolo projectado pelos Jogos é também o de um Estado com uma soberania reafirmada. O enterro do projecto soviético teve como corolário a perda de influência da Rússia nos seus antigos satélites. Este traumatismo foi agravado pela separação tchetchena e, a seguir, pelas «revoluções coloridas» que atingiram a Geórgia em 2003, a Ucrânia em 2004, o Quirguizistão em 2005… A campanha militar vitoriosa de Agosto de 2008 contra a Geórgia, vivida pela população como um conflito por procuração contra os Estados Unidos, já permitira erguer de novo a bandeira. Em 2014, a reafirmação da presença russa nesta região insubmissa reveste-se de uma dimensão geopolítica que é ilustrada pelo percurso feito pela chama olímpica: esta deve ser exibida no pólo Norte, no espaço e até nas ilhas Sacalinas, palco de uma disputa territorial com o Japão. «Esta demonstração de soberania ilustra o quanto Putin se identifica, na esteira de Ivan o Terrível, com um grande reunificador do povo russo», analisa Serguei Medvedev, professor de Política Internacional na Escola de Altos Estudos em Ciências Económicas de Moscovo (HSE).

O facto de a chama olímpica terminar o seu périplo em Sochi corresponde, uma vez mais, a um objectivo simbólico preciso: teatralizar o controlo de uma região sujeita aos sobressaltos das lutas armadas no Cáucaso. Enquanto os atentados ocorridos no metro de Moscovo em Março de 2010 (39 mortos) e no aeroporto de Domodedovo em Janeiro de 2011 (36 mortos), reivindicados pelo líder rebelde tchetcheno e fundador do emirado do Cáucaso, Doku Umarov, deixaram profundas cicatrizes, a realização dos Jogos confere crédito à imagem de um país seguro, capaz de garantir a inviolabilidade do seu território. Uma aposta ainda mais arriscada porque Umarov fez um apelo, em Julho de 2013, para se «impedir por todos os meios» a realização dos Jogos e porque, no fim de Dezembro, dois atentados-suicidas na cidade de Volgogrado, no Norte do Cáucaso, fizeram 34 mortos…

Desafio aos Estados Unidos

«Sochi é psicoterapia e não Jogos!», jura Alexei Mukhine, ao volante do seu 4x4, lançado a grande velocidade nas amplas artérias da capital. Para o director-geral do Centro de Informação Política, a passagem da Rússia para a órbita ocidental aniquilou as especificidades do Estado russo, «ao ponto de hoje já não sabermos quem somos». Com efeito, os Jogos Olímpicos ocorrem num momento de pleno questionamento da Rússia em relação a si mesma. «Somos um país jovem, no qual, desde 1991, tudo é novo: a composição étnica, a organização política, as bases económicas, a Constituição… Para os russos, isto implica definir os contornos de uma nova identidade que não seja comunista – e é difícil», explica Konstantin von Eggert. A isto junta-se uma nostalgia latente do império e uma sensação de excepcionalidade que é particularmente viva. Todos estes elementos formam um terreno favorável ao ressurgimento de um nacionalismo de que o presidente, desde que foi reeleito para dirigir o país, em Março de 2012, se apresenta como arauto.
«Putin começou por ser o grande curandeiro das feridas nacionais, capaz de reconstituir a estrutura do Estado. Depois quis tornar-se o seu grande modernizador. Esta sequência resultou num fracasso, porque a presidência de Dmitri Medvedev, de 2008 a 2012, não trouxe a abertura democrática esperada. Doravante, Putin emerge como um dirigente nacional, amplamente apoiado pela opinião pública», observa Andrei Melville, professor na HSE. Uma estratégia que demonstra o reforço de um discurso que celebra de bom grado a singularidade do modelo e da identidade russa. «É um verdadeiro fenómeno político», observa o professor. «E os Jogos de Sochi participam desta tendência.»
Neste contexto, os XXII Jogos Olímpicos de Inverno são de facto a oportunidade ideal para veicular uma mensagem: o regresso da «Grande Rússia», uma nação respeitável (o que explica o indulto concedido ao oligarca Mikhail Khodorkovski e a amnistia das duas Pussy Riot, Nadejda Tolokonnikova e Maria Alekhina, em Dezembro), próspera e influente, a um mundo que Putin designa, desde o discurso de Munique de 2007, como «multipolar». Ao contrário da China que, depois dos Jogos Olímpicos de 2008, cuidou de se manter retirada dos assuntos do mundo, a Rússia quer desempenhar os papéis principais no concerto das nações oferecendo uma solução alternativa credível para a liderança americana e, em geral, ocidental.

Este desejo de rivalidade foi várias vezes manifestado pela diplomacia russa: a guerra relâmpago contra a Geórgia em 2008; o progresso registado pelo projecto de gasoduto russo-italiano South Stream (que contorna a Ucrânia), em prejuízo do seu concorrente Nabucco, apoiado pela União Europeia e pelos Estados Unidos; o êxito da renegociação sobre o nuclear iraniano, em Novembro de 2013, fruto de uma intensa actividade de lóbi de Putin para promover o diálogo em vez do uso da força; a resolução da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre a destruição do arsenal químico sírio [1]; e, mais recentemente ainda, a assinatura pela Ucrânia de acordos económicos com Moscovo, em vez de um acordo de associação com Bruxelas [2].
O desporto, elemento primordial da matriz nacional desde a era comunista, serve também este objectivo:«Os Jogos perpetuam esta ideia de grandeza associada aos dois impérios – a dinastia dos Romanov e o sovietismo – que moldaram a identidade do país», analisa Konstantin von Eggert. Traço de união entre um passado magnificado e um futuro que se espera ser brilhante, o desporto prolonga, com fortes despesas sumptuárias, a escrita da narrativa nacional.

Se estes Jogos decorrerem sem incidentes e se os atletas russos se distinguirem por bons desempenhos, então eles permitirão a Putin aumentar o seu prestígio no xadrez político interno. «Será uma estrondosa vitória pessoal para ele, que quer deixar na história a marca de um chefe de Estado capaz de levar a bom porto a transição da Rússia pós-comunista para a modernidade», nota Arnaud Dubien, director do Observatório Franco-Russo em Moscovo. Uma trégua de curta duração, prevêem no entanto muitos comentadores, tantos são os desafios que se multiplicam no horizonte: uma popularidade em queda («apenas» 60% de opiniões positivas, contra 80% em 2008); a necessidade de abrir o país à imigração profissional, apesar das renitências da opinião pública; a pacificação do Daguestão e, sobretudo, um crescimento anual decepcionante, estimado pelo Ministério das Finanças em apenas 1,4% em 2013 e em cerca de 2,5% até 2030. Estas previsões explicam-se pela diminuição dos investimentos directos estrangeiros e pela fragilidade do comércio externo, acentuadas por um claro declínio demográfico: povoada com 148,7 milhões de habitantes em 1991, a Rússia já só tem 142,5 milhões em 2013. Um número que pode ainda descer para 128 milhões até 2030 [3].

Estas considerações não desencorajam minimamente Putin, que deseja prosseguir uma política de renovação das infra-estruturas do país, notoriamente subdesenvolvidas, multiplicando os compromissos internacionais. «Desde a celebração do tricentenário de São Petersburgo, em 2003, todos os grandes acontecimentos constituíram um pretexto para o desenvolvimento da Rússia», observa Fedor Lukianov. O concurso da Eurovisão em Moscovo em 2009, a 24.ª Cimeira do Fórum de Cooperação Económica Ásia-Pacífico em Vladivostok em 2012, a Cimeira do G20 em São Petersburgo em 2013, os Campeonatos do Mundo de Natação em Kazan em 2015 e, claro, em 2018, o Campeonato do Mundo de Futebol, durante o qual uma dezena de cidades – entre as quais Sochi, Kaliningrado, Moscovo e Volgogrado – irá receber os jogos: todas estas iniciativas são pretextos para o desenvolvimento de um território tão vasto como trinta e três vezes a França."[...]

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Fev. 2014