Boaventura de Sousa Santos
"Boaventura de Sousa Santos escreveu um Ensaio Contra a Auto-Flagelação, que
tem Portugal no centro do furacão. As palavras centrais do discurso:
identidade, crise, esperança. Os protagonistas: a Grécia, as instâncias
internacionais, o português (suave) modo de ser numa Europa belicosa.
Quem é que leva uma corrida? Cavaco, a banca, Merkel e Sarkozy, os que
têm olho rútilo nos lucros, mesmo que isso implique o desmoronamento de
uma economia, e consequentemente de um país, e consequentemente de um
povo.
Portugal vive dias especialmente inquietantes. Boaventura diz
que cada geração vive o seu momento como se fosse o último. Somos, como
numa canção de Chico Buarque, uma gente que tem medo de morrer na
contramão atrapalhando o tráfego. E falamos, mais do que nunca, desse
medo, da urgência, das nossas idiossincrasias. Pensamo-nos. E pelo meio
dedicamo-nos ao nosso desporto favorito: a fustigação.
Com o sociólogo Boaventura Sousa Santos, iniciamos uma série
de entrevistas em que o nosso foco, mais do que qualquer outro, é
Portugal e os mecanismos do Poder. Não falámos, por isto, com ele, e
como seria habitual neste registo de entrevistas, das razões porque
divide os meses entre Portugal e os Estados Unidos, da sua imensa
popularidade no Brasil, das razões porque a sua lupa incide sobre o
homem na esfera social, e muito sobre a sociologia do direito.
Doutorou-se na reputada universidade de Yale. Mantém um sotaque de
Coimbra de quem faz daquela terra, ainda, a sua terra.
(Preâmbulo: grava a entrevista para ficar com um registo para
si? Não é a primeira vez que me acontece, mas foi quase sempre com
estrangeiros.
É por vício profissional. Entre o jornalista e o sociólogo há alguma convergência: usam os mesmos métodos de recolha de dados.
O testemunho.
No projecto para o doutoramento que fiz, vivendo nas favelas do Rio
de Janeiro, não podia usar gravador. Estávamos num período de ditadura.
Quase não podia entrevistá-los com papel na mão. Tinha um diário de
campo, acabava as entrevistas, metia-me num botequim e transcrevia tudo
de cabeça. Quando é possível, o gravador capta uma presença da minha
vida. Posso, amanhã, pô-la na minha página.
Este pormenor pode dizer coisas do que são os portugueses – e
já entro no âmbito da entrevista. É normal sentirem-se postos em causa,
que a acção do outro é questionante de quem são e do seu espaço. Quando
alguém diz: “O teu trabalho não está bem feito”, a reacção,
frequentemente, é: “Porque é que me estás a atacar?”.
Não é nada o caso. Desligo a minha gravação, se fica mais à vontade. Não tenho medo que me ponha em causa.
Não. Seria eu a pessoa posta em causa. Mas não me incomoda
nada que grave.) Acha que Portugal está num particular “momento de
perigo”, que é uma expressão que usa no Ensaio Contra a Auto Flagelação?
Se olharmos para os últimos séculos, Portugal parece estar sempre num
momento de agonia, ou de pré-agonia, na véspera de qualquer coisa que
vai suceder e que se imagina salvífica, e que é sempre protelada.
Qualquer geração tem tendência a ler o momento que vive como um
momento de perigo, como uma situação única, sem precedentes. Se
analisarmos a história contemporânea de Portugal não é essa a leitura
que colhemos. Apesar de todas as crises e conflitos, não deixa de ser
evidente que a sociedade portuguesa, neste século [XX], teve progressos
extraordinários. Um discurso extremamente crítico das suas condições,
alertas para perigos abissais, não impediram a sociedade de fazer o seu
caminho. Mas não soubemos pactuar grandes transformações. Nenhuma das
independências deste vastíssimo império colonial que tivemos pôde
depender de negociações tranquilas, programadas, pactadas entre a
potência colonial e as colónias. O mesmo sucedeu com os nossos aliados –
fosse a Inglaterra, fosse a Alemanha – no final do século XIX.
Conseguimos impor-nos – expressão disso é a maneira como nos
instalámos nos territórios que foram sendo desbravados durante a
Expansão. Mas, historicamente, parece haver uma crónica dificuldade em
negociar com o outro. Estamos sempre no tudo ou nada.
Negociámos muito bem no mundo. Não negociámos bem na Europa. Os
nossos comerciantes, os que quiseram expandir o império, em nome dos
nossos reis, fizeram-no negociando muito. Gungunhana, antes de ser um
celerado nas mãos de Mouzinho de Albuquerque, foi um rei com o qual
Portugal negociou e teve embaixadores. Foi um tipo de colonialismo
assente na negociação.
A dificuldade em negociar com a Europa: é uma dificuldade em negociar com iguais?
Com aqueles que não são iguais. Na Europa nunca houve iguais. E por
isso houve aqui tanta guerra. E por isso temos de zelar tanto por ela. É
um continente violento, de lutas fratricidas e com duas guerras
mundiais no mesmo século. O que tem havido sempre é hierarquia. Entre
países do norte, países do sul, países do ocidente, países do leste, com
situações de colonialismo (o da Inglaterra sobre a Irlanda, por
exemplo). Desde muito cedo Portugal e Espanha tiveram um papel dominante
que termina, no nosso caso, no final do século XVI. Dividiram o mundo
entre si, ninguém lhes disputava o poder. Quando entram em crise, são
outros os países que começam a dominar o mundo.
O que é que faz que uma nação exerça domínio sobre outras? É sobretudo o aspecto financeiro? Quem manda é quem tem dinheiro?
Não quer dizer que seja capital financeiro. Vai haver sempre uma luta
entre aqueles que dominam o capital produtivo e aqueles que dominam o
capital financeiro. Até muito recentemente, até 1980, dominou sempre o
capital produtivo. O capital financeiro é o que ajuda o capital
produtivo a criar riqueza. Fica com uma parte – as comissões, os juros –
mas sempre foi uma instância de segunda linha, ao serviço do capital
produtivo, e fortemente regulada. Em 1960 um banco de Nova Iorque não
podia emprestar em New Jersey – que é do outro lado do rio. Veja o nível
de regulação. Temia-se que este capital financeiro, desregulado, se
sobrepusesse ao capital produtivo. Foi exactamente o que aconteceu nos
anos seguintes.
Portugal, como perdeu essa hegemonia, ficou dependente.
A história da dependência é antiga. Conseguimos furar este círculo?
Não furamos. Temos é de negociar melhor as nossas dependências no
sentido de criar interdependências. Isso é que não temos sido capazes de
fazer bem.
Foi muito importante que Portugal se tivesse libertado em 1974 do
fascismo e em 75 do colonialismo. Era um país pária. Estava duplamente
rejeitado pela Europa de então – porque era fascista e colonialista.
Espanha teve uma ditadura com o peso do franquismo, mas o que
aconteceu a seguir foi muito diferente do que aconteceu em Portugal. No
pós-franquismo, os espanhóis juntaram-se para pensar o que queriam para
Espanha e como fazê-lo; em Portugal houve uma pulverização de partidos
no pós-25 de Abril, uma desunião, o PREC. São duas atitudes diferentes
face a um momento de ruptura.
Tinha muitos amigos em Espanha, que conhecia dos EUA ou de
Inglaterra, e que foram pessoas importantes no processo, alguns
ministros. Várias vezes discutimos num parador. Queriam
ouvir-me sobre o que se estava a passar em Portugal. Para mim, a grande
diferença entre Portugal e Espanha foi causada pelo facto de nós termos
colónias e eles não. Não tínhamos condições para fazer uma continuidade.
Os espanhóis puderam fazer o Pacto de Moncloa, que foi uma forma de se
articularem em relação ao futuro. Em 1961, Franco entendeu que devia
abrir a economia espanhola ao mercado mundial e ao investimento
estrangeiro. Foi nessa altura que começou a guerra colonial e que
Salazar fecha [o país].
Salazar escreveu uma carta à Coca Cola, citada no livro Os Portugueses de Barry Hatton: “O senhor arrisca-se a introduzir em Portugal aquilo que detesto acima de tudo, o modernismo e a famosa efficiency.”
Ele queria organizar uma economia de guerra. De todo o modo, quer
Portugal, quer Espanha, estiveram numa situação de inferioridade em
relação ao norte da Europa a partir do século XVII. Isto deu origem a
muitas formas de colonialismo interno. Não colonialismo no sentido
técnico, mas de concepção do outro como sendo inferior. Os frades
franceses e alemães diziam de nós o que nós dizíamos dos selvagens
africanos ou dos indígenas latino-americanos. Que éramos preguiçosos,
lascivos, pouco higiénicos, que comíamos com as mãos, que as casas eram
tegúrios.
Apesar de tudo, é um pouco diferente o que dizem hoje de nós
os franceses e os alemães. Mas temos fama de preguiçosos. Somos assim?,
ou somos simplesmente desorganizados?
Não somos. São estigmas. A estigmatização do outro ocorre em função
de comparações que não toleram a diferença. Se os alemães têm poucos
impulsos sexuais e transformam isso numa vantagem, são capazes de dizer
que somos lascivos. O que disse a Sra. Merkel sobre as férias [dos
portugueses] é ofensivo e não é verdade. Segundo estatísticas da OCDE
que revelo no livro, trabalhamos 8,9 horas por dia.
O problema não é a quantidade, mas a produtividade.
Temos um problema de produtividade – é essa a questão. Desde há cinco
séculos, só durante 12 anos Portugal esteve confinado a um rectângulo
ibérico. Quando nos lançámos nas descobertas em 1415 – e é
impressionante como o império esteve em três continentes – imediatamente
nos extrovertemos. É aí que se dá o primeiro golpe na nossa
agricultura. Depois mantivemos as colónias até 1974. Em 86, já cá não
estamos, já estamos na Europa.
E isso depois de séculos nos quais se investiu nessa extensão
imperial, e usufruiu do que aí vinha. Há efeitos ainda visíveis do
desinvestimento que foi feito neste rectângulo, nos recursos próprios?
Como tínhamos todo este território, que o Papa dizia que era nosso, à
disposição, porque havíamos de nos preocupar com as serras do Marão? O
que pensávamos era que as riquezas que traríamos de fora haveriam de
desenvolver aquelas regiões.
Nenhuma riqueza do Minho seria tão valiosa quanto a pimenta da Índia…
Ou o Ouro de Minas Gerais, o açúcar do Brasil, os escravos. Foi a
grande ilusão, a de que não precisávamos de um centro produtivo. Tudo
isto é antes do século XIX. Com a revolução industrial, as potências
europeias interessam-se por África, precisam das suas matérias-primas.
Carvão, minério, algodão. Queriam desenvolver os seus territórios, a
Inglaterra, a Alemanha, a Itália. Portugal, que não tinha feito a
revolução industrial, não tinha este imperativo. Os nossos
colonizadores, depois da conferência de Berlim (em 1894/5, que faz a
divisão de África), e do Ultimato, sobretudo em Moçambique, queriam
fazer uma administração colonial “à inglesa”. O Terreiro do Paço não
tinha essa necessidade endógena de explorar as colónias dessa maneira.
António Ennes, que diz que Inglaterra, que administrou a Índia,
administra melhor do que nós, sai amargurado; e Mouzinho de Albuquerque
suicida-se.
“Fazer à inglesa”. Temos a ideia de que o ideal é fazer como
se faz lá fora. E somos manifestamente incapazes de fazer dessa maneira.
Ou porque não aprendemos, ou porque, simplesmente, não somos assim,
temos outra matriz. Mas nunca se pensa em potenciar características
próprias (como se fossem recursos naturais).
Tem toda a razão. Devemos fazer à portuguesa e bem. Para isso, é preciso valorizar o que temos de positivo.
E então?
Podemos ser preguiçosos, lascivos…, digam tudo o que quiserem. Mas
nós não destruímos a Europa duas vezes no mesmo século. Nós não matámos
seis milhões de judeus e ciganos. Isto não se pode dizer? Eu digo! Os
alemães, que são a nossa referência, podem ser a nossa referência para
tudo? Quando avaliamos um país, não podemos reduzi-lo a uma cifra da
economia, que é o que domina hoje o comentário. Os países não são só
negócios, as pessoas não são só negócios. Os países bem organizados:
também são os países como mais alta taxa de suicídio. A Finlândia tem a
mais alta taxa de suicídio. Será a organização que traz felicidade? A
felicidade não conta? Nós não temos uma extrema-direita agressiva,
xenófoba.
Agressivos? Pelo contrário, parecemos apáticos, amorfos. Parecemos?, estamos?, somos?
Agradeço-lhe que não me faça cair no preconceito dos brandos
costumes. Não somos um país de brandos costumes. Temos massacres do
colonialismo por esclarecer. Alguns foram crimes cometidos contra a
Humanidade. Não podemos pensar que fomos benévolos… O que é que
significa parecer? O que dizem publicamente de nós. Numa tradição muito
portuguesa, o comentário é negativista, miserabilista, humilhante..."[...]
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