sexta-feira, 29 de julho de 2011

Negócios verdes e tendências do mercado de consumo

Illustration of a Toyota Prius.Image via Wikipedia



António Campos


As ameaças ambientais globais são uma realidade desde os anos 70. Nessa altura, ganhou-se consciência de uma questão perturbadora que era a ruptura da camada de ozono, a chamada sombrinha da Terra. No final da década, num acontecimento sem precedentes e até hoje irrepetível, graças ao Protocolo de Montreal, os representantes dos Estados, os grandes fabricantes e todos os envolvidos desde a investigação científica até às forças do mercado se puseram de acordo para retirar os danosos gases denominados CFC, substituindo-os por produtos menos lesivos para o ambiente.

A década de 80 conheceu outros desafios, uns que afectaram a área da produção e que tiveram a ver com a gasolina sem chumbo e a erradicação dos responsáveis pelas chuvas ácidas, outros pelo nascimento da chamada consciência ecológica ao nível dos consumidores. A ciência e as indústrias conseguiram remover os produtos mais perigosos e progressivamente avançou-se para um automóvel ambientalmente menos agressivo e para a aplicação de técnicas mais limpas para a extracção de minérios, por exemplo. Lançaram-se operações de substituição de matérias-primas para embalagens, gradualmente encontraram-se soluções para os detergentes, generalizou-se a separação de resíduos sólidos urbanos, tornaram-se obrigatórias novas formas de aterros para depósito desses resíduos, apareceram em massa as estações de tratamentos de águas residuais, etc. Nos anos 90 era facto assente que a consciência ambiental estava a implantar-se no mercado e a ter uma forte popularidade na opinião pública. Na Cimeira da Terra (1992) convencionou-se que havia de se pôr termo aos padrões de produção e consumo insustentáveis.

“Green Target, As novas tendências do marketing”, por Carolina Afonso (SmartBook, 2010) é uma reflexão interessante sobre esta caminhada, tanto no terreno dos negócios como na consciência ambiental dos consumidores. O green market ou marketing verde é um processo de gestão global que visa a satisfação das necessidades dos clientes e da sociedade, não só de forma lucrativa mas também sustentável, escreve-se no prefácio. Tem a ver com a modificação de produtos, embalagens e as comunicações comerciais em geral. Como se sabe, não existem produtos ecológicos, o que existem são produtos ambientalmente menos agressivos.

 Quanto à consciência ecológica, ela é hoje um dado estruturante, é um dos elementos a considerar no paradigma ambiental para onde concorrem outros de não menor importância, como é o caso do culto da forma, dos cuidados cosméticos, da saúde, do consumo responsável e sustentável, do comércio justo, da ajuda humanitária, etc. etc. Os factores emergentes da crise financeira desencadeada em 2008 acentuaram algumas destas preocupações, mas não é descabido prever que alguns dados fundamentais da consciência ambiental vão conhecer retrocesso ou estagnação provisórios: o refluxo do poder de compra, o desemprego acentuado, implacavelmente, roubam espaço à consciência ambiental do mesmo modo que se vai ouvir falar muito menos da responsabilidade social, da pegada ecológica e do comércio justo. Muito provavelmente, ir-se-á ouvir falar muito mais de alternativas energéticas, de automóveis híbridos, de produtos brancos, de electrodomésticos com eficiência energética. O Estado promoverá com incentivos tais técnicas e tais opções de consumo.

O que nos propõem o longo ensaio de Carolina Afonso? Enquadra em primeiro lugar os vectores da consciência ecológica, o conceito de marketing verde, a par da responsabilidade social empresarial e como esta se enlaça com a consciência ecológica. Dá conta do mercado de produtos verdes e da gama de questões que eles suscitam. Refere os produtos sustentáveis de acordo com a definição de um especialista: produtos cíclicos, com base em energias renováveis, seguros e eficientes, o mesmo quer dizer que todos os materiais utilizados funcionam num sistema cíclico, toda a energia utilizada provém de energias renováveis, não só emitidas substâncias nocivas para o ambiente m qualquer uma das fases do ciclo do produto, e o consumo de recursos total equivale a 10% quando comparado com um produto desenvolvido em 1990. Seguidamente, explana os desafios que se levantam à comunicação verde e denuncia mesmo os casos mais gravosos da publicidade enganosa, concluindo com a apresentação do que deve ser uma comunicação verde mais eficiente e credível aos olhos do consumidor. Refere depois a problemática da rotulagem ecológica que como é sabido continua a ser uma questão menor (ou mesmo menoríssima) do funcionamento do mercado. Temos, em sequência, o estudo do comportamento de compra do consumidor verde que têm sido alvo de leituras muito controversas. Na verdade, constata-se que os inquiridos sentem uma ampla margem de liberdade para confessarem estarem dispostos a adoptar atitudes de consumo sustentável que são contraditados pelos seus efectivos comportamentos de compra. Os factores preponderantes de compra, goste-se ou não, andam à volta do preço e da satisfação do consumidor. O que lembra muito a agricultura biológica e os respectivos consumidores, são as classes médias com mais elevado poder aquisitivo que procuram adoptar comportamentos que podem ser encarados como sustentáveis.

Onde, inegavelmente, se nota uma viragem é na atitude face ao transporte, na escolha de um carro menos energívoro, nas compras que levem à redução do consumo de energia eléctrica, à separação dos lixos e ao abandono de bens de consumo mais caros e mais poluentes (aerossóis, sabonetes líquidos, detergentes não compactos…). Duvidamos pois do estudo apresentado pela autora e da conclusão de que existe uma relação entre a intensão de compra e a compra efectiva de produtos verdes. Que os inquiridos revelem um comportamento ecologicamente consciente de grau elevado, não surpreende. Não custa nada responder de que se é amigo do ambiente, solidário, altruísta e que compra frequentemente produtos verdes. O mercado verde é tão pequeno que não será abanado por tanta declaração piedosa.

Os case study apresentados são muito ricos pois tem a ver com o Toyota Prius, um híbrido que é um verdadeiro desafio para a redução de poluentes e o Programa de Eficiência Energética da EDP é suficientemente promissor em si para não ser alvo de nenhuma contestação demolidora.

O consumidor verde existe, mesmo que não tenha a elevada consciência ecológica que a autora lhe augura. O seu ensaio é um bom ponto de partida para novos trabalhos e um sério aviso ao marketing verde para não brincar mais com coisas sérias, como é o caso da sustentabilidade.

Beja Santos
Nov.2010

Enhanced by Zemanta

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Um grande texto

Thin section of a peneroplid foraminiferan fro...Image via Wikipedia



António Campos


Nunca visitei uma campa ou um jazigo e nunca elegi um dia ou um qualquer momento específico para recordar mortos, embora recorde vários com frequência. Julgo, aliás, que não há circunstância mais eficaz que uma morte para nos fazer pensar a vida...

Pensar a vida é um acto de inteligência e uma obrigação moral. O ritmo próprio do nosso tempo, combinando obrigações profissionais, paixões familiares, programas sociais e outros inadiáveis afazeres, espezinha com facilidade aquilo a que alguém já apelidou de "
necessidade de deserto": afastamento, abandono, solidão e paragem. Afastamento do nosso quotidiano, abandono de "nós" e da nossa imagem, distância dos olhares dos outros e interrupção de tudo quanto faz a soma dos nossos ritmos.

Pensar a vida há-de ser fazer escolhas. E procurarmos ser, perante o que existe entre nós e o mundo, dominadores e não dominados. Trata-se de coisa que vai sendo rara, no frenesim a que nos submetemos e perante os valores e aquilo que merece reconhecimento nos nossos dias.

Entre os mortos que recordo com frequência não há um só que tenha sido publicamente célebre. Deixaram saudade, muita, o que os tornou célebres, sim, mas para os que tiveram a felicidade de lidar com eles.

Entre todos, alguns denominadores comuns: uma vida seguramente pensada, o reconhecimento preciso do essencial e uma espantosa coerência. A coerência própria de quem, não tendo visibilidade pública, jamais perderia um segundo que fosse com a problemática da
mulher de César. Nunca precisaram de parecer coisa alguma. Foram, simplesmente, na simplicidade própria de quem adquire segurança suficiente para jamais se levar absolutamente a sério. Segurança que terá passado pela capacidade permanente para dar uma segundademão a tudo quanto fosse preciso, se preciso fosse, para manterem intocável o modo como se respeitavam a si próprios e aos outros.

Acredito que crescer é um processo de distanciamento (e de aceitação, de reconhecimento) daquilo que é meramente efémero. Não concebo crescimento sem abertura para um processo voluntário, racional e permanente de aceitação da relatividade daquilo que somos. Sob pena de entupirmos, com as nossas "
certezas", o nosso próprio processo de crescimento.

Os mortos que recordo com frequência nunca partiram. O seu exemplo, mais que saudade, deu razão à esperança. Aqueles que recordo com frequência deram lugar à esperança graças ao modo como, crescendo, foram um exemplo de paz. De paz no modo como encararam os acontecimentos, as vicissitudes da vida, como trataram os outros, como se relacionaram com as coisas e como, na adesão a essa paz, souberam caminhar em paz consigo próprios.

Aquilo de que escrevo não é coisa própria do dia 2 de Novembro. É coisa de todos os dias. É coisa própria do legado daqueles cuja vida foi muito mais do que
 impostos em dia e soma de tempo que passa. Foram vidas que passaram por mim e por outros e que ficaram. Que ficaram no conforto oportuno dos seus gestos, das suas palavras e da sua companhia, que ficaram no modo como procuro levantar-me todos os dias para a vida e na vontade de saber transmitir aos meus filhos o modo como vale a pena vivê-la.

Os mortos que recordo com frequência foram homens e mulheres que, morrendo, não mais deixaram que um modo diferente de ficarem. Talvez se torne sensível, por estes lados, o momento inicial da nossa própria eternidade...
 Nov 2011

Enhanced by Zemanta

quinta-feira, 14 de julho de 2011

O Estado, os imperativos da cidadania, a justiça social - Ultrapassar o mal-estar colectivo, promover o bem comum

Quai des brumes...!!!Image by Denis Collette...!!! via Flickr



António Campos


“Um tratado sobre os nossos actuais descontentamentos” é um ensaio notável. É o último dos textos de referência de um dos principais historiadores e pensadores contemporâneos, recentemente desaparecido, Tony Judt (Edições 70, 2010). É de leitura obrigatória, seja em que lugar do espectro político nos posicionemos. A que tipo de reflexão se acomete este brilhante intelectual? Andamos erráticos, descontentes, exaustos pela obsessão em fazer riqueza, assistindo a crescentes disparidades sociais, ajoelhados pelo culto da privatização e das excelências do sector privado. Erráticos e incapazes de conceber alternativas. Tony Judt não esconde a sua inclinação pelos princípios estruturais da social-democracia: são tolerantes na cultura e na religião e acreditam na virtude da acção colectiva para o bem comum.

É crítico com eles: “Os sociais-democratas de hoje pedem desculpa e estão à defesa. Têm deixado sem refutação os críticos que afirmam ser o modelo europeu demasiado caro ou economicamente ineficaz. E contudo o Estado-providência mantém a popularidade de sempre junto dos seus beneficiários. Em lado algum na Europa existe um eleitorado a favor da abolição dos erviços de saúde públicos, do ensino gratuito ou subsidiado ou da diminuição da prestação pública dos transportes e outros serviços essenciais”.

O colapso bancário em massa fez despertar as consciências, mas nenhuma revolução das ideias foi posta em marcha. Há muitas razões para estar zangado com as desigualdades e as injustiças, a exploração e a corrupção. Mas não basta identificar os defeitos e espalhar retórica. A escolha já não está entre o Estado e o mercado, mas entre dois tipos de Estado. Há que reimaginar o papel do Governo. Daí este livro.

Vamos aos sintomas críticos. Do fim do século XIX até aos anos 70, as sociedades avançadas reduziram as desigualdades: graças ao imposto progressivo, subsídios estatais, fornecimento de serviços sociais contra os infortúnios. Daí para cá vivemos sob o domínio da abundancia privada e penúria pública. Temos hoje problemas sociais que estavam completamente esquecidos. A riqueza total esconde escandalosas disparidades distributivas. Voltámos a exibir a grande riqueza e a conceder-lhe estatuto de fama, as indústrias de entretenimento estão ao serviço deste modelo. Temos agora novas leis dos pobres com regras muito precisas de candidatura, por vezes de grande humilhação. As autoridades públicas estão permanentemente desconfiadas. Vivemos de tal modo impregnados sob a exaltação do privado e do sucesso dos ricos e das vantagens do mercado livre, que dificilmente sabemos raciocinar fora do contexto dos lucros e das perdas. De facto, a política pública passou a ser um mero cálculo económico. Acontece que os mercados não geram automaticamente confiança, precisam de regulação, há interesses prevalecentes entre a iniciativa individual e coesão social.

O que leva ao autor a questionar o mundo que se perdeu com o advento do triunfalismo individualista, a apoteose do sucesso no fabrico da riqueza. Os liberais, à esquerda e à direita, entenderam-se sem grandes constrangimentos quanto ao modo de erradicar o desemprego, a inflação e a insatisfação das necessidades elementares, estabelecer um consenso sobre políticas sociais e souberam tirar benefícios da maior igualdade daí adveniente. Nem à esquerda nem à direita se acreditava na magia do mercado, aceitou-se o planeamento indicativo, os objectivos das políticas sociais e o saber viver numa comunidade de confiança. Os conservadores dos anos 50 e 60, com Raymond Aron ou Isaiah Berlin eram liberais clássicos, aceitavam o primado da ética na política.

Depois deu-se uma revolução intelectual que se pode resumir na visão do mundo de Margaret Thatcher: “Sociedade é uma coisa que não existe, existem só indivíduos e famílias”. Um conjunto de economistas oriundos da Europa Central, todos fugidos às ditaduras, vieram em coro apelar ao fim da intervenção do Estado, do planeamento, do sector público, das políticas sociais. O privado passou a ser enaltecido e o lucro máximo elogiado. Entrara-se na era das privatizações e no ódio ao sector público. Nasceu assim o défice democrático que hoje nos abala e que levou à erosão do conceito do bom comum.

Nem o fim do comunismo alterou este estado de coisas, a tal ponto que a Europa de Leste foi entregue a predadores. Hoje, palavras como socialismo, revolução, assistência social são olhadas com suspeição. Tony Judt vem propor que se reformule o diálogo público, começando pelas instituições (novas leis, regimes eleitorais diferentes, restrições aos grupos de pressão e ao financiamento político…) e aprender a saber viver com a complexidade e a multiplicidade de interesses em conflito. O que significa que há muita coisa a redefinir, desde a riqueza, à justiça, à equidade e ao bem-estar. É indispensável regressar à questão social, reinstalar as massas trabalhadoras nos ideais da comunidade. Temos de decidir o que o Estado deve fazer a fim de que homens e mulheres tenham vidas decentes, escreve Judt. A mudança tecnológica vai pesar no conjunto de todas as outras alterações. Como ele também observa: “A única maneira de o mundo desenvolvido poder reagir competitivamente é explorando a sua vantagem comparativa nas indústrias avançadas com grande investimento de capital, onde o conhecimento contém tudo. Nestas circunstâncias, a procura de novas qualificações avança mais depressa que a nossa capacidade de ensinar, podem ficar para trás até os trabalhadores mais bem preparados”. O papel do Estado precisa de ser reequacionado, independentemente daquilo que pensarmos acerca da filantropia ou das acções caritativas.

É um dos aspectos mais elevados do ensaio de Tony Judt, esta proposta de uma nova narrativa moral, o saber tirar partido da globalização, o saber olhar o mercado sem desdém e os serviços públicos sob o primado da sustentabilidade e do desenvolvimento humano. Orienta um olhar revigorado sobre os princípios da social-democracia e sugere que saibamos aprender com as lições de um passado de solidariedade, fazendo do descontentamento actual a alavanca para o indivíduo reencontrado com a comunidade, ambos dispostos a partilhar as riquezas e os sacrifícios.

Beja Santos
Nov.2010

sexta-feira, 8 de julho de 2011

Éramos neutros mas colaborávamos na espionagem... com todos

António Campos


“O Império dos Espiões – A espionagem em Portugal e nas colónias”, de Rui Araújo (Oficina do Livro, 2010) propicia uma leitura absorvente e levanta mais questões do que os problemas que parecem ter ficado esclarecidos quanto a quem e para quem praticou espionagem em Portugal, na II Guerra Mundial. Por diferentes razões, mas no decurso de todo o conflito, os principais serviços de informações das forças em contenda aqui actuaram, pagaram colaboração a cidadãos de diversa proveniência: marujos, estivadores, jornalistas, diplomatas, polícias, legionários, militares e até desportistas. A polícia política portuguesa não tinha meios para despistar a tempo e horas as actividades dos outros ou dividia-se claramente em apoios ao Eixo ou aos Aliados, favorecendo ou trabalhando discretamente por conta doutrem.

Rui Araújo baseia-se nos 12 volumes dos Diários de Guy Liddell, uma personagem fascinante da espionagem britânica. O autor investigou fontes nacionais que lhe permitiram ter acesso a informação inédita: Cândido Oliveira, futebolista e jornalista foi agente dos serviços secretos britânicos; o capitão Agostinho Lourenço, director da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado era Jimmy, nome de código que lhe foi atribuído pelos norte-americanos. Terá sido um auxiliar muito útil na decepção dos serviços secretos japoneses, em Lisboa. O nosso Império Colonial não ficou à margem dos diferentes serviços de informações: em Cabo Verde, havia refugiados políticos, actuavam agentes italianos, portugueses e alemães; em Angola, foram patentes as actividades de espionagem alemãs e que tinham a ver com tráfego marítimo britânico, o movimento de tropas e a situação política no Congo e na África Austral; na Guiné, a espionagem alemã estava muito activa, os alemães estavam particularmente interessados no que se passava na Gâmbia e Serra Leoa mas também o movimento no porto de Dakar. Os principais dirigentes e agentes da polícia política portuguesa estavam bem identificados pela espionagem internacional: quem era pró-britânico ou pró-alemão.

A polícia política procurava estar atenta às reacções, conversas e tomadas de posição públicas tanto dos intelectuais como dos militares. Um diplomata britânico em Lisboa escreveu: “Creio que a melhor forma de penetrar a Polícia Internacional é elogiar a vaidade natural e nacional dos seus responsáveis, que até muito recentemente não eram objecto de atenções por parte do lado britânico e só ouviam dizer mal de nós. Também são sensíveis a pequenas atenções, como charutos e cigarros, uísque, almoços, jantares, passeios de carro e chocolates para as esposas, etc., despesas até hoje inteiramente suportadas por mim”. Ronald Campbell, embaixador britânico, tinha uma noção clara da lealdade de Agostinho Lourenço a Salazar e sabia que a sua demissão acarretaria consequências desastrosas para a espionagem britânica. Esta julgava também que Lourenço trabalhava para os alemães e por quantias elevadíssimas. O capitão José Catela do Vale Teixeira, secretário-geral da polícia política, teria tido um relacionamento privilegiado com os serviços britânicos.

Rui Araújo relata o acontecimento de uma actividade marítima inimiga que se realizou em Goa, em 1943 e que levou ao incêndio de três navios mercantes alemães e um italiano. As bases dos Açores, a posição estratégica de Cabo Verde, a eventualidade de uma invasão de Portugal pelas tropas alemãs, são matérias que levaram a intervenções da espionagem de um lado e do outro, recorde-se que nesta altura a Legião Portuguesa tinha peso na protecção de objectivos estratégicos e ambos os lados queriam saber a natureza do que era fundamental proteger e com que meios. O autor dá pistas sobre as empresas alemãs, o procedimento adoptado por forças reprimidas como os comunistas e os maçons. Obviamente que é dado um grande destaque à ocupação de Timor, primeiro por australianos e britânicos, depois por japoneses. Com menos relevo do que Angola, também em Moçambique houve recolha de informações intensas já que no canal de Moçambique havia um grande tráfego dos cargueiros aliados e o almirantado alemão pretendia que os japoneses fizessem da região um teatro de guerra muito importante.

Cândido de Oliveira tem um tratamento muito especial nesta obra, foi de facto uma personagem fascinante, tudo fez para servir os interesses britânicos, aliás estas autoridades recompensaram-no mais tarde. Os relatórios de Campbell sobre as actividades da espionagem do Eixo foram objecto de um relatório detalhado que mandou a Salazar: nome de pessoas, moradas, rede de colaboradores e ligações com instituições como a polícia política, a GNR, o Exército, os bancos.

Como é compreensível, a fatia de leão vai para a ocupação das bases dos Açores, mas é muito interessante a inquirição da polícia política tanto junto da espionagem alemã com britânica. O autor lembra-nos os agentes pró-alemães em Inglaterra. Estranhamente, não há uma só referência a importantes missões alemãs como aquela que trouxe o general Walter Schellenberg a Lisboa, ao que parece a sua missão seria raptar o duque de Windsor. Nas suas memórias, ele não deixa de mostrar a sua perplexidade quando os informadores portugueses pediam dinheiro para mudar meias solas, tal a perseguição a pé a que se viam forçados para seguir os agentes britânicos…

A espionagem em Portugal e nas colónias foi um factor acessório, periférico, durante a II Guerra. Teve curiosidades estimulantes e ficou-se igualmente a saber o que preocupava este país neutral para os dois lados. De um modo geral, nada passou do nível da pequena história e das insignificâncias. Em 8 de Maio de 1945, Salazar proferiu um longo discurso na Assembleia Nacional e mostrou a sua ufania: “Atravessámos incólumes a guerra e, podemos dizê-lo, sem sacrificar nem a dignidade da nação nem os seus interesses a amizades. Sempre que foi necessário marcar posições pela palavra ou pelo acto em favor de amigos ou aliados, e fosse qual fosse a sua situação de momento, ou fizemos espontaneamente ou acorremos de boa mente ao seu apelo.
Decerto houve que ter plena consciência das consequências possíveis, mas não exagerámos os riscos para nos desviarmos do dever: aceitámos serenamente e em todas as circunstâncias a parte de sacrifício que pudesse caber-nos… Pudemos, com o coração isento, debruçar-nos piedosamente sobre todos os sofrimentos, admirar todos os heroísmos, ser compreensivos para todos os erros, sem deixar de ser severos para com todos os crimes”. Houve compreensão e lassidão com os actos de espionagem; e foi-se gradualmente severo de acordo com a evolução da guerra. Mas o império dos espiões não passou de uma curiosidade decorativa, não era por Portugal e pelas colónias que passaram as batalhas cruciais.

Beja Santos
Nov.2010

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Razões … para Ler, por Ari Riboldi*

Reading listImage by jakebouma via Flickr



António Campos


Ler é sempre uma grande aventura, ao alcance em qualquer momento e lugar. No silêncio da insónia noturna, na viagem de ônibus para o trabalho, no banco da praça, na sombra das árvores, no aconchego do lar, no recanto da biblioteca, à espera num consultório. Ler por puro prazer, para aprender mais, para saber – no sentido original, do latim, “sapere”, sentir o sabor. Sim, ler para sentir o sabor da cultura, conhecer o mundo, viajar pelo tempo e pelo espaço. Ler para dominar o texto – do latim “textum”, tecido. E de texto em texto, apropriar-se do grande mosaico do contexto, ou seja, a realidade, o mundo. 

    Ler é um verbo com etimologia instigante. No latim vulgar, “legere” significava escolher grãos de um cereal. Atividade do homem da terra, do agricultor. Mais tarde, ainda no latim, passou a ter o atual sentido de fazer a leitura. Afinal, a leitura é sempre uma colheita de letras feita com os olhos. Quem lê torna-se inteligente. Também do latim, “inter”, entre, e “legere”, ler,  o inteligente vai além das letras, além do literal. Capta o que está subjacente, nas entrelinhas. 

    A leitura amplia o vocabulário. Mostra a propriedade e o correto emprego de cada termo. Expande as referências e as formas de comunicação. Ajuda a elaborar o raciocínio de forma lógica. Mostra o emprego da coordenação e da subordinação, a mescla das mesmas, com objetividade, clareza, na soma de ideias, em argumentações contrastantes, em causa e efeito. Enfim, a diversidade de estilos e de formas, na riqueza da linguagem.

    A linguagem, o mais poderoso meio de comunicação, possui múltiplas finalidades. Serve como unidade de uma nação, aproxima o ser humano de seus iguais, na família, no trabalho, no meio social. Pode dar ordens, veicular promessas, súplicas, bendizer e maldizer. Ajuda a pensar, a acalentar sonhos. É a multiplicidade de textos com os mais variados fins: jornal, propaganda, dicionários, manuais, didáticos, poesia, crônica, conto, romance. Nos textos, a vida como ela é e a imitação da vida.

    Os livros levam ao conhecimento de novas culturas, o que permite entender melhor a realidade, desenvolver uma visão crítica do mundo. Aumenta a capacidade de conviver com o diferente, ser mais tolerante, aceitar a opinião divergente. E, sobremaneira, contribui para aperfeiçoar a fala e a escrita, a linguagem como maior patrimônio individual e profissional. Por isso tudo e muito mais, é bom ler às pampas, às carradas, devorar livros, por prazer, por terapia. Como forma de buscar o conhecimento, ampliar os horizontes, aperfeiçoar-se, libertar-se da ignorância que limita e subjuga. Viva os livros! Emocionam, estimulam a criatividade, apontam caminhos, mudam trajetórias. São verdadeiros amigos de todas as horas.


Fonte: Publicado no Jornal  Zero Hora  de 09/11/2010

https://blogger.googleusercontent.com/tracker/2219652703801666939-6526238198174487868?l=filosofarpreciso.blogspot.com
Enhanced by Zemanta