sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Sou inteligente mas não sou esperto...

a thousand clever lines, (Explore)Image by confidence, comely. via Flickr



António Campos


«A vil tristeza apagou-nos o carácter, o dom de ser. Somos fantasmas querendo iludir a sua oca e triste condição. Por isso, o valor alheio nos tortura, revelando, com mais clareza, a nossa própria nulidade. A Inveja! Nós vêmo-la, nas trevas, farejar: é um esqueleto de hiena visionando um cemitério...» (Teixeira de Pascoaes)

Um aluno disse-me isto há vários anos e ontem (13 de Outubro) um amigo voltou a dizê-lo: "És muito inteligente mas não sabes ser esperto". Geralmente, dizem-me isto quando alguém - ou um grupo de pessoas - está a conspirar contra mim, tentando tramar-me. As palavras advertem-me da conspiração de bastidores em curso, lembrando-me que, em Portugal, a inteligência e o conhecimento não são suficientes para triunfar ou para conquistar um lugar ao sol; pelo contrário, a minha inteligência incomoda os "espertos" que odeiam tudo aquilo - a cultura viva - e todos aqueles - os agentes culturais criativos - que os ofuscam no exercício ilusionista das suas pseudo-competências ou tarefas, reconduzindo-os à sua mediocridade visceral.


A distinção entre inteligência e esperteza é especificamente portuguesa e, por isso, fornece um triste e fiel retrato de Portugal. Neste país de burrecos auto-intitulados "espertos", a inteligência - sobretudo a inteligência corajosamente criativa - é uma espécie de estigma social que condena os seus portadores ao fracasso, à morte em vida e ao exílio interior: a minoria inteligente é cruelmente eclipsada pela esmagadora maioria de supostos "espertos", isto é, pela maioria pardacenta de portugueses que, devido à sua inclinação natural para o mal, sabem eliminar os portugueses inteligentes, burlando todo o sistema de relações sociais e humanas e colocando-o ao serviço da reprodução da sua própria mediocridade.

 Em Portugal, o "sucesso" não se conquista pelo mérito, mas sim através do logro ou da burla sistemática, o que quer dizer que aqui - neste pequeno canto do mundo - os bem-sucedidos são precisamente os indivíduos sem qualidades, excepto a "qualidade" pouco virtuosa de trapacear e de "lixar" os outros. Assim, o que parece ser um elogio - "és inteligente mas não és esperto" - é realmente um convite à resignação: ser "esperto" significa fazer o jogo do sistema de corrupção nacional que teme a inovação, a crítica e a mudança social: as crianças que ouçam estas palavras aprendem que, em Portugal, o que garante uma carreira de falso-sucesso não é a inteligência superiormente cultivada mas algum tipo de esquema fraudulento, tal como frequentar este meu blog com a intenção de a-propriar-se ilicitamente dos seus conteúdos e apresentá-los numa tese como se fossem seus - em nome próprio. Ora, nada disto constitui novidade num país em que muitas teses de mestrado e de doutoramento mais não são do que o plágio de teses defendidas noutras universidades nacionais e/ou estrangeiras: o que é realmente surpreendente é o facto dos respectivos orientadores e júris não detectarem a fraude.

Em Portugal, a cultura universitária é uma tremenda fraude: os "espertos" entram na universidade não porque tenham mérito próprio, mas porque deixaram que algum professor/a fizesse uso sexual dos seus corpos, ou então porque, além disso, tiveram uma "cunha". A cultura de desmérito predominante nunca admitiu a entrada de pessoas inteligentes no seio das universidades portuguesas: professores medíocres rodeiam-se de outras mediocridades. A mediocridade é a norma-padrão portuguesa em todas as instituições nacionais: a esperteza saloia dos portugueses bem sucedidos - isto é, com o "cu largo", para usar a feliz expressão de Aristófanes - é a malvadez doentia feita sistema social que nega o futuro a Portugal.

banalidade do mal é uma constante na vida quotidiana dos portugueses, desde o nascimento fatal numa terra inóspita - o nosso ermo, o nosso exílio - até à morte: os portugueses, sobretudo os mais inteligentes e criativos, são objecto de permanente tortura psicológicaviolência e terrorismo. A minha experiência de vida abona a favor da tese da banalização do mal em Portugal: o povo português não é um povo generoso, como se pensa frequentemente, mas sim um povo malvado e maldito. A maldade portuguesa só pode ser explicada a partir de um defeito hereditário: a inteligência - intelectual, emocional e social - reduzida da maior parte dos portugueses, que se evidencia desde logo na inveja. Todos os pensadores portugueses, entre os quais Teixeira de Pascoaes, toparam a inveja mórbida que os portugueses nutrem uns pelos outros, sem no entanto conseguirem explicá-la de uma forma adequada. Teixeira de Pascoaes derivou a inveja - a tortura despertada pelo valor alheio - da vil tristeza que apagou - no carácter nacional - o dom de ser.

Ora, na minha perspectiva, a tristeza não causa a inveja: ela é o resultado sobredeterminado de um mecanismo complexo mediante o qual a inteligência reduzida incrementa a agressividade - o ódio dirigido contra o espírito de iniciativa e o valor alheio - e produz a inveja mórbida que se traduz na vida real dos portugueses num mimetismo antropofágico: os portugueses dirigem todo o seu ódio contra objectos bons - pessoas com valor e cheias de mérito -, e não contra objectos maus. Teixeira de Pascoaes apreendeu que, quando o carácter nacional adoece, o espírito de iniciativa dá lugar ao espírito simiesco de imitação: «A degenerescência inferior apaga os valores adquiridos que se conservam, em nós, como que num estado de perpétuo esforço. Sempre que o homem hesita na sua humanidade, aparece o macaco». O que importa reter e reavaliar da brilhante análise de Teixeira de Pascoaes é a sua noção primordial da degenerescência de carácter do povo português: o português típico - vulgar e ordinário - não suporta a presença de objectos bons, porque esta presença desperta nele a sua própria nulidade - a sua mediocridade visceral. Confrontado com a presença do bem alheio, o português típico reage com inveja mórbida e intolerância emotiva: o seu espírito simiesco de imitação mais não é do que uma tentativa desesperada de a-propriar-se do valor alheio, não só dos bens materiais e das ideias alheias, mas também do nome e da personalidade alheias.

Esta a-propriação ilícita do bem alheio é, no plano material e moral, um roubo: a nulidade essencial do macaco ladrão alimenta-se basicamente através deste mimetismo antropofágico - comer e incorporar o outro valorizado - que lhe permite simular - o eterno jogo português das mentiras - ser outro na sua pura exterioridade opaca sem no entanto conseguir elevar a sua auto-estima. O português típico enquanto macaco ladrão perdeu irremediavelmente a vergonhasaloio é o termo apropriado para designar o ser humano que abdicou da sua humanidade para se transformar em macaco sem rosto e sem vida interior. A falta de vergonha e de amor próprio chega ao ponto extremo - e profundamente ridículo - do macaco ladrão e vigarista - sacana e trapaceiro - ter a ousadia ou o descaramento de querer ensinar ao outro valorizado as ideias e os conceitos que lhe roubou num encontro face to face!

Ora, um país dominado a todos os níveis por bandos de macacos ladrões - que justificam a sua abominável dominação com o argumento miserável da escassez de recursos nacionais, ele próprio um argumento típico de ladrão - não é nem pode ser alegre: a vil tristeza dos portugueses resulta desta organização social simiesca, corrompida e primitiva que gera constantemente insegurança ontológica. Geralmente, comparo os portugueses típicos aos ilhéus de Dobu - tal como foram estudados no terreno por R. Fortune, para caracterizar a sociedade portuguesa como uma sociedade do medo: «Há um grande ressentimento para qualquer homem bem sucedido (no sentido legítimo do termo) em Dobu. Há respeito pela velhice e pela primogenitura, mas nada a não ser ódio para quaisquer diferenças no êxito devido a ser-se mais dotado» (Fortune).

Em Portugal, ainda há portugueses invejosos que utilizam a magia negra contra aqueles que são bem sucedidos por serem mais dotados de capacidades intelectuais. Como já vimos, o português típico não suporta a presença de pessoas mais dotadas: a existência dessas pessoas tortura-o, porque lhe revela a sua própria nulidade. O predomínio deste elemento de inteligência reduzida na população portuguesa configurou a nossa sociedade do medo: os portugueses não confiam uns nos outros e, tal como os ilhéus de Dobu, temem mais os vivos do que os mortos e preocupam-se mais com o cão do que com simples conhecidos, porque sabem que os outros - os vivos - são potenciais inimigos capazes de cometer as maiores atrocidades para lhes roubar o lugar e a vida sem angústia. O medo real do outro configurou a sociedade do medo, ao mesmo tempo que institucionalizou mecanismos, hábitos e rotinas que permitem suavizar os efeitos desastrosos da conflitualidade aberta e violenta: a sociedade do medo é a institucionalização da in-justiça. Utilizo aqui o conceito de injustiça no sentido que lhe deu Schopenhauer: a invasão no domínio onde a vontade é afirmada por outrem.

A concepção de Schopenhauer não é incompatível com a teoria marxista da sociedade antagónica, na medida em que a distribuição social do medo é profundamente desigual: a esfera onde os mais humildados e ofendidos afirmam o seu próprio corpo é constantemente invadida e negada por um grupo restrito de indivíduos que se apoderou fraudulentamente do poder político e dos recursos nacionais. A explicitação conceptual destas articulações sociais está fora dos objectivos deste estudo, mas há uma ideia já explicitada noutros estudos que devo retomar novamente aqui: a sociedade do medo socorre-se do fatalismo para justificar ideologicamente esta situação de injustiça e de crueldade predominante na sociedade portuguesa: os opressores oferecem aos deserdados o fatalismo como consolo. Ora, a desmistificação do fado português permite apreender a sociedade do medo como uma sociedade mobilizada contra a libertação e a mudança social qualitativa. As classes dirigentes portuguesas sacrificam sistematicamente o futuro de Portugal e dos portugueses para garantir os seus próprios privilégios sociais: a sociedade portuguesa está cativa dos interesses privados e particulares da teia de corruptos que usa todos os poderes sociais para os conservar e travar o desenvolvimento social.

(Veja aqui - Melanie Klein: Inveja e Gratidão - a minha perspectiva sobre a inveja mórbida dos portugueses.)

J Francisco Saraiva de Sousa
Out.2010
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terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Lembranças de mãe

The Good Mother (1988 film)Image via Wikipedia



António Campos


Nós, adultos, esquecemos que a mãe é pessoa e vemo-la como processo. Além do carinho e emotividade que unem uma criança com a sua progenitora, existem, de forma igualmente importante, os diversos estágios que atravessa uma mulher que acaba no seu caminho de mãe. O primeiro, é ser mulher, até aos nossos dias, não se inventou um ser que a substitua na estrutura hormonal e na configuração biológica necessária para dar vida a um bebé, amá-lo e amamentá-lo. Muito menos, a invenção da leveza do ser que caracteriza a relação mãe/criança. Não consigo esquecer a frase de um amigo ao me confidenciar a tristeza que tinha pela sua mãe ter ficado inválida: não sei o que fazer…apenas consigo chorar. A minha resposta foi rápida e directa: o que o meu amigo chora não é a doença da sua mãe, o que chora é a falta do mimo embelezado dos carinhos dela. Doravante, será o contrário: é a mãe que vai precisar dos cuidados do filho! Ele, incapaz de devolver essa elegância de mimos que na sua infância, a sua mãe lhe incutia, optou por nunca mais a visitar. É esta arte da fuga que os (as) filhos (as) adultos, configuram na relação ascendente/descendente, face a pais já anciões, no seio de uma sociedade que ensina (embora nem sempre se aprenda) a honrar pai e mãe. O hábito de contar, desabafar, ser aconselhado, fica inserido na mente do adulto maduro, como se fosse ainda um catraio. Mais difícil é, ainda, se a mãe passa a ser uma pessoa lenta, esquecida, tornando-se bebé ela própria ao regredir, como já referido sobre a criança velha.

Mas, se a mãe é um processo, é preciso sairmos da regressão para entrarmos na História. A rapariga casa com paixão – ou opta por uma união de facto – actualmente é igual. É dentro dessa paixão que o bebé é estruturado, até se converter num ser humano autónomo que precisa apenas da sua mãe, a quem pergunta o que fazer com os seus próprios filho. E a mãe, leal como sempre é com a sua criança, ouve, vê, sente e proporciona ideias. Conforme o caso. Existem mães que ignoram os filhos; por serem raras, não as vou referir. As lembranças de mãe passam por factos que a criança nunca entendeu e, como adulto, ignora e não partilha com a sua gestora. Foi por acaso que, no Diário de Vida de uma Senhora, li este pensamento: como devo fazer para a minha pequenada não ouvir a intimidade que tenho com o pai, os meus suspiros, os meus naturais gritos de prazer, a exibição da minha nudez que desejo mostrar ao meu homem para o manter vivoE se o meu pequeno entra ao quarto…??

Este é o problema que a maior parte dos adultos têm. Especialmente as mães. O corpo da mãe tem várias funções. A primeira, é ser ela própria e considerar qual a forma de manter a sedução para o seu homem. Uma mãe não é apenas uma entidade que amamenta a descendência: é também cônjuge ou parte integral de uma relação que permite que o seu estatuto maternal seja um processo de crescimento. Ocultar o corpo que deve também mostrar, é um dos dilemas da mulher. Dilema não contraditório, mas muito delicado. Diz esse Diário de Vida, que me ofereceram num meu trabalho de campo: estávamos a namoriscar a noite passada [sempre à noite, não sei porquê], entrou no quarto, de forma inesperada, o nosso filho mais velho; foi preciso esperar, dissimular, trocar lugares na cama…a correr. No entanto, penso que ele intuiu uma «aldrabice», ao comentar no dia seguinte se a mãe estava a brincar à Julia Roberts em Notting Hill, ou à Andie MacDowell em Quatro Casamentos e um Funeral, quando elas mostravam os seios, tal como eu ao meu homem.

Dilema de mãe, lembrança de mãe. Lembrança de mãe porque para o homem é natural mostrar a intimidade que tem a uma mulher: a sua ou outra qualquer. Não há lembrança no Diário de Vida da mãe ter tido outro homem além do pai. Porque a lembrança da mãe tem por base o sentido de pertença para a pessoa com ela comprometida e à qual se comprometera na saúde ou na doença, para toda a eternidade. Conceito de fidelidade ou lealdade, base também para toda a interacção com o mundo exterior. A lembrança que desenha melhor a mulher/mãe, é a entrega à sua casa e aos que nela vivem, sejam adultos ou crianças. Relação que passa à frente de qualquer outra, do cansaço do trabalho que lhe é impingido, pela forma económica actual de ser mulher e trabalhar para fazer a sua parte e manter o lar. Lembrança dupla da mãe: trabalho doméstico nas suas mãos, trabalho económico fora do lar mas para o lar e os seus. É a entrega infinita no seu processo de adquirir o estatuto de progenitora, apenas reflectido no mito religiosa de uma Nossa Senhora, das muitas que existem face ao grupo social. Uma Nossa Senhora a concorrer com o real progenitor.

O Diário tem muitas lembranças, desde a alimentação à intimidade sexual. No entanto, foi esta última que chamou a minha atenção. Raramente se fala da intimidade dos adultos da casa, principalmente das lembranças da mãe. Como diz um outro amigo: um calafrio percorre o meu corpo se penso na minha mãe a fazer as «porcarias» que eu faço com a minha ou com outras mulheres. A mãe não tem direito ao seu próprio divertimento e, muito menos, a falar dele, mesmo que a conversa seja pura, calma e directa. A mulher/mãe é apenas um processo de criar e amamentar. As roupas, o batom, as pinturas, as jóias, e até os namoros com outros homens podem acontecer porque são naturais. Um desejo natural de possuir figuras diferentes do eterno companheiro adquirido até à morte porque o Concilio Romano de Trento assim o definiu em 1539. Será que Alice Miller, em 1998, estava enganada ao escrever que A verdade libertar-te-á, ou em 1984 Não sereis conscientes da verdade. A traição da criança. Ou Melanie Klein no seu artigo de 1928: Estágios iniciais do conflito Edipiano, ou ainda Eduardo Sá, em 1995, ao falar das Más maneiras de sermos bons pais. Qual das duas ideias de Daniel Sampaio é mais importante, a de 1994, Inventem-se novos pais, ou a de 1998: Vivemos livres numa prisão.

Não posso concluir. A temática é extensa e demasiado importante num País Romano como Portugal. Mas, ficam na minha memória as confidências de outras lembranças das muitas mães que comigo falaram, para saberem como podiam ser explícitas com os mais novos, na explicação de que eram mulheres ao mesmo tempo que mães, porque os seus filhos não cresceriam se não entendessem essa diferença fundamental. Diferença que leva muitos a pensarem que um adulto deve ocultar a sua vida à criança. Especialmente, as lembranças da mãe, porque ser mãe é o processo de entrar como uma Nossa Senhora, ideia que a maior parte dos Cristãos Romanos, dos Koptos do Líbano, os de Arménia e dos Ortodoxos da Grécia e da Rússia, utilizam para definir a mulher. Nunca se pode esquecer que é mãe e não mulher, muito menos senhora, porque é apenas Sra. de… Tratamento injusto e desadequado como temos visto nos dias de guerra que vivemos, ao observamos serem elas  a procurar alimentos, enquanto eles aldrabavam com armas fracas para se sentirem masculinos a lutarem contra um inimigo configurado. A lembrança da mãe alimentar, levou imensas mulheres a passar em frente das balas. Como a minha própria mãe, a única que me visitou num campo de concentração, faz já trinta anos. Curou o meu sarampo, aconselhou-me nas doenças das netas, com discrição, e soube guardar distância silenciosa entre as suas ideias monárquicas e as minhas socialistas, que, sem saber, apoiou. Pelo que fico agradecido. Mais uma lembrança de mãe, porque o seu amor é incondicional.

  de Raul Iturra
Out.2010

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terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Não há alternativa, dizem eles

There Is No AlternativeImage via Wikipedia



António Campos


Não há alternativa: foi esta a ideia-chave que levou Margaret Thatcher de vitória em vitória até à derrota final.

Não há alternativa. Conformem-se. Aceitem trabalhar cada vez mais, em empregos cada vez mais precários, em troca de salários cada vez mais baixos. Não há alternativa. Pensar o contrário é irresponsável.

E a frase tem sido incessantemente repetida, incessantemente martelada, por tudo o que é responsável político, dirigente patronal ou economista mediático. Não há alternativa. Conformem-se. Habituem-se.

E chega a parecer verdade. Se o diz toda a direita portuguesa; se o diz toda a direita europeia; se o diz Teixeira dos Santos, dia sim, dia não, ou todos os dias; se o dizem, insistentemente, os economistas com lugar cativo nas televisões; se o diz Durão Barroso; se o diz a OCDE nos seus elogios às políticas de "austeridade" em Portugal; se o diz Angela Merkel quando lhe falam na responsabilidade alemã pela crise actual na Europa; se o diz o Banco Central Europeu; se o consenso aparente é tão completo - então se calhar é verdade. Se calhar, o melhor que temos a fazer é conformar-nos: habituarmo-nos à ideia de sermos cada vez mais pobres num mundo cada vez mais rico. É que não há alternativa: estamos condenados, não há salvação possível.

Mas é mentira. Não devíamos precisar que nos dissessem isto. Deveria bastar-nos a memória dos povos, que sabem muito bem que a principal arma dos tiranos é apresentar a sua ordem artificial como se fosse a ordem natural das coisas. O "não há alternativa" de Teixeira dos Santos ecoa o "é mesmo assim" com que os oprimidos se têm conformado e confortado ao longo dos séculos.

Há sempre alternativa. Há sempre escolhas, e as escolhas são sempre políticas. Três delas estão definidas neste relatório e noticiadas aqui, aqui, aqui e aqui.

"Não há alternativa" é uma das frases predilectas dos sacanas quando pensam que estão a falar para um país de bananas. É tempo de lhes tirar esta ideia da cabeça.

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JOSÉ LUIZ SARMENTO
Out.2010

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sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Instaurou-se a República. Agora falta construí-la.

An allegory of the Republic in ParisImage via Wikipedia



António Campos


Quando assisto, ano após ano, às comemorações da instauração da República, vai-se instalando em mim uma desoladora sensação de futilidade; e consolidando a ideia de que tão republicano é o regime desde 5 de Outubro de 1910 como o era até essa data.

Uma república é mais, muito mais, do que a ausência da formalidade monárquica. É mais, muito mais, do que uma mudança de método na escolha do Chefe de Estado. Uma república – uma res publica- é a organização duma sociedade civil que culmina no Estado mas não se reduz ao Estado. Uma república nem sequer exige necessariamente a abolição formal da Monarquia: exigiria, sim, a abolição efectiva das inúmeras micro-monarquias absolutas que são hoje, como há cem anos, o principal traço definidor do regime político português.

Mais do que um Estado forte ou do que um governo consequente - coisas que nunca tivemos, ou só tivemos em ditadura - uma república supõe e exige instituições fortes e prestigiadas: os tribunais, a universidade, as escolas, os partidos políticos, as associações cívicas, os sindicatos, as associações profissionais, as academias, os movimentos artísticos e culturais, os centros de investigação científica, as famílias - e também as empresas, mas não só. Embora sujeitas à lei, todas estas entidades necessitam, em república, de autoridade e autonomia que lhes permitam ter uma palavra a dizer na definição do bem comum. Esta definição não pode ser monopólio do Estado - e muito menos do governo, como preconizou Vital Moreira a propósito da luta dos professores. E, para que não se degradem elas próprias em corporações "monárquicas", têm que obedecer a estatutos determinados pelo método mais democrático que a sua natureza permita.

Tudo isto pressupõe um factor básico, que é a confiança dos cidadãos uns nos outros, nas instituições e no Estado. Não me refiro aqui a uma confiança absoluta, ingénua ou infantil, mas àquilo a que se poderia chamar, talvez com mais propriedade, o benefício da dúvida. Este factor - a confiança - torna-se tanto mais crucial quanto mais complexa se vai tornando a sociedade e quanto mais específicos se vão tornando os saberes. Um astrofísico de reputação mundial está, perante o seu médico, na posição de um leigo. Pode avaliar a sua reputação, mas não pode avaliar o seu saber. Confia no médico por duas razões: porque presume que ele sabe o que faz, e porque presume que age no interesse de quem o consulta. Este médico, por sua vez, se se envolver num litígio, tem que depositar a mesma confiança no seu advogado - e este no mecânico que lhe repara o automóvel, e este no informático que lhe configura o computador, e este no empregado bancário que lhe recomenda o produto financeiro mais vantajoso para investir ou as condições mais vantajosas para o crédito de que necessita.

E isto, sempre, com base em informação insuficiente.

A república – a res publica - não é um dado inscrito na natureza das coisas. A república é um artefacto, longo e difícil de construir, fácil e rápido de destruir. O que é um dado natural é a monarquia - isto é, o domínio de um ser humano sobre outros seres humanos. Ao contrário da república, esta monarquia arquetípica é fácil de construir - tão fácil que se constrói a si mesma onde quer que onde quer que haja alguém que, sendo mais forte ou mais esperto do que os outros à sua volta, não se defronte com uma oposição organizada.

Já mencionei o livro de David Marquand em que se narra a construção planeada da república no Reino Unido, ao longo do século XIX e parte do século XX, conseguida sem que tivesse sido necessário abolir formalmente a Monarquia, e o seu subsequente desmantelamento, igualmente planeado, empreendido por Margaret Thatcher e continuado pelos teóricos e pelos actores políticos do chamado "New Labour".

Os pilares fundamentais da construção da república no Reino Unido foram estes: a constituição duma burocracia eficiente, largamente independente em relação às mudanças de governo, zelosa, portadora duma cultura própria que a vinculava a uma ética e a uma deontologia, e dotada duma sólida e profunda cultura humanística que lhe permitia distinguir entre a lealdade que devia à república e a lealdade que devia ao governo; o alargamento da franquia eleitoral, que passou de 15% dos homens adultos a 100% dos homens e das mulheres; o reforço da autonomia e das finanças das universidades; a autorização das classes profissionais, a que foi permitida a formação de associações auto-reguladoras por intermédio das quais pudessem participar, na base dos seus conhecimentos especializados, na formulação das políticas públicas; o abrandamento, e eventual abolição, das leis anti-sindicais.

O mais admirável deste êxito está em ter sido conseguido contra a oposição dos sectores mais conservadores da sociedade (ou dos conservadores mais primários, porque do lado da república não havia só progressistas, mas também conservadores mais sofisticados que os seus pares); e nomeadamente contra a oposição estrénua dos economistas clássicos, que viam "colectivismo" no mais ínfimo laivo de justiça social.

A contra-reforma anti-republicana assentou na demonização dos sindicatos, dos funcionários públicos e das classes profissionais; na desvalorização do conhecimento como um fim em si mesmo, nomeadamente nas suas vertentes humanísticas, e na sua redefinição como um meio ao serviço da economia; na criação de falsas autonomias que consistem em puxar para o centro o poder de decisão ao mesmo tempo que se relegam para a periferia as responsabilidades respectivas (ou seja: quem decide não assina e quem assina não decidiu); na formulação central de "objectivos" cada vez mais minuciosos, mais ideológicos e mais desligados do interesse público concreto; na imposição de formas de "avaliação" cada vez mais delirantes e complexas e cada vez mais centradas na consecução destes objectivos.

Esta contra-reforma anti-republicana fez-se e faz-se sentir também em Portugal, e de forma tanto mais virulenta quanto mais incipiente e mais débil é a república que se pretende desmantelar. Hoje, se consulto o gestor da minha conta bancária, nunca sei se o produto que ele me recomenda é realmente o que me é mais favorável ou se é o que ele precisa de vender para atingir os objectivos de que depende a sua avaliação. Quando compareço diante dum guichet numa repartição pública, não sei se o funcionário que me atende ainda conserva algum resquício de vontade de resolver os casos que lhe aparecem ou se já se está completamente queimado e desmoralizado pelas sucessivas sacanices a que tem sido sujeito por parte de quem tinha o dever de ser a sua retaguarda de apoio.

Quando ouço na televisão um economista mediático, posso presumir, como posso quando consulto o meu médico, que ele sabe do que está a falar; mas não posso dar-lhe o mesmo benefício da dúvida no que respeita os seus objectivos. Ao contrário do que acontece com o médico, nunca sei se o interesse que o economista prossegue é o meu ou se é outro alheio ao meu, e talvez oposto a ele.

Esta quebra de confiança alarga-se a cada vez mais sectores da vida em sociedade. É ela o cancro que corrói a república. Se isto é resultado, como no Reino Unido, duma vontade consciente, ou se é resultado apenas do provincianismo e ignorância dos nossos decisores políticos, não sei.

Mas sei que me indigna cada vez mais ver no palanque, a comemorar com discursos comoventes a implantação da República, precisamente aqueles que mais têm contribuído para a desmantelar.

Out.2010
JOSÉ LUIZ SARMENTO

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terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Guerra - uma carta para os meus descendentes

Bancada federal do PT se manifesta contra a in...Image by Dr. Rosinha via Flickr



António Campos


A realidade que os ricos,os senhores do mundo,organizam para nós, o povo pobre.

Um dia, faz já muitos anos, o meu pai escreveu-me uma carta, que eu transcrevo:

Meu querido puto,

Andas a brincar na tua bicicleta de duas rodas, pelas ruas do bairro. Ris e pareces muito feliz e contente. Até largaste as fraldas, por pensares ser adulto ao manipulares a tua bicicleta. Corres e não só ris, como atacas. Atacas qual carga de cavalaria, perante um inimigo imaginário, esse que é desenhado pela tua ideia da guerra. Para ti, a guerra passa por ser uma brincadeira. E ainda bem. Porque, meu puto, seria bom que a guerra fosse uma brincadeira e não essa realidade espantosa, dura e terrível, que vês reflectida na cara dos teus pais. Uma cara de tristeza e de depressão. Palavras que nem entendes, como não deves entender a palavra guerra.

A guerra, meu rapaz, é a tramóia, material ou económica, pela qual os adultos trepam. Trepam e reptam, na procura de abater os que consideram seus inimigos. O que é ser inimigo, deves pensar. Se tu apenas tens os outros rapazes do bairro, para te emprestarem berlindes, piões e vídeos, a convidarem-te para guloseimas e também para casa dos seus pais a beberes um copo de leite. Mas, se eu oiço o que Alice Miller, diz no seu texto ‘Expliquem o terror às crianças’, não posso expor-me a que me vejas triste e sem motivos evidentes para ti. Alice Miller, ao responder a uma pergunta sobre os efeitos da televisão na mente dos mais novos, quando se fala da guerra no Afeganistão, da prometida guerra contra um ditador e o seu povo, diz que essas imagens não são traumáticas por não afectarem a existência física de pessoas como tu ou da tua família. No entanto, acrescenta que se tu ou os teus amigos foram espancados e humilhados em pequenos, as imagens da guerra trazem-vos lembranças de uma outra memória de experiências traumáticas sofridas pela mão das pessoas que vos são queridas e respeitadas, como docentes ou outros adultos perto de ti. Se para andares de bicicleta, o avô berrou, gritou e empurrou, até ficares sem desejos de te chegares ao artefacto que, felizmente, te dá prazer, porque nada disso aconteceu contigo, nem com os teus amigos. Tens a sorte de viver num lugar de paz e refugio, nos braços dos teus pais. Felizmente, quando vês imagens da guerra, na tua casa, és convidado a desenhar o que vês, o que contam as histórias, por que é que os senhores do mundo desejam esmagar os proprietários de um tesouro diferente do da Ilha Encantada que leste no livro de Robert Lewis Stevenson,Treasure Island de 1888. Esse encanto de romance que faz a tua imaginação voar por cima do facto das mortes de crianças como tu, pais e mães como os teus, ou amigos da tua casa.

Doa ou não, devo dizer-te que o mundo está em guerra e que muita pequenada está a morrer. Devo contar-te essas tristezas para que, pelo menos, confies em mim, porque eu confio em ti ao não disfarçar a realidade contada por tantas pessoas, vistas nas fotos dos jornais e emissões televisivas. Vês figuras hierárquicas em debate, um dia a dizerem sim para esmagar, e no outro a dizerem não, para angariar apoios nos seus planos de genocídio e a morte económica e corporal dos adultos. Para ficarem com as riquezas deles. Para guardarem os tesouros dos outros dentro dos seus bolsos. A guerra, meu filho, é o acto mais sangrento passível de acontecer, por subordinar ao terrorismo dos que têm mais força, os inocentes que vão ao altar do sacrifício, os seres humanos não possuidores de outros bens além dos seus próprios corpos, memória, ideais, família, princípios e objectivos de vida. É duro dizer-te isto, mas sei que é melhor que o saibas por mim e não por teorias que tencionam retirar o medo do teu real, na base de modelos socialmente construídos. Teorias distantes do teu andar sem fraldas e de bicicleta de duas rodas, na paz da tua rua e no jardim, teu e de teus pais. Deves saber que os que atacam, dentro de um mesmo país ou de fora, são pessoas que não viveram a alegria que tu vives ao pé dos teus que tanto carinho te tem dado. São pessoas frustradas que ganham o seu quinhão taxando irreverentemente, propositadamente, os outros. Pessoas não apenas sem bicicleta na sua infância, mas pessoas magoadas na idade mais tenra, sem os seus adultos saberem o mal que lhes faziam, quer à criança, quer à sociedade. Quando mais tarde essa pequenada cresce, fica adulta e com poder. Pergunta aos nossos governantes e ficas a saber: temos liberdade de expressão e de opinião, bem como de acesso ao governo.

Ninguém nasce mau. Ninguém herda o mal. O mal é fabricado pela relação dos adultos com e para as crianças, adultos enraivecidos a tomarem conta de putos como tu, doce e meigo, a decidirem se tiras as fraldas porque os teus amigos também as tiraram, ou porque é o melhor para ti. Os teus amigos têm bicicletas e tu também, trocam esse brinquedo, o mais amado do mundo para ti, por te permitir voares e competir com os outros, na calma do lar. Mas, meu puto, é um lar ameaçado pelas consequências da guerra que faz os preços dispararem, ficamos sem recursos e sofremos a morte dos inocentes, porque os senhores do mundo, assim o pensaram. Toda a criança é inocente e pura, capaz de entender o que o rodeias, se os seus adultos, queridos por eles, lhes explicarem o que está a acontecer. Eu falo contigo, na medida que tu perguntas. Alice Miller diria que o que faz mal, é ocultar a todos vós como é possível configurar o mal, fabricar a maldade.

É à tua inocência que falo, uma inocência que vive no meio de um mundo que luta para entesourar e para poder mandar sobre os que parecem mais fracos. Uma inocência que é meu dever preservar, ao explicar-te o real, cada vez que perguntas ou vês noticiários a mostrarem as calamidades do mundo no qual vivemos, ouves na rua, ou entendes o que os adultos e outros graúdos falam perto de ti. Mau pai seria eu, se não fosse capaz de explicar de forma directa e simples, o mal que acontece dentro do nosso mundo. Falando com carinho e palavras simples. Mas, falando. Como é o meu dever de adulto para ti. Não desejo mais sociedades que lutem umas contra as outras. Para despertar essas pessoas, era e é necessário, dizer a verdade dura e crua, para assim ficar limpa para ti. E para todos os adultos entenderem que ocultar a verdade é o pior mal que pode acontecer na nossa vida, que é curta e problemática, mas este é mais um problema para o adulto te dizer.

Um beijo meigo do teu Pai


Nota: baseei as minhas ideias no meu trabalho de campo e em dois textos de Alice Miller retirados da internet:The ignorance or How we produce the Evil e Tell children the truth about Terror, que recomendo para os adultos lerem. E nas minhas próprias emoções, devastadas pelo anuncio de uma guerra que ninguém quer, a do Iraque.

  de Raul Iturra
Out.2010

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quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

As perspectivas do Prémio Nobel da Economia de Joseph Stiglitz para os Estados Unidos e a Europa este ano.

GlobalizationImage by liber via FlickrAntónio Campos


Uma perspectiva que é bem capaz de ser o que está à vista

A economia global termina o ano de 2010 mais dividida do que estava no início do ano. Por um lado, os países dos mercados emergentes como a Índia, China e as economias do Sudeste Asiático estão a registar fortes crescimentos.

Por outro, a Europa e os Estados Unidos enfrentam a estagnação - aliás, uma maleita ao estilo japonês - e taxas de desemprego teimosamente elevadas. O problema nos países desenvolvidos não é uma retoma do emprego, mas uma retoma anémica - ou pior, a possibilidade de uma recessão intercalada por uma ligeira retoma.

Este mundo de duas faces coloca alguns riscos invulgares. Embora a produção económica asiática seja demasiado reduzida para suscitar crescimento no resto do mundo, poderá ser suficiente para fazer aumentar os preços das mercadorias.

Entretanto, os esforços norte-americanos para estimular a sua economia através da política da Reserva Federal de "agilização quantitativa" poderão sair gorados. No fundo, nos mercados financeiros globalizados, o dinheiro procura as melhores perspectivas em todo o mundo e essas perspectivas estão na Ásia, não estão nos EUA. Assim, o dinheiro não vai para onde é necessário e uma grande parte será canalizada para onde não é desejado - causando mais aumentos nos preços dos activos e das mercadorias, nomeadamente nos mercados emergentes.

Tendo em conta os elevados níveis de excesso de capacidade e desemprego na Europa e na América, é pouco provável que a agilização quantitativa possa despoletar um período de inflação. Em contrapartida, poderá aumentar a ansiedade em relação à inflação futura, gerando taxas de juro a longo prazo mais elevadas - precisamente o inverso do objectivo da Fed.

Este não é o único risco de recessão, ou mesmo o mais importante, que aflige a economia global. A maior ameaça provém da onda de medidas de austeridade que está a varrer o mundo, à medida que os governos, nomeadamente na Europa, tentam contrariar os elevados défices causados pela Grande Recessão e que a ansiedade em relação à capacidade de alguns países cumprirem o pagamento das suas dívidas contribui para a instabilidade dos mercados financeiros.

O resultado de uma consolidação orçamental prematura é tudo menos previsível: o crescimento vai abrandar, as receitas de impostos vão diminuir e a redução dos défices será um desapontamento. Além disso, no nosso mundo integrado globalmente, o abrandamento na Europa irá exacerbar o abrandamento nos EUA e vice-versa.

Visto os EUA serem capazes de se endividar com taxas de juros aos mais baixos níveis de sempre e com a promessa de elevadas rentabilidades sobre os investimentos públicos, após uma década de esquecimento, não existem dívidas sobre o que se deveria fazer. Um programa de investimento público em larga escala iria estimular o emprego no curto prazo e o crescimento no longo prazo, gerando no final uma redução da dívida nacional. Porém, os mercados financeiros demonstraram a sua miopia nos anos que precederam a crise, e estão novamente a demonstrá-la, ao pressionar cortes na despesa, mesmo que isso implique a redução perniciosa de investimentos públicos.

Além disso, o engarrafamento político irá garantir que poucas medidas serão tomadas para resolver os outros problemas graves que afectam a economia norte-americana: as execuções hipotecárias irão provavelmente manter-se (sem falar das complicações legais); as pequenas e médias empresas irão certamente continuar a mendigar fundos; e os bancos de pequena e média dimensão, que lhes concediam tradicionalmente crédito, vão continuar certamente a lutar para sobreviver.

Entretanto, na Europa, a situação não se afigura melhor. A Europa conseguiu finalmente socorrer a Grécia e a Irlanda. No decurso da crise, ambos eram governados por partidos de direita conotados com o capitalismo ou pior, demonstrando mais uma vez que a economia do Mercado livre não funcionou melhor na Europa do nos EUA.

Na Grécia, tal como nos EUA, um novo governo foi nomeado para resolver o problema. O governo irlandês, que encorajou os ousados empréstimos bancários e a criação de uma bolha imobiliária, não teve mais habilidade - o que não é de estranhar - para gerir a economia após a crise do que revelara antes.

Pondo de lado as questões políticas, as bolhas imobiliárias deixam no seu dealbar um legado de dívidas e excesso de capacidade no sector que não é fácil de rectificar - especialmente quando os bancos com relações políticas resistem à reestruturação de hipotecas.

Não considero que seja uma questão particularmente interessante tentar discernir as perspectivas para 2011: a resposta é sombria com pouco potencial de crescimento e muitos riscos de recessão. O mais importante é saber quanto tempo demorará a Europa e os EUA a recuperar, e se as economias asiáticas aparentemente dependentes das exportações irão continuar a crescer se os seus mercados históricos desvanecerem?

A minha melhor aposta é que estes países irão manter o seu rápido crescimento à medida que se virarem para os seus mercados internos vastos e inexplorados. Isto vai exigir uma reestruturação considerável das suas economias, mas a China e a Índia são dinâmicos e demonstraram a sua resistência à Grande Recessão.

Não sou tão optimista em relação à Europa e aos EUA. Em ambos os casos, o problema subjacente é uma insuficiência da procura agregada. A ironia disto é que existe simultaneamente excesso de capacidade e vastas necessidades por suprir - e políticas que poderiam restaurar o crescimento utilizando a primeira para suprir as segundas.

Tanto os EUA como a Europa devem, por exemplo, adaptar as suas economias para enfrentar os desafios do aquecimento global. Existem políticas exequíveis que poderiam funcionar com restrições orçamentais a longo prazo. O problema é a política: nos EUA, o Partido Republicano preferia ver o Presidente Barack Obama fracassar ao invés da economia ser bem sucedida. Na Europa, 27 países com interesses e perspectivas diferentes seguem caminhos diferentes, sem a dose necessária de solidariedade para compensar. Os pacotes de recuperação revelam, à luz destes factos, resultados impressionantes.

Na Europa e nos EUA, a ideologia do mercado livre, que permitiu o crescimento de bolhas de activos sem qualquer interferência - os mercados é que sabem, pelo que os governos não devem intervir -, deixa agora os legisladores de mãos atadas para procurarem conceber respostas eficazes à crise. Poderia pensar-se que a própria crise iria minar a confiança nesta ideologia, no entanto parece ter ressurgido para arrastar os governos no caminho da austeridade.

Se a política é o problema da Europa e dos EUA, somente a introdução de alterações políticas poderão restaurar o crescimento. Ou senão, podem esperar até o espectro do excesso de capacidade diminuir, os bens de capital se tornarem obsoletos e as forças restauradoras internas da economia fizerem gradualmente os seus truques de magia. Em qualquer dos casos, a vitória não está ao virar da esquina.

Com os governos de quase todos os países obrigados a implementar duras e impopulares medidas de austeridade nos orçamentos, 2011 volta a ser um ano de contestações sociais e greves gerais no continente europeu. No Reino Unido os estudantes protestam contra o aumento das propinas, na Irlanda registam-se manifestações pacíficas contra a austeridade orçamental, em França a situação continua explosiva, com o aumento da idade da reforma e a aproximação das presidenciais de 2012, em Itália a contestação centra-se no primeiro-ministro Sílvio Berlusconi e Espanha terminou o ano com o "estado de emergência" decretado contra uma greve sem pré-aviso dos controladores aéreos.

A expectativa do mercado é que a 2011 seja um ano positivo para as bolsas. Apesar desse optimismo, perspectivam-se ganhos moderados, entre 4% e 8% para os principais índices. Segundo uma sondagem feita pela agência Reuters junto de mais de 50 casas de investimento, os principais índices mundiais deverão registar valorizações este ano. No entanto, a bolsa nacional verá a situação das finanças públicas do Estado a condicionar o seu desempenho. O segredo de 2011 estará nos mercados emergentes. As perspectivas positivas para as bolsas mundiais com o crescimento económico mundial, deve superar os 4% à custa dos mercados emergentes e das medidas agressivas adoptadas nos EUA". Os analistas estimam um S&P acima dos 10%, para o intervalo 1350-1.400 pontos e uma variação da mesma amplitude para os maiores mercados europeus . Apesar de estimarem ganhos os analistas estão cautelosos com os próximos actos da crise de dívida soberana. A aversão ao risco, relacionado com a dívida soberana de alguns países, podem aumentar as incertezas quanto aos resultados trimestrais das empresas e dos ritmos de crescimento económico de cada país.

Joseph Stiglitz, Professor Universitário na Universidade de Columbia e Prémio Nobel da Economia

de O Carvalhadas http://img2.blogblog.com/img/icon18_email.gif
Jan.2011

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segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

A revelação do social através do quotidiano

O Cirquinho de LuísaImage via Wikipedia



António Campos


As rotas do quotidiano são caminhos denunciadores dos múltiplos meandros da vida social que escapam aos itinerários ou caminhos abstractos que algumas teorias sociológicas projectam sobre o social.

    A sociologia do quotidiano cultiva, deste modo, percursos de trespasse, no sentido figurativo que o termo envolve: isto é, de
«transgressão» em relação a formas de conhecimento sociológico alheias aos movimentos que quotidianamente ritmam as constâncias, variâncias e circunstâncias da vida social. É neste sentido que se pode dizer que a  sociologia do quotidiano dá um passo ao lado daquelas sociologias que confundem o que medem com a própria medida, o que vêem com o modo como vêem. Um passo ao lado, mas também um passo em frente, em relação a certas metodologias de aproximação ao social. Um passo em frente ao admitir-se que a vida quotidiana é um tecido de maneiras de ser ede estar, em vez de um conjunto de meros efeitos secundários de «causas estruturais». Neste passo em frente, as «maneiras de fazer» quotidianas são tão significantes quanto os resultados das práticas quotidianas, tantas vezes analisados à margem das retóricas e expressividades próprias da vida quotidiana.

Neste percurso de «trespasse», a sociologia do quotidiano corresponde mais a uma perspectiva metodológica do que a um esforço de teorização, a menos que se ressuscite a acepção antiga (de tradição grega) do termo «teoria», que significava «panorama», «descrição ordenada e compreensiva» - à margem das normas, leis, preceitos e regras que dominam os grandes quadros teóricos, de natureza mais explicativa. Em que consiste a perspectiva metodológica do quotidiano? Precisamente em aconchegar-se ao calor da intimidade da compreensão, fugindo das arrepiantes e gélidas explicações que, insensíveis às pluralidades disseminadas do vivido, erguem fronteiras entre os fenómenos, limitando ou anulando as suas relações recíprocas.

À sociologia do quotidiano interessa mais a mostração (do latim monstrare) do social do que a sua demonstração, geometrizada por quadros teóricos e conceitos (ou preconceitos) de partida, bem assim como por hipóteses rígidas que à força se procuram demonstrar num processo de duvidoso alcance em que o conhecimento explicativo se divorcia do conhecimento descritivo e compreensivo. A questão que portanto se coloca é a de saber se as «explicações» e «demonstrações» sociológicas ganham sentido heurístico ao menosprezarem os sentidos do viver quotidiano. Os conceitos e teorias devem entender-se como instrumentos metodológicos de investigação ao serviço da capacidade criadora de quem pesquisa(...).

Se há diferença entre uma lógica de demonstração e uma lógica de descobrimento, sem dúvida que a lógica da sociologia do quotidiano é a do descobrimento, da revelação - seja a revelação tomada no seu sentido místico ou fotográfico, como Simmel tão bem fez nos seus snap- shots, ou Velázquez e Caravaggio nas suas telas de tabernas. É gerador de comichões epistemológicas este modo retratista de olhar a realidade social? Pouco importa. O verdadeiro desafio que se coloca à sociologia do quotidiano é o de revelar a vida social na textura ou na espuma da «aparente» rotina de todos os dias, como a imagem latente de uma película fotográfica.

Definimos o quotidiano como uma rota de conhecimento. Quer isto dizer que o quotidiano não é uma parcela isolável do social. Com efeito, o quotidiano não pode ser caçado a laço quando cavalga diante de nós na exacta medida em que o quotidiano é o laço que nos permite«levantar caça» no real social, dando nós de inteligibilidade ao social.

A sociologia do quotidiano não se diferencia das outras sociologias pelas realidades. que privilegia nem pelo que diz sobre essas realidades, mas, simplesmente, pelo seu próprio dizer. Uma ingénua postura fenomenológica poderia arrastar-nos para a aceitação do objecto da sociologia da vida quotidiana como um objecto que lhe preexistisse quando, na verdade, as fronteiras científicas correspondem mais a perspectivas analíticas do que a terrenos de assimilação. Vem a propósito aquela história de Gordian, personagem de Voltaire, que estava persuadido de que, se um pavão-real pudesse falar, se vangloriaria de ter uma alma e diria que essa alma estaria na sua cauda. Ora bem, a «alma» da sociologia do quotidiano não está nos factos - os factos são o vistoso, a cauda do pavão. A alma da sociologia da vida quotidiana esno modo como se acerca desses factos, ditos quotidianos - o modo como os interroga e os revela.

In, Sociologia da vida quotidiana, de José Machado Pais –Imprensa de Ciências Sociais; 3ªed.,2007 (adaptado)

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