sexta-feira, 27 de junho de 2014

As atuais classes sociais


«Parece-nos óbvio que a sociedade continua dividida em classes e resultou ingénua nos seus propósitos a tentativa de igualdade da Revolução Francesa, impossível de concretizar-se, como o demonstraria Darwin, porque estamos a falar de seres vivos e não de “peças”.

Se nos parece hoje completamente inapropriada a velha classificação classista em clero, nobreza e povo, ela própria já complicada desde o século XIV com a ascensão ao poder da burguesia urbana europeia, também nos parecem completamente fora da realidade as suas denominações derivadas, ainda sustentadas pela terminologia dos pensadores do século XIX, nomeadamente os marxistas, que falam ainda muito, e até aos dias de hoje, em povo e em burguesia. Ora parece-nos que tal já não tem fundamento nem histórico nem sociológico. Talvez seja apenas um comodismo cultural.

Ainda há pouco tempo ouvi, a propósito de terrenos baldios, um presidente de junta de freguesia falar em nome do povo exatamente como o fariam qualquer fidalgo ou frade do século XVIII sobre a sua coutada ou o seu couto, não por poderem ser úteis à comunidade, mas apenas porque lhe pertenceriam por direito, só faltando o “divino”, agora às vezes substituído pelo “constitucional”. Mas sem qualquer alusão à circunstância de tais terrenos servirem ou não para alguma coisa, ou mesmo gerarem despesa pública, como era o caso devido aos incêndios e seu combate. Rendimento? Interesse comunitário? Um rebanho de uma dúzia de cabras e a “satisfação da propriedade”. Ora o tal nobre ou o tal frade, ainda que com fundamentos ideológicos diversos, invocariam noutros tempos os mesmíssimos motivos deste representante do povo de agora. Porquê? Porque hoje já não há separação funcional das classes mas apenas graus ou gradações simbólicas, a sua representação social é transversal porque se democratizou e a única diferenciação efetiva é a económica, gerando ou mantendo a capacidade de sobrevivência e de preponderância do indivíduo, e não já da classe, na sociedade atual.

Nos dias de hoje são pois as seguintes as classes sociais existentes, desde a base da pirâmide para o vértice (para usar ainda uma imagem clássica): em primeiro lugar os Indigentes, aqueles que são completamente dependentes dos outros para sobreviver, não auferindo qualquer remuneração regular nem detendo qualquer meio ou força de produção de bens e serviços.

Seguem-se os Pensionistas, com diversas denominações, aqueles a quem a sociedade organizada, através dos setores público, privado ou misto, assegura uma remuneração regular e pré-determinada, quer ela corresponda à reforma devida pelos descontos que efetuaram durante a sua atividade produtiva, quer corresponda ao subsídio, ainda que temporário, de desemprego ou qualquer outra indeminização social.

Temos depois a grande massa dos Assalariados, aqueles que recebem uma remuneração contratada ou à tarefa, em troca do serviço que prestam ou dos bens que produzem. É também do seu trabalho que sai a maior parte dos descontos para sustentar os Pensionistas e os Indigentes.

Seguem-se os Produtores, aqueles que sob várias formas organizativas “trabalham por conta própria”, na produção de bens e serviços que a sociedade lhes paga diretamente, quer de bens intelectuais (pintores, escritores, músicos), quer de serviços (guias de viagem ou jornalistas free lancers, por exemplo), quer agricultores ou industriais. São os donos dos seus próprios meios de produção e deles, bem assim como da conjuntura económica, são totalmente dependentes.

Temos depois os Especuladores, aqueles que, sem nada produzirem diretamente, vivem dos rendimentos do capital que herdaram ou acumularam e das suas mais valias. Não tanto como os anteriores, o seu número e importância social variam muito, dependendo do capital investido e do saldo conseguido e do volume dos resultados alcançados. Normalmente os indivíduos desta classe seguram-se económica e socialmente como Pensionistas.

Finalmente, em volta do vértice da pirâmide, temos os poucos mas muito poderosos Capitalistas, aqueles que, partindo de ideologias religiosas ou políticas várias, são protegidos por governos, polícias e exércitos, detêm a riqueza das nações, mandam nos governantes – que todos os outros podem eleger ou suportar no poder – e controlam a sociedade de acordo com uma estratégia local, regional ou global de acumulação contínua de riqueza artificialmente valorizada na bolsa e na especulação bancária e não no mundo do trabalho, a qual pouco ou nada tem a ver com a racionalidade humana, as bondades das religiões, os desesperos das fomes e o socorro às desgraças naturais, enganando os cidadãos entretidos com fantasias sociais e culturais. Conseguem (e conseguem-no muitas vezes) transformar a guerra, a doença, a fome, as crenças, a vida das pessoas, a existência enfim, no lucro que continuamente oleia e alimenta a sua máquina.

São estas as classes sociais atuais, ainda que com algumas possibilidades de sobreposições e variantes. É certo que Eça de Queirós já falava de «tempos de semitismo e de capitalismo», quando ainda a «Burguesia Liberal aprecia, recolhe, assimila com alacridade um cavalheiro ornado de avoengos e solares» (A Relíquia), quando alguns padres sonhavam ainda ter «o privilégio de destronar os reis e dispor de coroas! (O Crime do Padre Amaro), e o povo tinha aquela «morosa paciência de boi manso» (A Correspondência de Fradique Mendes). Mas tudo isso é século XIX e vale hoje tanto como as poesias de Castilho.

Saiba-me você, caro leitor, sem se enganar a si próprio, se é essencialmente um Indigente, um Pensionista, um Assalariado, um Produtor, um Especulador ou um Capitalista e vai ver que passa a perceber muito melhor o mundo que o rodeia. E arrume na sua estante, ao lado dos romances de Júlio Dinis, essas velhas e hoje inúteis denominações de clero, nobreza, burguesia e povo, ou semelhantes.

Mas, dir-me-á balbuciando, que farei eu a partir de agora com o estatuto social que supunha ter, a minha árvore de costados sem avós adúlteras, o título concedido a um longínquo antepassado que matou infiéis nas Cruzadas, a caveira de um servo da gleba morto em Aljubarrota de quem descendo segundo os mórmons, a memória de um visconde negreiro liberal, um tio-avô carbonário irmão do bispo do Dongo antepassado de um atual ministro de antiga colónia, um avô morgado membro da Internacional, um agricultor da campanha do trigo, um capitão da marinha mercante, um pai e uma mãe crentes nas aparições de Fátima e nas excelências do Estado Novo? Tudo isso vai para a lixeira da História, seu execrável positivista?! (chamar-me-á você assim à falta de melhor, mas olhe que já não se usa!). Não sei que lhe diga. Se puder, estime e cultive a sua dimensão humana, guarde as suas memórias, e se puder estude-as, ou dê a estudá-las a quem o saiba fazer, para se libertar do sarro da História, e talvez isso lhe seja útil e proveitoso.

Mas, dirá ainda você perante a minha já indisfarçável impaciência, mas então o meu doutoramento em semiótica quântica, a minha grã-cruz, a minha filiação no Ordem do Supremo Bem, a minha taça internacional de golf, o diploma de melhor pai de família do ano, não valem nada, não me separam dos “indiferenciados”?

Guarde-os bem guardados e que lhe façam bom proveito. Não sei se lhe agradará saber que muitos outros Indigentes, Pensionistas, Assalariados, Especuladores e (muito poucos) Capitalistas, têm curriculum idêntico ou mesmo superior ao seu e isso não os tem feito mudar de classe social, nem para “cima”, nem para “baixo”. A não ser na República da Fantasia, onde o ingresso ainda é grátis. 

J. A. Gonçalves Guimarães

sexta-feira, 20 de junho de 2014

“Estar na Europa nestas condições é uma prisão”, diz Boaventura S. Santos em entrevista



«Boaventura de Sousa Santos, director do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, constata que a Europa da coesão social acabou e que a troika despromoveu Portugal, acentuando-lhe o estatuto de país semi-periférico. O sociólogo de Coimbra avisa que, dentro de cinco anos, poderemos ter uma sociedade irreconhecível. E acusa o Governo de apresentar opções políticas como fatalidades.

Três anos de austeridade, de cortes. Como será o país no pós-troika?

Portugal carrega a condição de semi-periférico no contexto europeu há vários séculos. O pós-troika vem mostrar que esta condição vai durar muito mais tempo e que o objectivo que se pretendeu com a integração na União Europeia - tentar ver se Portugal saía desse estatuto – não foi possível. E a tentativa foi tão mal gerida que ficámos pior. Não ganhámos nada em termos da nossa posição no sistema mundial, não ganhámos nada com a integração na União Europeia e ficámos pior, porque perdemos os instrumentos que poderiam, de alguma maneira, provocar uma retoma significativa da nossa economia e da nossa sociedade. Portugal não é ainda um país subdesenvolvido, mas tem mais características de subdesenvolvido do que antes. Tínhamos passado a ser um país de imigrantes, voltámos a ser um país de emigrantes. Tínhamos direitos sociais no domínio do trabalho, velhice, educação e saúde, que têm sido precarizados de modo a que Portugal se pareça, cada vez mais, com um país subdesenvolvido ou do terceiro mundo. Este conceito de “pós-troika” precisava de uma análise semântica. O pós-troika foi criado por uma certa ideia nacionalista que existe no Governo, que foi amplificada simbolicamente como retoma da soberania nacional. Assim, quem não quer o pós-troika? Todos querem. O que não estão a ver é que a troika vai ficar, deixou tudo planeado.

É um caminho sem retorno?

Não é um caminho sem retorno. Portugal, com esta dívida, continua a divergir. O legado do pós-troika é amarrar-nos à despromoção no sistema mundial através do pagamento da dívida. Vamos entrar num Verão quente que nos vai levar a um esvaziamento total da democracia, com o empobrecimento generalizado dos portugueses. A democracia, sobretudo a que temos, está muito associada aos direitos sociais. Vamos perdê-los.

O Estado Social tem os dias contados?

Eles querem destruí-lo. Eles apresentam como fatalidade o que é uma opção política. Hoje está absolutamente provado que o Estado gasta mais nas PPP [Parcerias Público-Privadas]. O Estado vai pagar mais para caucionar a privatização de serviços públicos, em que, no fundo, tem de manter válvulas de segurança. Vai privatizar a água, mas, se as pessoas não pagarem a conta, deixa morrer as pessoas à sede? Não deixa. Este sistema de transferir as políticas sociais para o mercado é ideológico, mas não há nada que diga que o Estado Social tem os dias contados. Não pela natureza das coisas, pelas opções políticas que estão a ser tomadas.

Faz sentido cortar apoios e, ao mesmo tempo, criar planos de emergência social?
 
O Estado aparece, dessa forma, como sendo subsidiário em relação às forças do mercado. Nessa altura, muitas vezes, vai ser obrigado a pagar mais. É a grande ironia. Como já está a pagar mais nas PPP, uma ruína para o próprio Estado. Era muito mais barato manter os serviços públicos. Como daqui a uns anos, diremos que era muito mais barato ter mantido o Serviço Nacional de Saúde, ter mantido uma educação pública, e ter mantido uma Segurança Social pública. Neste momento, no campo democrático, não estou a ver, de uma maneira muito corajosa, uma alternativa que, em meu entender, teria de ser protagonizada pelo PS, eventualmente em aliança com partidos à sua esquerda. A coragem do PS foi sempre contra a esquerda e continua a ser. Como os ventos agora vêm da direita, não estou a ver a coragem. Pelo contrário, não está a ter coragem nenhuma. Não estou a ver que o PS, por exemplo, vá defender o sistema público de pensões que é de sua autoria. O modelo de coesão social da Europa acabou. É um sonho vazio. A troika sai, não há Europa da coesão social. Há uma Europa de concorrência entre Estados, mais desenvolvidos e menos desenvolvidos.

Podemos falar de uma reorganização social depois da troika?

Se o modelo que tem estado em vigor se mantiver, daqui a cinco anos esta sociedade será irreconhecível, face aos primeiros 40 anos da democracia. Será uma sociedade onde os modelos de convivência e sociabilidade, e até de subjectividade, se vão alterar muito. Os mecanismos que levaram a classe média a consolidar-se estão a ser erodidos. Essa classe média está a empobrecer e há naturalmente aqueles que nunca chegaram à classe média e que hoje estão mais abandonados do que nunca. Neste momento, quando vemos que há famílias em que os pais estão desempregados, os filhos estão desempregados e numa altura em que os mecanismos da sociedade providência – subsídios de desemprego, rendimento mínimo de inserção – já não estão aí. Ficam sujeitas à caridade pública, à filantropia, aos bancos alimentares. Essa será a tal sociedade irreconhecível daqui a cinco anos. Muito mais gente dependente dos bancos alimentares, de terem o sistema dos Estados Unidos de vouchers para comprarem produtos alimentares. É bem possível que esta distopia venha a ocorrer no nosso país. O problema é saber se os portugueses vão tolerar isso.

Prevê uma convulsão social?

Protesto social haverá de uma ou de outra forma. Ninguém imaginaria que, por exemplo, os pensionistas fossem para a rua, organizassem uma associação que está hoje muito activa na defesa dos seus interesses. A sociedade vai encontrar mecanismos. O grande problema dos próximos cinco anos vai ser a carta de intenções. É esta trela curta a que Portugal está sujeito. A carta de intenções, o próprio euro e o tratado orçamental são as três coisas que impedem que Portugal dê uma volta criativa, como fez o Equador que pagou a sua dívida no mercado secundário ou a Argentina que rompeu com o Fundo Monetário Internacional. Estamos metidos numa armadilha que é estar dentro da Europa, mas, de facto, fora da Europa. É uma inversão total do que aconteceu depois de 1986. Portugal estava dentro para o melhor e pensava que o pior nem sequer existia. Agora está dentro para o pior e está fora para o melhor que fez. Estar na Europa, nestas condições, é uma prisão. Portugal continuará a fornecer a mão-de-obra e nada mais.

Assinou o Manifesto dos 74, cujos subscritores foram acusados pelo Governo de porem em causa o financiamento do país.
 
O manifestou mostrou que era possível uma alternativa e que quem a apresentava não eram os loucos de esquerda, não eram os utópicos. Eram pessoas com um profundo conhecimento da economia e da sociedade e, ainda por cima, com orientações políticas distintas. Basta ver que os dois principais signatários foram Bagão Félix e João Cravinho. Há muita gente de direita que não aceita este neoliberalismo de mercado.

Quais os maiores impactos desta crise?
 
É um retrocesso de 30 anos na construção do Estado Social que se pretende sem retorno. Isto não são cortes transitórios para resolver uma crise, são cortes permanentes. A reforma do Estado não é para resolver a crise. Inicialmente apresentaram tudo isto para resolver uma crise, mas mostraram a sua verdadeira face. O que eles têm é um programa, um paradigma ideológico de mudar o Estado Social para um Estado neoliberal ao serviço da acumulação capitalista. O que trouxe a troika? Uma defenestração, um insulto, um ataque total à nossa auto-estima. Abriu a caixa de Pandora que é o racismo da Europa do Norte em relação à Europa do Sul. Portugal foi sempre um país pequeno demais para a sua grandeza e grande demais para a sua pequenez. Tínhamos um império enorme e não tínhamos capacidade de o sustentar. É muito doloroso para um país que se espalhou por todos os continentes estar agora a ser tratado como um bando de indivíduos preguiçosos, que viveram acima das suas posses, à custa dos bancos alemães, quando foi exactamente o contrário – os bancos alemães é que viveram à nossa custa durante estes anos.

Preocupa-o a emigração?

Portugal está a perder população. E são os jovens e os mais bem preparados que saem. Qualquer retoma da economia, para não ser uma retoma que repita apenas o subdesenvolvimento, precisa dessa mão-de-obra qualificada. Foi para isso que a gente perdeu 20 anos a formar engenheiros técnicos de alta qualidade. O que aconteceu com a troika foi um tsunami psicológico, social, a desertificação do conhecimento português.

Concorda com a Factura da Sorte?

Uma pessoa deve ser premiada por cumprir o seu dever? Isso só teria algum sentido se aqueles que não cumprem o seu dever fossem fortemente punidos. Num país que ainda não conseguiu combater os offshores, não faz sentido. O Estado passou a ser um jogo. Joga-se no Estado e sai um carro. É transformar o Estado numa “Santa Casa” pública. Não se tem saúde pública, não se tem educação, não se tem os professores do ensino secundário estabilizados, não se tem os operários com direito à contratação colectiva. Não se tem nada, tem-se um carro. Isto é transformar o Estado num Euromilhões. O que me surpreende é que as pessoas aceitem isto com uma certa naturalidade, já nem se ofendem.

Continua a acreditar em Portugal?

Portugal manteve a sua integridade até hoje. Obviamente que acredito. Acho que os portugueses vão dar a volta, democraticamente, penso eu, que não quero admitir uma solução não democrática. Embora me arrepie, porque, a nível global, as grandes mudanças deram-se depois de guerras, mas ninguém gosta de falar nisto. Vamos ter uma crise nacional num sistema global que se mantém mais ou menos como está agora? Ou vai haver uma crise global do sistema? Nessa altura, vamos arrastados e teremos ainda mais dificuldade em encontrar uma solução se estivermos sozinhos ou se estivermos numa posição de subordinação na Europa. Ou então a situação agrava-se de tal maneira que haverá uma mudança que pode passar por uma mudança significativa na liderança do PS, que pode estar ligada ao colapso final da social-democracia europeia. Se Seguro chegar ao Governo, essa social-democracia provavelmente também colapsará, se as medidas forem do mesmo tipo. Para fazer políticas de direita, mais vale estar lá a direita do que a esquerda - é isso que as pessoas pensam. Por quanto sofrimento os portugueses terão de passar para que essa alternativa surja? E quão democrática será? Não sei prever o futuro. Portugal já passou por muitas outras crises e os portugueses encontraram soluções, às vezes individuais, outras vezes colectivas. Nem sempre foram as melhores, algumas passaram pelo autoritarismo. Mas se há um mito fundador para Portugal é o do 25 de Abril. É a única coisa sobre a qual os portugueses ainda hoje estão de acordo, de que foi uma coisa boa. Acredito que ele poderá ainda inspirar as energias democráticas. Não sou daqueles que pensam que a saída da Europa é uma catástrofe, claro que vai ser extremamente difícil. O problema é saber se certos choques, que são difíceis, são piores do que isto que nos está a ser administrado em doses homeopáticas há três anos e que, segundo o Presidente da República, vai continuar nos próximos 30. Pelo menos uma terapia de choque permite ver uma luz ao fim do túnel.»

sexta-feira, 13 de junho de 2014

Classes e rebeliões sociais no Brasil


«O Mundial pode tornar-se uma montra não da “potência emergente”, mas do potencial de rebelião popular que este país encerra.

Numa sociedade onde as disparidades, assimetrias e injustiças sociais são tão flagrantes como no Brasil, é importante compreender o recente ciclo de mobilizações de rua e a conflitualidade social em curso no contexto pré-Copa 2014, tendo em atenção as grandes mudanças que vêm ocorrendo neste país, por via dos governos do PT, e suas implicações na estrutura social.

Deixando de parte a pequena e super-rica elite económica (que, como sabemos é, de facto, quem domina), podemos dizer que, quer a classe média, quer a classe trabalhadora brasileira passam por uma profunda recomposição, a qual se reflete nas orientações, subjetividades e dinâmicas de ação de diferentes segmentos dentro desses conjuntos mais vastos. Dir-se-á que tanto a “classe média” como a “classe trabalhadora” se subdividem internamente, cada uma delas, entre um setor estabelecido e acomodado e um setor em movimento que se debate hoje pela redefinição da sua condição e estatuto. A classe média tradicional (estabelecida), constituida por grupos poderosos e de elevado estatuto social, defende os seus privilégios, que deixa transparecer através dos seus preconceitos, comportamentos arrogantes e tiques de despotismo para com os mais humildes e pobres, aos quais, em geral, nega o direito a terem direitos. Por isso erguem em seu redor barreiras de opacidade e estigmas de todo o tipo. Mesmo aqueles que, tendo saído da miséria, ambicionam ou reivindicam o acesso a bens de consumo e a um estilo de vida mais digno, são rejeitados e olhados de lado. Nas suas múltiplas obsessões, essa classe tem como principais inimigos o PT (Partido dos Trabalhadores, de Lula da Silva) e as camadas mais pobres e miseráveis que, com a ajuda do “petismo”, já frequentam os Shoppings, já compraram carro, os seus filhos já frequentam a escola até à universidade e começam a viajar de avião, coisa que este grupo (habituado a recrutar aí as suas domésticas e serviçais) considera um sacrilégio.

À sombra deste segmento, e, de certo modo, em disputa com ele, encontra-se uma “classe média emergente” (uma nova camada da classe trabalhadora, qualificada e com emprego formal), que descolou da situação de miséria à custa dos programas sociais e do crescimento económico, e que ganhou consciência de que pode, finalmente, aceder a direitos e a uma condição social confortável. Segmentos jovens, que trabalham, estudam, ou trabalham e estudam, vivendo nas periferias das principais cidades, que aprenderam a socializar-se e se aproximaram das novas modalidades de ativismo por via das redes sociais e da linguagem da Internet. Trata-se de um precariado rebelde, mas por outro lado sensível aos instintos consumistas e individualistas da classe média. Foram sobretudo estes novos setores emergentes que, em junho de 2013, encheram as ruas e praças de centenas de cidades brasileiras clamando por mais reformas, por mais transparência e o fim da corrupção, por melhores transportes e qualidade de vida urbana, enfim por verdadeiros sistemas de saúde e de educação públicas no Brasil. Essa foi a primeira onda de rebeliões mobilizada não só contra os aumentos do custo dos transportes urbanos mas contra os gastos sumptuosos então anunciados para a organização dos grandes eventos (em especial o Mundial de Futebol de 2014). É claro que nos momentos mais intensos de contestação, esses movimentos foram “cavalgados” pelos grandes média e a própria classe média estabelecida veio também para a rua gritar que “o gigante acordou”, mas por motivos contrários, visto que a mudança que pretendiam (e pretendem) é arredar o PT do poder para impor o seu programa neoliberal puro e duro, e o regresso da velha ordem da violência contra o povo e os ativistas (em geral acusados de “vândalos”).

Se é verdade que este último segmento é parte da classe trabalhadora, ele distingue-se, no entanto, por um lado, do proletariado subalterno, que sobrevive à custa de programas como o bolsa família, que permanence nas franjas da informalidade e próximo da miséria, composto por varredores de lixo, pelo setor dos seguranças privados, em regime de trabalho temporário (e subcontratado), domésticas e empregados precarizados e pouco escolarizados dos mais diversos serviços, e, por outro lado, distingue-se ainda da classe operária tradicional, organizada, simbolizada pelos trabalhadores metalúrigicos do ABC, onde o PT e a CUT têm a sua origem e mantêm as suas mais sólidas bases de apoio.

O mesmo que se disse para as classes médias, pode dizer-se da classe trabalhadora, também ela dividida entre uma facção mais “acomodada” e outra mais “indignada” e rebelde. Desde o início deste ciclo que o Brasil assistiu a grandes mudanças, principalmente as promovidas pelos governos do PT. Ora, tais mudanças, independentemente do seu impacto progressista na economia e na sociedade, deram lugar à formação de novos setores profissionais e quadros dirigentes, com origem no campo sindical, os quais corporizam o já referido segmento da classe trabalhadora organizada e “acomodada”, não tanto porque seja anti-reformista, mas porque se deixou “anestesiar” pelo poder (simbólico e real) das instituições que dirige e onde obtêm algumas “benesses”, reconhecimento e protagonismo que nunca tiveram. É contra esta camada que a classe média estabelecida (sobretudo a que se concentra na região de São Paulo) está crispada e inquieta porque foi ela que – apesar de tudo – abriu novas perspetivas à classe trabalhadora e aos antigos “caipiras” miseráveis, disponíveis para qualquer tarefa. Mas, por outro lado, estes setores mais ou menos acomodados no aparelho de Estado, ou ocupando lugares de relevo no sistema político, debatem-se com a estagnação económica e os bloqueios face às promessas e expectativas que criaram, muitas delas inscritas na própria constituição brasileira. O sistema democrático do país desenvolveu desde o início da década de 1990 um conjunto de mecanismos de “blindagem” apoiados em alianças iníquas entre partidos, e que, de certo modo, estabeleceu uma barreira intransponível entre as reivindicações e necessidades das diversas camadas da força de trabalho e da base da sociedade, ao mesmo tempo que parece prisioneiro de forças ocultas, de interesses económicos poderosos, dos mais diversos e sórdidos tráficos e redes de influência, inclusive parecendo rendido ou impotente perante o poder esmagador dos meios de comunicação social, antigos aliados desses interesses e pouco disponíveis para a construção de um efetivo espaço público democrático que dê expressão à pluralidade da sociedade brasileira em toda a sua complexidade.

Apesar das divisões entre esses grupos e classes sociais, o descontentamento pode virar-se contra um sistema que se mostra incapaz de dar o salto em frente. E o cenário da Copa 2014 pode servir de pretexto. É nesse sentido que nos últimos tempos se vêm observando repetidos sinais de agitação de diversas camadas sociais desprotegidas, como aconteceu em fevereiro passado com a greve “selvagem” dos Garis (varredores de rua) no Rio de Janeiro, que, passando por cima da direção sindical conseguiram negociar e obter uma vitória clara numa série de reivindicações salariais e de condições de trabalho, na mesma linha das grandes rebeliões operárias em 2012 no Complexo de Suape (no Recife, NE do Brasil) envolvendo cerca de 40 mil trabalhadores, ou dos protestos de junho de 2013 e, nas últimas semanas, com várias situações de revolta e greves clandestinas no sector dos transportes públicos em São Paulo (além de outros, como os metalúrgicos), cujas ações incluíram diversos cortes de vias públicas e lançaram o caos na cidade. Neste contexto, uma sondagem do passado dia 22 de maio revela que: para 90% dos paulistas há corrupção na organização da Copa; 76% acham que o Brasil não está preparado; 45% são a favor da copa, mas 43% são contra (e 10% indiferentes); e mais, 52% são a favor dos protestos mais recentes (em junho de 2013 as manifestações de então tiveram o apoio de 89% dos paulistas). Tudo isto faz crer que o descontentamento pode ampliar-se com o início do Campeonato Mundial de Futebol, e conjugar-se com iniciativas de outros grupos no terreno, como os movimentos dos “trabalhadores sem teto” e ativistas anti-Copa, que desde o ano passado vêm programando ações de protesto. O Mundial pode tornar-se uma montra não da “potência emergente”, mas do potencial de rebelião popular que este país encerra.»

sexta-feira, 6 de junho de 2014

A estratégia de Francisco e o Médio Oriente



«Não foi acaso a imagem com cabeça apoiada no Muro da Segregação, lugar onde palestinos reivindicam, com grafite, a liberdade.

Desde o começo de seu pontificado, Francisco elegeu a estratégia dos gestos para introduzir temas, abrir debates, estimular perspectivas. E esses gestos são logo seguidos de iniciativas políticas com sentido estratégico. Os exemplos são muitos. Diz que quer “uma Igreja pobre e dos pobres”. Sua primeira viagem foi a Lampedusa, para encontrar-se com os imigrantes ilegais que lutam para entrar na Europa. Prega a austeridade, mas também mostra austeridade pessoal em meio a um contexto – o Vaticano – que contradiz essa visão. Reafirma a ideia de colegialidade na Igreja e cria uma comissão de cardeais que, superando o formalismo das normas eclesiásticas, tem como atribuição pensar outros modos de governar a igreja.

“Façam bagunça”, disse aos jovens, no Rio, e ele mesmo “faz uma bagunça”, quando deixa transparecer mensagens pastorais que não se ajustam exatamente às regras rígidas da instituição católica. Pode-se concordar ou discordar do papa Bergoglio, concordar ou discordar de sua visão do mundo e da Igreja. Mas é inquestionável que Francisco sabe lidar com gestos e também com o tempo e a arte da política, que tem objetivos e está disposto a cumpri-los passo a passo, com disciplina estratégica, habilidade política (que inclui também o fator surpresa) e senso de oportunidade.

A viagem à Terra Santa não escapa a essa lógica. A imagem de Francisco com a cabeça apoiada no muro da segregação, em Belém, no mesmo lugar em que os palestinos reivindicam com grafite sua ânsia de liberdade, não pode ser pensado, de modo algum, como resultado de um improviso ou inspiração de momento. Não estava no itinerário oficial, mas é possível garantir, sem medo de errar, que Bergoglio imaginou esse instante, meditou sobre ele e executou-o com perfeição. Sonhou, talvez (e programou), diante do Muro das Lamentações, a oração conjunta e a cena resultante ao lado de seus amigos argentinos, o rabino Abraham Skorka e o muçulmano Omar Abboud. A exclamação com que os três selaram esse momento (“Conseguimos!) expressa claramente do propósito que os levou até ali.

Toda a viagem esteve marcada por alguns objetivos chaves: introduzir o tema de paz com justiça, ancorado no diálogo a partir da diferença, e consolidar o papel que as grandes religiões podem desempenhar na paz do mundo, em todos os cenários. Mesmo os mais conflituosos, em que tudo parece ser difícil. Para isso usou todas a sua habilidade para dizer e firmar posição sem ferir suscetibilidades em interlocutores sensibilizados. Nesse cenário, Francisco elegeu também uma estratégia discursiva: em vez de julgar, repreender e advertir, optou por pregar sempre a força do diálogo e centrar nessa capacidade humana a possibilidade de superar as diferenças.

Cinquenta anos atrás, Paulo VI chegou à Terra Santa para fomentar o diálogo inter-religioso. Francisco está convencido de que, no mundo atual, as grandes religiões têm um papel fundamental para construir e consolidar a paz. A viagem à Terra Santa se inscreve nesse propósito. Um objetivo que o papa traduziu também em ações concretas, como a participação ativa no caso da Síria e, agora, na proposta aos presidentes palestino e israelense, Mahmud Abbas e Shimon Peres, para irem ao Vaticano “rezar juntos”.

Francisco utiliza ainda o cenário midiático para desenvolver sua estratégia. Tem gestos que comprometem terceiros, consciente de que também o comprometem. Está convencido de que colaborar com a paz no mundo pode ser um aporte que a Igreja Católica e ele, como papa, podem levar à humanidade. É também um caminho para aumentar (resgatar? recuperar?) o prestígio da Igreja e crescer em seu próprio país, consolidando-se como líder e referência no cenário internacional. Para isso, seguirá afirmando que a busca da paz deve estar acima “das diferenças de ideias, línguas, cultura ou religião”. Este é seu lema, e ele fará novos gestos e outras ações na mesma linha.»