sexta-feira, 5 de junho de 2009

A cabeça serve para pensar o sonho de não fazer chichi na cama

The human head.Image via Wikipedia



António Campos

A história de hoje foi extraída do seu livro “Eu agora quero-me ir embora”.
Na escola onde tantos anos trabalhou, que se destinava a crianças com dificuldades de aprendizagem, um menino certo dia, que tinha tido presentes de Natal, mas dava a entender que não os merecia, pois, segundo a avó lhe dizia, o Pai Natal não dava presentes aos meninos que faziam chichi na cama, que era o caso dele.

Este assunto foi falado na sala com a educadora, mas não conseguiram entre si encontrar uma explicação, por que, os meninos e meninas faziam chichi na cama.

Assim, alguns dias depois a educadora e os alunos foram ao gabinete do Dr. João dos Santos, e, este pediu para ficar sozinho com eles, tinham entre seis e oito anos de idade. E explicou-lhes do seguinte modo: “Bom, vocês sabem que às vezes sonham com o pensamento, com a cabeça. Pois outras vezes as pessoas não sonham com a cabeça, sonham com o corpo. Ora o chichi na cama é um sonho com o corpo. É uma coisa um pouco difícil de vocês perceberem, mas é tudo o que lhes posso dizer por agora, depois falamos mais um pouco e talvez eu possa explicar melhor.”

Os meninos depois foram para a sala de aula e, com a educadora, continuarem a falar do corpo humano, e dos seus órgãos. Fizeram desenhos, e iam colocando questões. Para que serve o coração? Para que servem os pulmões entre outras. A dada altura, um dos meninos perguntou para que serve a cabeça? Pouco tempo depois uma menina respondeu: “A cabeça serve para sonhar o sonho de não se fazer chichi na cama.” Alguns dias depois soube daquela resposta dada pela menina e considerou-a verdadeiramente prodigiosa, pois a menina tinha percebido muito mais do que aquilo que ele próprio tinha pensado, imaginado.

Ou seja, quando ele dizia “fazer o sonho com o corpo” queria dizer “não mentalizar” a emoção corporal. Quando se faz um sonho, há sentimentos, há emoções corporais, há coisas vividas com o corpo, com a parte emocional do nosso ser, e que depois são mentalizadas, são passadas à actividade simbólica. E depois há uma espécie de transformação progressiva em que a pessoa conta para si própria uma história a partir daquilo que sentiu ou daquilo que recordou durante o sono… e as crianças que fazem chichi na cama não são ainda verdadeiramente capazes de sonhar, não fazem propriamente fantasias com o sonho, com um sonho em particular…As crianças bloqueadas para a fantasia, para a imaginação e para o sonho, não são capazes de contarem histórias a si próprias, e então em vez em vez de sonhar fazem chichi na cama…

O chichi na cama é diferente do chichi nas calças durante o dia, pois tem a ver com todos os mistérios da noite e com todos os medos da noite, com as coisas que se suspeitam existir na vida dos adultos e na vida que se passa à volta da criança, ou sonha-se o mesmo sonho, que pode ser um sonho pesadélico, ou então um sonho muito elementar… Quer dizer ainda que, quando se faz chichi na cama é como se a criança não ousasse pensar tudo aquilo que se pode pensar durante a noite, o que há de misterioso, o que há de ameaçador, de perigoso, de alarmante.


João dos Santos (adaptado)




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