sábado, 29 de março de 2014

Conversa fiada, hábito conservador




"Como hábito de falar incessantemente reproduz valores e reforça competição. Por que diálogos terapêuticos, ou silêncio, podem ser alternativas.

Após quase três meses de ausência, resolvi retomar a coluna Outro Viver tratando justamente disso, o silêncio. Em um mundo cada dia mais frenético, cheio de palavras, imagens, manuais e aplicativos, qual o valor do vazio? Pra tudo temos opiniões, explicações, justificativas, conceitos. Nossa mente não para nunca. Nem um segundo de descanso. Mas o que desses tantos pensamentos me pertence realmente? 

“Acredito que 4/5 da conversa humana, de todos, no mundo todo, o tempo todo, é conversa fiada, o passatempo fundamental da humanidade.” Ao ler esta frase do psicanalista José Angelo Gaiarsa, no livro Reich – 1980, logo busquei inúmeros contrapontos. Mas acabei cedendo e compreendendo como utilizamos a fala para resistir às mudanças. Quando me proponho a observar mais profundamente o meu sistema de defesa, percebo que ao desobedecer meus velhos padrões de comportamento, o meu ego logo se inflama e faz todo o possível para sabotar minhas iniciativas e fazer com que eu volte ao normal dizendo: “mamãe tinha razão”.

Segundo Gaiarsa, a conversa fiada existe para impedir a veracidade, a intimidade, a emoção, o individual, o sentir. “Só é meu o aqui-agora, só nele posso fazer, acontecer, existir, preparar. Se perco meus momentos, muitos deles, no papo vazio, estou irrealizando-me o tempo todo e deixando o sistema se reforçar cada vez mais, em mim e no meu inteligente interlocutor. Não raro, estamos os dois falando como mudar o sistema, sem perceber que esta discussão é parte-legítima do sistema.” O escritor explica, de forma bastante direta e clara, que a conversa fiada se compõe de exibição de excelência, de delírio jurídico e de fofoca. “As pessoas falam muito de quanto são boas, capazes, bem sucedidas, espertas, inteligentes, cumpridoras de seus deveres. Entram quase todas e quase sempre na exibição de poderio. Quem é melhor do que quem? Eu ou você? Meu time ou seu time? Minha casa ou sua casa? Meu carro ou seu carro? E este fenômeno independe de regime social ou econômico. Gosto de pensar que a única maneira capaz de impedir a luta de cada um contra todos (e o domínio dos poderosos) é a cooperação. Não se trata de ser bom, generoso, compreensivo. Se trata de aprender a cooperar, a trabalhar/funcionar juntos. O papo vazio serve demais à divisão, à oposição e à luta de cada um contra cada um e ao enfraquecimento de todos.”

Sobre o delírio jurídico da humanidade, Gaiarsa diz que ele responde, com certeza, por mais um tempo grande do papo vazio. As pessoas ficam, para fora (com o outro), ou para dentro (consigo mesmas), tentando explicar, justificar e provar que seus motivos e razões são legítimos – e que legitimam o que fazem. Legitimam, principalmente, tudo o que não fazem. Eu sei que devia, mas… O complemento desta interminável arenga jurídica, pela qual me protejo de sanções sociais hipotéticas e ameaçadoras, é o constante procurar provar/dizer quem é o culpado e quem é que devia. “A busca do culpado é nosso machado de pedra cultural. A busca do bode expiatório é tática para não resolver. Como parte mais do que importante do delírio jurídico da humanidade, presente no papo vazio, temos as queixas, queixumes, lamentos, protestos e críticas, acusações e denúncias. Tudo o que sofri para ser, ou para continuar sendo, um cidadão honesto e respeitável, e tudo o que eu não recebi de volta por ser um bom filho, bom pai/mãe, bom profissional. A vítima é muito atuante em um número considerável de pessoas.”

Mas ainda tem uma outra fração importante do tempo do papo vazio: a fofoca nossa de cada dia. Se até aqui você ainda não se identificou, duvido que nunca tenha praticado o falar de tudo o que o outro é, e que não devia ser, a crítica a todo transgressor das normas que se têm como estabelecidas, nos pequenos grupos onde cada um vive. Na verdade, na visão de Gaiarsa, esta é uma agressão ao outro que faz de jeito diferente do meu. “Em termos familiares, esta fração de conversa vazia é relato de projeções que cada um faz, no outro, de todas aquelas características pessoais que, em seu pequeno mundo, não se deve ter. Entre a exibição de muitas virtudes pessoais, e a condenação dos vícios dos outros existe, como é fácil imaginar, uma secreta harmonia e uma profunda complementação. Projetar quer dizer: acreditar que o outro é capaz de fazer aquilo que secreta ou conscientemente eu também gostaria de ser capaz de fazer”."[...]

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sexta-feira, 21 de março de 2014

A ópera, a guerra e a ressurreição da Rússia




"Vinte anos após derrota e colapso da União Soviética, país retomou comando de sua economia e enorme influência internacional. Como isso foi possível?

Relembro, porque me causou uma profunda impressão. Uma montagem russa da ópera Guerra e Paz, de Serguei Prokofiev, na Bastilha. Era 1998, a União Soviética havia desaparecido, e a Rússia estava humilhada e destruída. A ópera Guerra e Paz estreou no Teatro Maly, em Leningrado, no dia 12 de junho de 1946, pouco depois da invasão e expulsão das tropas alemãs, e da vitória russa, na Segunda Guerra Mundial; e conta a história da invasão e expulsão das tropas francesas e da vitória russa, na guerra com Napoleão Bonaparte, em 1812. Na última cena, o povo e os soldados russos cantam juntos uma peroração apoteótica, proclamando a eternidade do “espírito russo”. Com força, emoção, convencimento, inesquecível.

E, de fato, depois da destruição de 1812, a Rússia se reconstruiu e se transformou numa das principais potências europeias do século XIX; e depois de 1945, a União Soviética voltou a levantar e se transformou na segunda potência militar e econômica do mundo, na segunda metade do século XX. Como já havia acontecido antes, em 1709, depois da invasão e da expulsão das tropas suecas de Carlos XII, por Pedro o Grande, quando a Rússia começa sua fantástica modernização do século XVIII. Mas em 1998, parecia impossível que isto pudesse acontecer de novo, depois da derrota soviética e da destruição liberal da economia russa. Dez anos depois, entretanto, no momento da posse do seu terceiro presidente republicano, Dmitri Medvedev, a Rússia está de novo de pé, e o “espírito russo” volta a assustar os europeus, e preocupar o mundo. O jornal Financial Times publicou recentemente um caderno especial sobre a Rússia, onde afirma que “nem Bruxelas nem Washington estão sabendo como tratar com a Rússia, depois de Vladimir Putin, porque a Rússia está cada vez mais disposta a retomar sua posição no mundo, em particular nos países da antiga União Soviética”. (1)

Em 1991, imediatamente depois da dissolução da União Soviética, os Estados Unidos e a União Européia, se colocaram o problema, e se atribuíram a tarefa de “administrar” a desmontagem do “império russo”. Por causa de suas conseqüências econômicas, e por causa do problema geopolítico da Europa Central. Para os Estados Unidos, o objetivo fundamental era impedir o surgimento de uma “terra de ninguém” no leste europeu. Por isto lideraram a expansão imediata das fronteiras da OTAN, e a ocupação das posições militares que haviam sido abandonadas pelos soviéticos, na Europa Central. Esta ofensiva estratégica da OTAN e da União Europeia, e sua posterior intervenção militar nos Bálcãs, foi uma humilhação para os russos e provocou uma reação imediata e defensiva que começou, exatamente, pela vitória eleitoral de Vladimir Putin, em 2000, e a retomada, pelo seu governo, de uma estratégia militar agressiva, depois de 2001.

Durante suas duas administrações, o presidente Putin, manteve a opção pela economia de mercado, mas recentralizou o poder, e reconstruiu o estado e a economia russa, refazendo seu complexo militar-industrial, e nacionalizando seus recursos energéticos. A Rússia ainda detém o segundo maior arsenal atômico do mundo, e o governo Putin aprovou uma nova doutrina militar que autoriza o uso de armamento nuclear, mesmo em caso de um ataque convencional à Rússia, na hipótese de fracassarem outros meios para repelir o agressor. Além disto, o novo governo russo alertou os Estados Unidos – ainda no ano 2000 — para a possibilidade de uma corrida nuclear, caso insistissem no seu projeto de criação de um “escudo anti-balístico” na Europa Central.

O interessante, do ponto de vista da história russa, é que agora de novo, como no passado, depois de 2001, também a economia russa se recuperou e voltou a crescer a uma taxa média anual de 7%, puxada pelos preços do petróleo e das commodities, e sustentada por um boom de consumo e de investimento interno. Este crescimento – liderado pelas grandes empresas estatais do setor de energia e armamentos — multiplicou seis vezes o produto interno da Rússia, que já superou o PIB da Itália, e deve superar o PIB da França, nos próximos dois anos. Dez anos depois da sua moratória, a Rússia detém a terceira maior reserva em moeda estrangeira do mundo, depois da China e do Japão, e seus salários subiram de uma média de U$ 80 dólares por mês, no ano de 2000, para U$ 640, no ano de 2007, quando a economia russa alcançou seu nível de atividade anterior à grande crise. E neste clima de boom econômico, o novo presidente Dmitri Medvedev convocou, recentemente, os empresários russos a copiar o modelo chinês e aderir à onda global de aquisição de empresas estrangeiras, para acelerar ainda mais economia russa, e reduzir a sua dependência tecnológica.

Ou seja, quinze anos depois da derrota e do colapso da União Soviética, o estado russo retomou o comando de sua economia e de sua inserção internacional. E tudo indica, neste início do século XXI, que está recuperando sua importância estratégica, como maior estado territorial do mundo, o único com capacidade de intervenção por terra, através de suas próprias fronteiras, em todo o continente eurasiano. Por isto, é uma rematada bobagem falar da Rússia como uma potência ou uma economia emergente, quando na verdade se trata de uma velha e grande potência que está reocupando sua posição tradicional na Europa, na Ásia Central e no Oriente Médio."[...]

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Mar.2014

sexta-feira, 14 de março de 2014

A Ucrânia e a “comunidade internacional”


"Sumário:

1 – A disputa da Ucrânia
2 – No quadro da Jugoslávia
3 – O cenário palestiniano
4 – A partição do Sudão
5 – Aventuras e desventuras do amigo Saddam
6 - O porta-aviões do Barhein

+++ x +++

A “comunidade internacional” faz-nos lembrar a bela ária de Verdi “la donna è mobile qual piuma al vento, muta d’accento e di pensiero”; só que esta “donna” não é uma mulher mas, a expressão dos volúveis interesses que espalham sofrimentos pelo planeta. E, por isso mesmo, se mantém com um contorno variável e impreciso.

A pluma agora está centrada nas planícies da Ucrânia e convém recordar a propósito, algumas das suas recentes mudanças ou duradouras atitudes.

1 – A disputa da Ucrânia

Parece claro que a Ucrânia vai mudar de configuração geográfica, pelo menos no que se refere à Crimeia, cuja secessão se concretizará muito em breve, mesmo que a “comunidade internacional” grite a várias e desafinadas vozes – Kerry, Ashton, Hollande e outras de menor audiência como o nosso Chancerelle. Algumas dessas vozes fazem-se ouvir só para cumprir calendário, pois a Crimeia não vale os negócios das cerca de 6000 grandes empresas com investimentos e bons negócios na Rússia. Certamente no jogo atual que se desenrola no cenário ucraniano vale muito mais o papel de Gerhard Schroeder, antigo chanceler alemão e atual executivo da Gazprom, do que todos os papagaios acima referidos.

Mais complicada será a situação no atual Leste ucraniano, em perfeita contiguidade geográfica com o Oeste, com populações de falas, crenças e estruturas distintas. Recordemos a propósito que a Ucrânia é uma construção estatal com apenas 23 anos e que a sua consolidação nunca passou da primeira infância. A Escócia tem previsto para setembro deste ano um referendo sobre a independência face ao reino dos Windsor e a bela “comunidade internacional” ainda não se indispôs com os escoceses.

Para além do foguetório diplomático e do alarmismo dos media que vêm a guerra como inevitável, resta o congelamento dos teres e haveres de 18 corruptos ucranianos próximos do Yanukovitch (incluindo o próprio) e o azedume revelado pela “comunidade internacional” quando enviou para o Mar Negro uma poderosa armada constituída por um destroyer para se juntar às temíveis (?) marinhas romena e búlgara, para além de dez aviões que remeteu para a Lituânia. Por comparação, recorde-se que, seis anos atrás os russos subtrairam a Abcásia e a Ossétia do Sul à Geórgia de Saakashvili que queria o seu país na NATO; e o célebre e ardente George W. Bush reconheceu que estava na área de influência da Rússia e meteu a viola no saco.

Em Kiev um governo recheado de fascistas, dirigido pelo banqueiro Yatseniuk, procurará garantir a integração na UE e na NATO, tentando convencer os ucranianos que os fundos comunitários não trazem, no final do processo a garantida inclusão numa já existente periferia leste, certamente pobre, desestruturada, não “competitiva” apesar dos baixos salários. Presume-se que o investimento estrangeiro terá alguma concentração nas boas terras negras onde a Monsanto e quejandas planeiam plantar os seus transgénicos, desalojando camponeses pobres. Esse processo está em curso na Roménia e a patente será também válida para a Ucrânia.

Aguardemos. Para quem não tem intervenção no terreno mais não é possível que analisar esses projetos de domínio e as suas consequências já observáveis noutras latitudes e tempos históricos, tendo em conta a hierarquia capitalista existente, as suas mutações e que os EUA são a única potência com capacidade e veleidades de intervenção a nível planetário. A Rússia é uma potência que também se procura impor nas suas imediações mas, que tem um caráter regional, distante do papel de superpotência que a antiga URSS detinha. Por outro lado, para os EUA, o principal adversário é a China que, convém seja dito, constitui com a Rússia a coluna vertebral da OCX – Organização de Cooperação de Xangai.

Resta saber se os 46 milhões de ucranianos de oeste e de leste, da Galícia, da Crimeia, ou do Donbass conseguem impor os seus interesses aos da hierarquia capitalista e dos estados que lhe dão forma; ou, se se deixam envolver em narrativas identitárias, de exclusão do “outro” perante o sorriso deliciado dos capitalistas e da CDU alemã cuja Fundação Konrad Adenauer financia o ex-boxer Klitschko. Essas narrativas já têm no terreno os seus cães de fila do Svoboda e do Sector Privado, abertamente nazis.

2 – No quadro da Jugoslávia

A Jugoslávia foi uma construção estatal que durou mais de 80 anos e nela se juntaram várias línguas, grafias, religiões, o que não impediu que se misturassem no território e na cama uns com os outros. Desavindos por causa de um ditadorzeco de meia tijela – Milosevic – a intervenção da “comunidade internacional” foi, de facto, decisiva. Não para aplacar os ânimos mas, para regar o terreno com ódios, separatismos, êxodos, limpezas étnicas, sangue e bombas de urânio empobrecido, que lá continuarão enterradas durante uns 10000 anos para recordar esses tempos às próximas 400 gerações.

Das seis repúblicas então federadas saíram sete mais as duas sub-repúblicas bósnias, todas pobres, endividadas, dependentes, ainda que duas delas tenham vindo matar saudades da sua velha inclusão no espaço do defunto império dos Habsburgos (Eslovénia a Croácia), sob o alto patrocínio da Alemanha e do Wojtyla. Não se sabe se o papa Francisco alguma vez virá a pedir desculpas formais aos jugoslavos que foram vítimas do bispo Ante Pavelic e dos seus ustachas cujas sevícias aos prisioneiros arrepiavam os SS nazis, que não eram exatamente meninos de coro.

A Sérvia caminha atrás da UE e dos seus fundos, qual burro atrás da cenoura, enquanto não reconhecer a existência do Kosovo, filho legítimo da “comunidade internacional”. Para ajudar esse benevolente dador de euros chamado UE, o Kosovo trabalha arduamente no tráfego de droga e de órgãos humanos; com um filho de saúde tão problemática, sua mãe, zela pela arrumação da casa com as tropas da KFOR e a base americana de Bondsteel, conhecida por pequena Guantanamo, o guardião da lei e da ordem de que a “comunidade internacional” tanto aprecia, em todo o cenário balcânico.

A Bósnia com uma burocracia estatal diversificada, por “etnia”[1], corrupta até ao tutano como é apanágio das burocracias, apresenta uma repartição territorial entre as duas repúblicas absolutamente disparatada. As dificuldades económicas mostram como é possível mandar às urtigas as taras nacionalistas, étnicas e religiosas e combater lado a lado, como se tem visto ultimamente.

Também a “comunidade internacional” acolheu com carinho a independência do Montenegro que tem apenas 620000 pessoas apenas porque a separação da Sérvia cortava a esta uma ligação direta ao Adriático.

Finalmente, surgiu uma Macedónia que só pode ser reconhecida como FYROM – Former Yugoslavian Republic of Macedonia, porque a Grécia considera ter direitos históricos sobre o nome de Macedónia, embora tenha sido esta a conquistar a terra grega e não o contrário.

Em suma, no espaço da ex-Jugoslávia sobra desintegração espacial, nacionalismos exacerbados, pobreza, desemprego, privatizações, emigração, tudo no quadro do modelo neoliberal com instituições “democráticas” que integram gangs mafiosos intitulados partidos políticos.

3 – O cenário palestiniano

Mesmo para quem defenda a existência da entidade israelita (não é o nosso caso) os atropelos das decisões da ONU ou dos acordos bilaterais e os crimes contra a Humanidade são tantos que nada justifica a infinita tolerância da “comunidade internacional” perante as punições militares sobre a população palestiniana e que nunca conduziu políticos e generais israelitas ao banco dos réus no Tribunal de Haia. A justiça da “comunidade internacional” observou-se com o já referido Milosevic e outros patifes jugoslavos, tal com o liberiano Taylor mas, já não com israelitas porque estes têm um seguro junto dos Rotschild e afins.

A construção do muro de separação entre o território palestiniano ocupado e o que vai sobrando como integrando a Autoridade Palestiniana é condenado em todas as instâncias sem que a “comunidade internacional” se digne ao mais ligeiro boicote, à mais leve das sanções sobre os genocidas israelitas. Prosseguem actos de desestruturação do território palestiniano, de apropriação da água, de policiamento sistemático e armado daquele território teoricamente sob os auspícios da tal Autoridade, que torna esta um simples ornamento político. A recusa dos direitos de pesca nas águas de Gaza, o controlo das fronteiras palestinianas, são outras tantas atitudes que mereceriam atitudes firmes da “comunidade internacional”.

A autoridade israelita detém – sem subscrever os termos do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares – umas 150 bombas atómicas, num cenário regional onde nenhum estado as têm. E nem se compreendem os receios da entidade israelita, quando se sabe os seus mísseis Jericó terem um alcance de 15000 km… o que permitirá aos sionistas atingir, por exemplo, o Rio de Janeiro. Este arsenal atómico inicialmente construído com apoio francês não é objeto de contestação nem sanções por parte da “comunidade internacional”; porém, o Irão não se demonstrando que possua armas atómicas, tem sido vítima de pesadas sanções decretadas pela “comunidade internacional” à qual convém manter a ilusão da sua existência, para criar dificuldades ao país tendencialmente pivot na área do Golfo Pérsico.

A “comunidade internacional” revela-se na sua forma mais esquelética e ridícula quando, nas votações condenatórias da entidade israelita na ONU, os sionistas só têm o apoio dos EUA e das Ilhas Marshall.

A UE, tropa indisciplinada que incorpora a “comunidade internacional” sem determinar as suas decisões, assume também a sua benevolência para com a entidade israelita quando limpa a sua consciência entregando uns milhões de euros à Autoridade Palestiniana para a recuperação dos estragos provocados pelos bombardeamentos sionistas, sem os incriminar e mantendo as relações diplomáticas, económicas e desportivas com aquele quisto genocida."[...]

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Grazia Tanta

Mar. 2014

sexta-feira, 7 de março de 2014

A esquerda sem povo


"1. O divórcio entre a esquerda e as classes populares não é um fenómeno novo. Os sinais de alarme é que passaram a soar com uma intensidade inédita, graças à passagem do voto popular para formações populistas e eurocépticas num grau sem precedentes. A Frente Nacional, de Marine Le Pen, é o primeiro partido popular francês, designadamente entre os operários: 40% dizem rever-se nas suas ideias. Poderíamos também referir a Itália. Nas eleições de Fevereiro, o Movimento 5 Estrelas, de Beppe Grillo, conquistou 40% do voto operário, à frente de Berlusconi, com 25,8%, e da coligação de centro-esquerda reunida em torno do Partido Democrático, com 21,7%. O PSF francês, o PSOE espanhol, o PD italiano ou o PS português, ainda que invocando sempre “o povo”, não são vistos como “partidos populares” mas como partidos das classes médias.

A questão pode ser formulada de outra maneira: que responsabilidade tem a esquerda nos surtos populistas? Escutemos duas opiniões. Escreveu em 2012 o politólogo francês Laurent Bouvet no livro Le Sens du peuple: la gauche, la démocratie, le populisme: “Ao longo da última década, um pouco por toda a Europa e com ganhos no plano eleitoral, [a extrema-direita] foi ao encontro de aspirações populares abandonadas pela esquerda: o trabalho, a identidade nacional, o modelo de autoridade sócio-familiar, o sentido de pertença e de protecção colectiva.” Os “sem-papéis” e as minorias identitárias ou culturais tornaram-se para a esquerda “um povo de substituição”. Concluía: “A esquerda perdeu o povo e tem medo do populismo.”

Algo de semelhante dissera, 15 anos antes, o historiador e jornalista Jacques Julliard: desmoralizado e abandonado pelas elites, o povo perdeu a sua bússola e a sua identidade para mergulhar no populismo. Acusava as elites políticas e tecnocráticas da esquerda — e também aqueles revolucionários “que mudaram de proletariado nos anos que se seguiram a 1968. Substituíram os operários pelos imigrantes e passaram para estes o duplo sentimento de temor e de compaixão que o proletário geralmente inspira.” Observava sobre o tema da segurança: “As classes populares não são por natureza mais conservadoras ou repressivas; são as mais expostas, eis tudo” (La Faute aux élites, 1997). Cinco anos depois, Jean-Marie Le Pen afastava o socialista Lionel Jospin da segunda volta das presidenciais.

2. Muito se tem escrito sobre a nocividade da crise financeira para os partidos socialistas ou social-democratas, mais atingidos do que os conservadores por terem mais dificuldade em formular um projecto próprio para a enfrentar. Mas a crise da social-democracia, de natureza estrutural, é mais antigo. De forma sumária, pode dizer-se que a social-democracia entrou em declínio no fim dos anos 1970 quando se começou a romper a aliança entre as novas classes médias urbanas e a classe operária. Esta “coligação” assentava num crescimento económico acelerado — “os trinta anos gloriosos” — na promoção social e na criação do Estado-providência. O modelo de crescimento foi posto em causa após o “choque petrolífero” de 1973. O keynesianismo que a ele presidira começou a dar lugar ao neoliberalismo — Reagan e Thatcher.

Como efeito da “era pós-industrial” e, mais tarde, da globalização, a classe operária viu-se “atacada” em termos absolutos e relativos, arrastando consigo o declínio sindical. O Estado-providência começou a ser corroído. O “elevador social” desacelerou. A sociedade tendeu a polarizar-se entre beneficiários e perdedores da globalização. Esta mudança abriu um debate nos partidos socialistas ou social-democratas. Como recompor a esquerda política? Uma das tentativas foi a “terceira via” de Tony Blair, hoje esgotada. Na França ou na Espanha, parte da esquerda tem-se proposto, desde o fim dos anos 1990, transferir os esforços de “transformação social” para a esfera dos direitos individuais.

3. O debate foi reactualizado na preparação da candidatura de François Hollande. Em Maio de 2011, o think tank socialista Terra Nova, constatando que “a social-democracia perdeu a sua base eleitoral” e que na origem da fractura está uma mudança de valores, propôs a construção de “uma nova maioria eleitoral” excluindo as “categorias populares”. Vale a pena rever a argumentação: “Historicamente, a esquerda política reflectia os valores da classe operária, os económico-sociais e os culturais. (...) A partir do fim dos anos 1970, a ruptura vai fazer-se em torno do factor cultural. O Maio de 68 arrastou a esquerda para o liberalismo cultural: liberdade sexual, contracepção, aborto, contestação da família tradicional. Este movimento sobre as questões da sociedade reforçou-se no tempo para se exprimir hoje em termos de tolerância, de abertura às diferenças e uma atitude favorável perante os imigrantes, o islão, a homossexualidade e a solidariedade com os excluídos. Paralelamente, os operários fizeram o caminho inverso. O declínio da classe operária — crescimento do desemprego, precarização, perda da identidade colectiva e do orgulho de classe, dificuldade de viver em certos bairros — leva-a a reacções defensivas: contra os imigrantes, contra os assistidos, contra a perda dos valores morais e as desordens da sociedade contemporânea.”

A ala esquerda socialista, antiliberal no plano económico, adoptou no plano social e cultural uma linha liberal e multiculturalista. Seria através de temas “societais” ou “fracturantes” — do casamento gay ao voto dos imigrantes nas eleições municipais  — que a esquerda deveria conquistar a hegemonia. O espanhol José Luís Zapatero explorou este filão para assegurar a coesão da esquerda perante a direita. Mas não logrou encobrir a impotência no plano económico, o que redundou na catastrófica derrota eleitoral de 2011."[...]

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