Raul Iturra
Dilema de mãe,
lembrança de mãe. Lembrança de mãe porque para o homem é natural mostrar a
intimidade que tem com a mulher: a sua ou outra qualquer. Não há registo, no
citado Diário de Vida, da mãe ter tido outro homem para além do seu.
Porque a lembrança da mãe tem por base o sentido de pertença para a pessoa com
ela comprometida e com a qual se comprometera na saúde ou na doença, para toda
a eternidade. Conceito de fidelidade ou lealdade, base também para toda a
interacção com o mundo exterior. A lembrança que desenha melhor a mulher/mãe, é
a sua entrega à casa e aos que nela vivem, sejam adultos ou crianças. Relação
que passa à frente de qualquer outra, mesmo com o cansaço do trabalho provocado
pela forma económica actual (a mulher tem de trabalhar fora de casa como agente
activo do orçamento familiar) e, paralelamente, manter a organização e a
disciplina do lar. Lembrança dupla da mãe: trabalho doméstico nas suas mãos,
trabalho económico fora do lar mas para o lar e os seus. É a entrega infinita
no seu processo de adquirir o estatuto de progenitora, apenas reflectido no
mito religioso de uma Nossa Senhora, das muitas que existem face ao grupo
social. Uma Nossa Senhora a concorrer com a real progenitora.
O Diário de
Vida encerra muitas lembranças, desde a alimentação à intimidade sexual. No
entanto, foi esta última que me chamou à atenção. Raramente se fala da
intimidade dos adultos da casa, principalmente das lembranças da mãe. Como diz
um outro amigo meu: um calafrio percorre o meu corpo se penso na minha mãe a
fazer as «porcarias» que eu faço com a minha ou com outras mulheres. A mãe
não tem direito ao seu próprio divertimento e, muito menos, a falar dele, mesmo
que a conversa seja pura, calma e directa. A mulher/mãe é apenas um processo de
criar e amamentar. As roupas, o batom, as pinturas, as jóias, os livros, as
flores e até namoros com outros homens, que podem acontecer porque são
naturais, fazem parte do seu universo. Um desejo natural de possuir figuras
diferentes do eterno companheiro adquirido até à morte porque o Concilio Romano
de Trento assim o definiu em 1539. Será que Alice Miller em 1998 estava
enganada ao escrever que A verdade libertar-te-á, ou em 1984, Não
sereis conscientes da verdade. A traição da criança. Ou Melanie Klein no
seu artigo de 1928: Estágios iniciais do conflito Edipiano? Ou, ainda,
Eduardo Sá, em 1995, ao falar das Más maneiras de sermos bons pais? Qual
das duas ideias de Daniel Sampaio é mais importante, a de 1994,Inventem-se
novos pais, ou a de 1998 Vivemos livres numa prisão?
Não posso
concluir. A temática é extensa e demasiado importante num País Romano como
Portugal. Mas, ficam na minha memória as confidências de outras lembranças das
muitas mães que comigo falaram, para saberem como podiam ser explicar
explicitamente aos mais novos que eram mulheres ao mesmo tempo que mães, porque
os seus filhos não cresceriam se não entendessem essa diferença fundamental.
Diferença que leva muitos a pensarem que um adulto deve ocultar a sua vida à
criança. Especialmente se são lembranças da mãe, porque ser mãe é o processo de
entrar como uma Nossa Senhora, ideia que a maior parte dos Cristãos Romanos,
dos Koptos da Arménia e dos Ortodoxos da Grécia e da Rússia, definem a mulher.
Nunca se pode esquecer que é mãe e não mulher, muito menos senhora, porque é
apenas Sra. de….. Tratamento injusto e desadequado como temos visto nos dias de
guerra, ao observamos serem elas a procurar alimentos, enquanto eles aldrabavam
com armas fracas para se sentirem masculinos a lutar contra um inimigo configurado.
A lembrança da mãe alimentar, levou muitas mulheres a passar em frente das
balas. Como a minha própria mãe, a única que me visitou num campo de
concentração, faz já trinta anos. Curou o meu sarampo, aconselhou-me nas
doenças das netas, com discrição, e soube guardar distância silenciosa entre as
suas ideias monárquicas e as minhas socialistas, que, sem saber, apoiou. Pelo
que fico agradecido. Mais uma lembrança de mãe, porque o seu amor é
incondicional.
(do
blogue Aventar)