quinta-feira, 21 de março de 2013

Lembranças de mãe (II)



 
Raul Iturra

Dilema de mãe, lembrança de mãe. Lembrança de mãe porque para o homem é natural mostrar a intimidade que tem com a mulher: a sua ou outra qualquer. Não há registo, no citado Diário de Vida, da mãe ter tido outro homem para além do seu. Porque a lembrança da mãe tem por base o sentido de pertença para a pessoa com ela comprometida e com a qual se comprometera na saúde ou na doença, para toda a eternidade. Conceito de fidelidade ou lealdade, base também para toda a interacção com o mundo exterior. A lembrança que desenha melhor a mulher/mãe, é a sua entrega à casa e aos que nela vivem, sejam adultos ou crianças. Relação que passa à frente de qualquer outra, mesmo com o cansaço do trabalho provocado pela forma económica actual (a mulher tem de trabalhar fora de casa como agente activo do orçamento familiar) e, paralelamente, manter a organização e a disciplina do lar. Lembrança dupla da mãe: trabalho doméstico nas suas mãos, trabalho económico fora do lar mas para o lar e os seus. É a entrega infinita no seu processo de adquirir o estatuto de progenitora, apenas reflectido no mito religioso de uma Nossa Senhora, das muitas que existem face ao grupo social. Uma Nossa Senhora a concorrer com a real progenitora.

O Diário de Vida encerra muitas lembranças, desde a alimentação à intimidade sexual. No entanto, foi esta última que me chamou à atenção. Raramente se fala da intimidade dos adultos da casa, principalmente das lembranças da mãe. Como diz um outro amigo meu: um calafrio percorre o meu corpo se penso na minha mãe a fazer as «porcarias» que eu faço com a minha ou com outras mulheres. A mãe não tem direito ao seu próprio divertimento e, muito menos, a falar dele, mesmo que a conversa seja pura, calma e directa. A mulher/mãe é apenas um processo de criar e amamentar. As roupas, o batom, as pinturas, as jóias, os livros, as flores e até namoros com outros homens, que podem acontecer porque são naturais, fazem parte do seu universo. Um desejo natural de possuir figuras diferentes do eterno companheiro adquirido até à morte porque o Concilio Romano de Trento assim o definiu em 1539. Será que Alice Miller em 1998 estava enganada ao escrever que A verdade libertar-te-á, ou em 1984, Não sereis conscientes da verdade. A traição da criança. Ou Melanie Klein no seu artigo de 1928: Estágios iniciais do conflito Edipiano? Ou, ainda, Eduardo Sá, em 1995, ao falar das Más maneiras de sermos bons pais? Qual das duas ideias de Daniel Sampaio é mais importante, a de 1994,Inventem-se novos pais, ou a de 1998 Vivemos livres numa prisão?

Não posso concluir. A temática é extensa e demasiado importante num País Romano como Portugal. Mas, ficam na minha memória as confidências de outras lembranças das muitas mães que comigo falaram, para saberem como podiam ser explicar explicitamente aos mais novos que eram mulheres ao mesmo tempo que mães, porque os seus filhos não cresceriam se não entendessem essa diferença fundamental. Diferença que leva muitos a pensarem que um adulto deve ocultar a sua vida à criança. Especialmente se são lembranças da mãe, porque ser mãe é o processo de entrar como uma Nossa Senhora, ideia que a maior parte dos Cristãos Romanos, dos Koptos da Arménia e dos Ortodoxos da Grécia e da Rússia, definem a mulher. Nunca se pode esquecer que é mãe e não mulher, muito menos senhora, porque é apenas Sra. de….. Tratamento injusto e desadequado como temos visto nos dias de guerra, ao observamos serem elas a procurar alimentos, enquanto eles aldrabavam com armas fracas para se sentirem masculinos a lutar contra um inimigo configurado. A lembrança da mãe alimentar, levou muitas mulheres a passar em frente das balas. Como a minha própria mãe, a única que me visitou num campo de concentração, faz já trinta anos. Curou o meu sarampo, aconselhou-me nas doenças das netas, com discrição, e soube guardar distância silenciosa entre as suas ideias monárquicas e as minhas socialistas, que, sem saber, apoiou. Pelo que fico agradecido. Mais uma lembrança de mãe, porque o seu amor é incondicional.

(do blogue Aventar)

segunda-feira, 18 de março de 2013

Lembranças de mãe(I)



 
Raul Iturra

Nós, adultos, esquecemos que a mãe é pessoa e vemo-la como processo. Além do carinho e emotividade que unem uma criança à sua progenitora, existem, de forma igualmente importante, várias fases no percurso da sua vida, sendo um o caminho de mãe. A primeira, que de todo não pode ser escolhida, é nascer mulher: até aos nossos dias, não se inventou um ser que a substitua na estrutura hormonal e na configuração biológica necessárias para dar vida a um bebé e amá-lo. Muito menos, a invenção da leveza do ser que caracteriza a relação mãe/criança. Não me esqueço da frase de um amigo meu ao confidenciar-me a sua tristeza pelo facto da mãe ter ficado inválida:

Não sei o que fazer… apenas consigo chorar! A minha resposta foi rápida e directa: O que o meu amigo chora não é a doença da sua mãe, o que chora é a falta do mimo embelezado dos carinhos dela. Doravante, será o contrário: é a mãe que vai precisar dos cuidados do filho. Ele, incapaz de devolver essa elegância de mimos que na sua infância, a mãe lhe incutira, optou por nunca mais a visitar. É esta arte da fuga que os (as) filhos (as) adultos, configuram na relação ascendente/descendente, face a pais já anciães, no seio de uma sociedade que ensina (embora nem sempre se aprenda) a honrar pai e mãe. O hábito de contar, desabafar ou ser aconselhado, fica inserido na mente do adulto maduro, como se ainda fosse um catraio. Tudo se torna mais difícil, se a mãe passa a ser uma pessoa lenta, esquecida, voltando, ela própria, à fase de bebé, ao regredir.

Mas, se a mãe é um processo, é preciso sairmos da regressão para entrarmos na História. A rapariga casa com paixão (ou opta por uma união de facto, hoje em dia é igual). Dentro dessa paixão o bebé é estruturado, até se converter num ser humano autónomo necessitanto da mãe para saber o que e como fazer com os seus próprios filho. Embora saibamos que existem mães que ignoram os filhos, não são as que, de momento, me interessam, eu diria, aliás, que o que me interessa é exactamente o oposto. A mãe, leal como sempre é com a sua criança, ouve, vê, sente e proporciona-lhe ideias. As lembranças de mãe passam por factos que a criança nunca entendeu e, como adulto, continua a ignorar, por isso não partilha com o seu ascendente. No Diário de Vida de uma Senhora, que me foi ofertado num período em que estava em trabalho de campo, li este pensamento: como devo fazer para a minha pequenada não ouvir a intimidade que tenho com o pai, os meus suspiros, os meus naturais gritos de prazer, a exibição da minha nudez que desejo mostrar ao meu homem para o manter vivo? E se o meu pequeno entra no quarto…. ? É este problema que a maior parte dos adultos têm. Especialmente as mães. O corpo da mãe tem várias funções. A primeira, é ser ela própria e considerar qual a forma de manter a sedução para o seu homem. Uma mãe não é apenas uma entidade que amamentará a descendência: é também cônjuge ou parte integral de uma relação que permite que o seu estatuto maternal seja um processo de crescimento. Ocultar o corpo que deve também mostrar, é um dos dilemas da mulher. Dilema não contraditório, mas muito delicado. Diz esse Diário de Vida: estávamos a namoriscar a noite passada (sempre à noite, não sei porquê), entrou no quarto, de forma inesperada, o nosso filho mais velho; foi preciso esperar, dissimular, trocar lugares na cama… a correr. No entanto, penso que ele intuiu uma «aldrabice», ao comentar no dia seguinte se a mãe estava a brincar à Julia Roberts em Notting Hill, ou à Andie MacDowell em Quatro Casamentos e um Funeral, quando elas mostravam os seios, tal como eu ao meu homem?

(continua)

sábado, 16 de março de 2013

As Raízes da Violência Policial(II)



  
Nildo Viana
[…] De nada adianta apresentar propostas como o aumento dos salários, a melhoria das “condições de trabalho”, implementação da pena de morte, etc., pois o aumento de salário nunca levará os agentes policiais ao cume da pirâmide social; a melhoria das “condições de trabalho” significa melhoramento nos meios de repressão que, certamente, continuarão, em muitos casos, sendo usados de forma contrária ao que se propõe e também para fins político-repressivos; a pena de morte não significa combate à criminalidade e sim aos criminosos. As duas primeiras medidas podem ser implementadas e, no caso da primeira, é bastante importante, pois pode contribuir com a diminuição da corrupção no sistema policial. Entretanto, essas reformas não são suficientes para resolver o problema da violência policial e/ou o problema da criminalidade. Isto ocorre por que tais reformas não chegam até as raízes da violência policial, pois a questão policial é uma questão social.
A violência estatal organizada e o sistema político corrupto são outras determinações da violência policial. O Estado, originado da sociedade civil, acaba se autonomizando e se tornando uma excrescência parasitária e que exerce o papel de reproduzir as relações de produção capitalistas, através das mais variadas formas, entre as quais, a repressão e a defesa de determinados interesses em seu interior, de grupos que estão no governo, aliados a outros grupos existentes na sociedade.Assim, a violência estatal é uma forma de manifestação de violência de classe, na qual as classes exploradas e grupos oprimidos são as principais vítimas, bem como seus aliados em outros setores da sociedade. A violência policial, mais especificamente, também atinge os setores mais empobrecidos da sociedade, pois o policiais como indivíduos e o sistema policial como um todo não visa os grandes criminosos, que roubam milhões, lucram com o narcotráfico, etc., mas apenas aqueles que são vítimas desse processo através da pobreza, miséria, desemprego.
A violência policial foi tratada, até aqui, a partir das motivações do policial individual de entrar no sistema de corrupção, de ser violento, etc., que é uma de suas determinações mas estão envolvidas em outras determinações mais amplas, tal como o processo social em geral, sociabilidade, e os interesses de classes e grupos que agem sobre o Estado e faz com que este, ao invés de cumprir seu papel legitimado pela sociedade, faça um papel totalmente antagônico aos seus propósitos e sua própria ideologia do “estado de direito”, sendo palco de corrupção e criminalidade, atingindo indivíduos comuns e prejudicando a população que, supostamente, deveria defender. O Estado é criminoso quando persegue a oposição política, pois está no regime legal de quase todos os países a “liberdade de opinião”, “liberdade de expressão”, “liberdade de reunião”, etc. Ele é criminoso quando vigia, pune, pessoas inocentes ou mesmo o faz sem o devido julgamento e o famoso “direito de defesa”. Portanto, o combate à criminalidade estatal e sua forma mais visível, a violência policial, passa pelo controle da população sobre o sistema policial, algo extremamente difícil no capitalismo, mas que pode e deve ser uma bandeira de luta e pode se concretizar, mesmo que precariamente, o que contribuiria com outras lutas e com o processo de transformação social, desde que haja auto-organização da população, nos locais de moradia, trabalho, estudo, etc.
A resolução dos problemas da criminalidade e da violência policial só será conquistada com a transformação radical das relações sociais e isto pressupõe a construção de uma nova sociedade em substituição a sociedade capitalista. Enquanto isto não ocorre, é preciso tomar medidas que impeçam o florescimento da violência policial, da corrupção no sistema policial e da criminalidade. Além das reformas acima citadas (com exceção da pena de morte que é apenas a tentativa de legalizar um ato criminoso, que é o atentado contra o direito à vida), deve-se acrescentar um conjunto de mudanças em todo o sistema policial, tais como: a) mudança na formação de quadros policiais, implementado-se cursos contendo disciplinas como sociologia e psicanálise, que devem ser ministrados através de convênios entre as instituições policiais e as associações representativas destas  categorias; b) criação de meios de controle sobre o sistema policial por parte do sistema judiciário, entidades da sociedade civil e população em geral; c) apresentar como objetivos do sistema policial não a punição e o combate aos criminosos e sim a prevenção, recuperação e o combate à criminalidade, o que significa não só a prevenção em relação ao ato criminoso, mas também em relação às determinações que desencadeiam estes atos.
Portanto, é fundamental combater as raízes da criminalidade e isto significa combate à miséria, ao desemprego, etc., e isto está relacionado com o processo de transformação social em geral. Esta é a estratégia para lutarmos pela transformação do sistema policial e abolir a violência policial.

(do Blogue Informe e Crítica)

sexta-feira, 15 de março de 2013

As Raízes da Violência Policial(I)



 
Nildo Viana
O que justifica a existência do sistema policial é a sua função de cuidar da segurança pública e garantir o cumprimento das leis. Esta justificativa, entretanto, se revela ideológica, já que inverte a realidade e esconde o fato de que o sistema policial, muitas vezes, cumpre um papel, oposto ao que se propõe. Porquanto o sistema policial possua uma função que vai além do combate a criminalidade e em defesa do cumprimento das leis instituídas (incluindo a repressão política), ele, além disso, ultrapassa os limites legais de suas funções e reproduz a criminalidade. O sistema policial vem sendo envolvido em constantes acusações de abuso de autoridade, de corrupção, de envolvimento em crimes, de formação de grupos de extermínio, etc. Resta sabermos as razões que levam uma instituição, que foi criada para combater a criminalidade, e que, em muitos casos, acaba reproduzindo-a.
Pode-se argumentar que os baixos salários dos policiais, a ineficiência e morosidade do poder judiciário são algumas das razões que levam a deformação do sistema policial. Isto, sem dúvida, é verdade, mas não é suficiente para explicar a escolha das “soluções” feitas pelos agentes policiais.
O abuso de autoridade e a formação de grupos de extermínio é produto de uma reação às deficiências do sistema judiciário nacional, mas é uma reação específica a estas deficiências. Esta reação se caracteriza pela utilização de meios criminosos para combater a criminalidade. Desta forma, rompe com a legalidade sob o pretexto de mantê-la, ou seja, o problema deixa de ser a criminalidade para ser o criminoso. A criminalidade é uma relação social que colocam sujeitos sociais frente a frente e que apresenta, nesta relação, o desrespeito aos direitos alheios, rompendo, assim, com a legalidade. Portanto, é o infrator da lei, definido pela infração da lei, que é o criminoso. O policial que comete abuso de autoridade ou participa de grupos de extermínio está preocupado com o criminoso e não com a criminalidade e por isso reproduz esta, tornando-se um criminoso também. O abuso de autoridade e o extermínio são infrações contra a lei e o infrator, no caso, o policial, é um criminoso como outro qualquer. A única diferença são as motivações do criminoso: o assaltante pode roubar comida por estar com fome e o policial que o prende e depois o espanca o faz por se considerar “a encarnação da justiça”.
Esta é uma das raízes da violência policial. O policial tem a tendência a se considerar como a ‘encarnação da justiça”. Um conjunto de fatores cria tal ilusão: a farda policial, o treinamento recebido e a própria função de “representante da lei” são alguns destes fatores mas existem outros, como, por exemplo, a imagem do policial criada pela sociedade que o distingue dos demais “cidadãos comuns”. Os filmes policiais que, na maioria dos casos, mostram o herói policial que rompe com as diretrizes apresentadas pelos seus superiores e faz a justiça “ao seu modo” ou “pelas próprias mãos” é outro reflexo desta imagem social do policial. A farda é uma distinção simbólica que expressa uma distinção social. A distinção entre aquele que executa a lei – o policial – e aquele que apenas pode reivindicar tal execução (o “cidadão comum”) é reconhecida pela sociedade e isto reforça o sentimento de “justiceiro” que domina os agentes policiais. Assim, o policial passa a se considerar “acima dos mortais” ou seja, considera-se acima das limitações humanas, dotados de infalibilidade, sem problemas de ordem psíquica, cultural, afetiva, intelectual, etc., e que por isso sempre pode julgar com “neutralidade” e “justiça” os demais cidadãos. O “representante da lei” se autonomiza e passa a se considerar a própria lei e volta-se contra ela, infringindo-a e, ao mesmo tempo, não infringindo-a, segundo a racionalização do policial, por que ela não é mais àquela da legislação e sim ele – o policial – com sua vontade arbitrária e independente de quaisquer critérios.
Portanto, o policial se julga a “encarnação da justiça” e isto lhe dá o direito, do seu ponto de vista, de infringir a própria lei que lhe concedeu a autoridade de ser seu “representante”. Outras causas para tal comportamento já foram explicitadas pela psicanálise nos seus estudos sobre a personalidade autoritária. Não cabe aqui aprofundar a contribuição da psicanálise, mas é necessário deixar claro que a família, tal é constituída hoje, é uma fonte para a formação de pessoas com uma personalidade autoritária e a escolha da carreira policial já deixa implícito, em muitos casos, as motivações psíquicas que lhe dão origem.
Isto somado com a “imagem social” do policial, reforçada pela própria prática dos policiais, e com a convivência em uma ambiente de criminalidade produzem as motivações da violência policial. Porém, existe uma outra razão que gera não só a violência policial, mas também a própria corrupção do sistema policial. Esta é o que podemos chamar de sociabilidade, ou seja, o conjunto das relações sociais que reproduzimos cotidianamente de forma automática e semi-consciente, gerando uma determinada mentalidade dominante pautada pelos valores dominantes.
A sociedade capitalista é competitiva por natureza e isto se manifesta em todas as relações sociais. Os indivíduos introjetam em seu universo mental estas relações e assim a competição acaba se tornando um componente da mentalidade das pessoas. A “competição social” surge da competição que ocorre derivada das relações de produção capitalistas e se expande para todos os aspectos das relações sociais (“políticos”, artísticos, culturais, cotidianos, esportivos, entre outros). A vida torna-se uma competição com objetivo de atingir o cume da pirâmide social, na realidade através do “poder econômico”, ou na aparência, através da busca de status. Logo, todos os indivíduos buscam a ascensão social, independente de quais forem os meios para atingir isto. O policial está envolvido nestas relações sociais e as reproduz. A sua origem social, geralmente dos estratos mais pobres da população, e os seus baixos salários, juntamente com outros fatores, colocam-no em uma situação desvantajosa na competição social. Isto sem falar que sua situação de vida precária pode produzir constantes conflitos familiares. Ele passa a ter a necessidade psíquica de compensar isto. Além disso, cria-se uma situação de insatisfação que torna-o agressivo e reforça suas tendências autoritárias. Assim, ele se torna mais corruptível, por um lado, e mais autoritário e violento, por outro. Esta é a principal fonte da violência policial e, como se pode observar, há um entrelaçamento entre todas as suas determinações e que envolvem o conjunto das relações sociais.[…]
(continua)