“A direita portuguesa contemporânea: itinerários socioculturais (1)
Em 1983 foi
criado o jornal Semanário por Marcelo
Rebelo de Sousa, Daniel Proença de Carvalho, José Miguel Júdice, João
Lencastre, Vítor Cunha Rego, João Amaral, entre outros (2). Nos outdoors da campanha publicitária de
lançamento surgiam, o que é significativo, os rostos dos fundadores desse
jornal. Mais tarde, em 1988, O
Independente usaria Winston Churchill nos seus outdoors promocionais, um outro sinal de que Portugal mudara – e
muito – desde os tempos do PREC (3). O Semanário
teria como repórter, que entrevistava em Paris figuras da «grande direita»
europeia, sobretudo francesa (e não anglo-saxónica, note-se), um jovem chamado
Paulo Sacadura Cabral Portas. Não era uma estreia: com uma notável precocidade,
Paulo Portas já tinha trabalhado no jornal A
Tarde, dirigido por Vítor Cunha Rego, ao lado de personalidades como Vasco
Pulido Valente, António Barreto, Manuel de Lucena ou Francisco Saarsfield
Cabral. Regressemos ao Semanário.
Além da política, num tempo em que o jornalismo económico era muito incipiente
– até por efeito colateral da incipiência da actividade privada nos
sectores-chave da economia – o Semanário,
a dada altura, a altura das privatizações e das Ofertas Públicas de Venda
(OPV’s) (4), teria um papel importante na informação económica ou na orientação
dos compradores de acções.
Mas, por muito
descabido que pareça, o aspecto que aqui quero focar foi o surgimento, creio
que logo no primeiro número do Semanário,
de uma rubrica intitulada «Meia Desfeita», uma coluna social com fotografias,
originalmente a preto e branco, de festas ou eventos mundanos em discotecas que
renasciam das cinzas, como o Van Gogo, de Cascais, ou o Stone’s, de Lisboa, ou
outras que viam a luz do dia – ou da noite… – nessa época, como o Banana Power,
criado em 1981 por um conjunto de sócios liderados por Manecas Mocelek, boémio
e empresário da vida nocturna que em 1975 partira para Angola e, depois, para o
Brasil. Sendo uma discoteca com restaurante
e clube privado de acesso restrito, o Bananas,
como era vulgarmente conhecido, com senhas de entrada a 150$00 para o comum dos
mortais e cartão gold para os sócios,
correspondia a um padrão cultural – e mental – que teria sido impensável no
período revolucionário (5). A sua festa de inauguração foi, por assim dizer, o
«Baile Patiño da democracia» ou o «25 de Novembro social» de certas elites e
até de uma certa Weltanschauung, mais
mundana e frívola. Assumir pública e abertamente, sem traumas nem complexos, a
mundanidade e a frivolidade representava uma viragem muito sintomática
relativamente aos tempos mais inflamados da revolução.
A par disso, a
«Meia Desfeita» publicitava acontecimentos como corridas de touros ou raids hípicos, dando visibilidade a
redes de sociabilidades desde sempre conotadas com a direita tradicionalista,
marialva e ultramontana, ou aos exclusivos bailes de debutantes no Clube
Portuense, estudados por Clara Maria Ferraz no âmbito de um trabalho académico
sobre as estratégias endogâmicas das classes superiores (6). Para o público
feminino, e não só, a rubrica «Meia Desfeita» era um dos principais atractivos
do novo periódico, a ponto de, seguindo uma ideia de Marcelo Rebelo de Sousa,
Vítor Cunha Rego e José Miguel Júdice, se ter transformado mais tarde numa
revista autónoma, a cores, vendida com o próprio jornal, a Olá!, numa tentativa óbvia, porventura demasiado óbvia, de
mimetização da sua congénere espanhola, a ¡Hola!.
A dada altura, de algum declínio, muitas pessoas compravam o jornal por causa
da revista Olá! e não o contrário. Na
sua fase de agonia, que terminaria com o encerramento em 2009, o Semanário viria a ser comprado por uma
personalidade hoje relativamente esquecida, Rui Teixeira Santos, um yuppie meteórico que também adquirira os
armazéns Braz & Braz.
Olá! Semanário
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Poder-se-ia
falar do papel que o Semanário,
sobretudo a sua coluna «Mão Invisível», também
teve – e lembremos que tudo isto
coincide com o emergir do reaganismo e com o thatcherismo – na difusão do
pensamento económico liberal ou neoliberal de uma geração que, de Jorge Braga
de Macedo a Diogo Lucena, passando por António Borges ou pelos irmãos Pinto
Barbosa, possuía ligações académicas aos Estados Unidos ou ao INSEAD de
Fontainebleau e que começou um processo de internacionalização universitária
«em rede» que era relativamente inédito na academia portuguesa. Quero
concentrar-me no aspecto mundano do jornal e não o faço por um desejo de originalidade
ou para fazer uma deambulação nostálgica por curiosidades esquecidas dos anos
oitenta (7). Mas creio que, de facto, se não cairmos em exageros, a revista Olá!, pelo que significou
historicamente, tem relevo cultural, sociológico e até ideológico. Sempre
existiram revistas sociais em Portugal e, desde 1976, Jacques Rodrigues
publicava com grande êxito a Nova Gente.
Simplesmente, a Nova Gente falava de
actores da moda, muitos vindos do teatro de revista, de cantores populares e
futebolistas, mas não tinha, creio que até deliberadamente, qualquer glamour. Na linha do que sempre seria a
marca do Grupo Impala, era uma revista vocacionada para a classe média e para a
classe média-baixa, de grande tiragem, tendo chegado aos 150.000 exemplares em
finais dos anos oitenta.
No entanto, o
facto de um jornal como o Semanário,
que veiculava um projecto claramente de direita ou de centro-direita,
protagonizado pelos principais ou mais influentes intelectuais da direita possível da altura, que davam a
cara em outdoors, possuir uma rubrica
em que apareciam eventos sociais das classes altas era uma novidade cujo efeito
não quero sobrevalorizar, mas que merece ser realçado. É que o habitus, para usar um conhecido conceito
que Bourdieu desenvolveu em várias obras, como La Distinction (1979), havia sido bruscamente interrompido quando
as elites do salazarismo e do marcelismo debandaram para o Brasil ou para
Espanha. Numa altura em que a estrutura de classes se reconfigurava e
necessitava de alguma pavimentação simbólica, havia que renovar a exposição dos
mecanismos de desigualdade social, expondo o «sistema de disposições reguladas»
que fundam o habitus. Ora, a «Meia
Desfeita» e a Olá! serviram esse
propósito na perfeição e o seu sucesso mostrou que, para além da exposição
pública da desigualdade, por parte dos emissores da mensagem, existia, por
parte dos receptores ou destinatários da mesma, um «público» que aceitava a
existência dessa estrutura de classes, que convivia bem com ela e que pretendia
observar e acompanhar os movimentos dos seus protagonistas. A criação de uma «esfera social», de que o Semanário fazia eco, era indício da
recomposição da estrutura de classes no início da década de oitenta, feita
naturalmente à base de uma mescla, nem sempre fácil, entre velhas e novas
elites, que convergiam em eventos e negócios mas raramente se cruzavam em
termos, por assim dizer, «endogâmicos» ou familiares.”[…]
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Jan.2014