sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

A cultura de direita em Portugal



 

“A direita portuguesa contemporânea: itinerários socioculturais  (1)
 
Em 1983 foi criado o jornal Semanário por Marcelo Rebelo de Sousa, Daniel Proença de Carvalho, José Miguel Júdice, João Lencastre, Vítor Cunha Rego, João Amaral, entre outros (2). Nos outdoors da campanha publicitária de lançamento surgiam, o que é significativo, os rostos dos fundadores desse jornal. Mais tarde, em 1988, O Independente usaria Winston Churchill nos seus outdoors promocionais, um outro sinal de que Portugal mudara – e muito – desde os tempos do PREC (3). O Semanário teria como repórter, que entrevistava em Paris figuras da «grande direita» europeia, sobretudo francesa (e não anglo-saxónica, note-se), um jovem chamado Paulo Sacadura Cabral Portas. Não era uma estreia: com uma notável precocidade, Paulo Portas já tinha trabalhado no jornal A Tarde, dirigido por Vítor Cunha Rego, ao lado de personalidades como Vasco Pulido Valente, António Barreto, Manuel de Lucena ou Francisco Saarsfield Cabral. Regressemos ao Semanário. Além da política, num tempo em que o jornalismo económico era muito incipiente – até por efeito colateral da incipiência da actividade privada nos sectores-chave da economia – o Semanário, a dada altura, a altura das privatizações e das Ofertas Públicas de Venda (OPV’s) (4), teria um papel importante na informação económica ou na orientação dos compradores de acções.

Mas, por muito descabido que pareça, o aspecto que aqui quero focar foi o surgimento, creio que logo no primeiro número do Semanário, de uma rubrica intitulada «Meia Desfeita», uma coluna social com fotografias, originalmente a preto e branco, de festas ou eventos mundanos em discotecas que renasciam das cinzas, como o Van Gogo, de Cascais, ou o Stone’s, de Lisboa, ou outras que viam a luz do dia – ou da noite… – nessa época, como o Banana Power, criado em 1981 por um conjunto de sócios liderados por Manecas Mocelek, boémio e empresário da vida nocturna que em 1975 partira para Angola e, depois, para o Brasil. Sendo uma discoteca  com restaurante e clube privado de acesso restrito, o Bananas, como era vulgarmente conhecido, com senhas de entrada a 150$00 para o comum dos mortais e cartão gold para os sócios, correspondia a um padrão cultural – e mental – que teria sido impensável no período revolucionário (5). A sua festa de inauguração foi, por assim dizer, o «Baile Patiño da democracia» ou o «25 de Novembro social» de certas elites e até de uma certa Weltanschauung, mais mundana e frívola. Assumir pública e abertamente, sem traumas nem complexos, a mundanidade e a frivolidade representava uma viragem muito sintomática relativamente aos tempos mais inflamados da revolução.



A par disso, a «Meia Desfeita» publicitava acontecimentos como corridas de touros ou raids hípicos, dando visibilidade a redes de sociabilidades desde sempre conotadas com a direita tradicionalista, marialva e ultramontana, ou aos exclusivos bailes de debutantes no Clube Portuense, estudados por Clara Maria Ferraz no âmbito de um trabalho académico sobre as estratégias endogâmicas das classes superiores (6). Para o público feminino, e não só, a rubrica «Meia Desfeita» era um dos principais atractivos do novo periódico, a ponto de, seguindo uma ideia de Marcelo Rebelo de Sousa, Vítor Cunha Rego e José Miguel Júdice, se ter transformado mais tarde numa revista autónoma, a cores, vendida com o próprio jornal, a Olá!, numa tentativa óbvia, porventura demasiado óbvia, de mimetização da sua congénere espanhola, a ¡Hola!. A dada altura, de algum declínio, muitas pessoas compravam o jornal por causa da revista Olá! e não o contrário. Na sua fase de agonia, que terminaria com o encerramento em 2009, o Semanário viria a ser comprado por uma personalidade hoje relativamente esquecida, Rui Teixeira Santos, um yuppie meteórico que também adquirira os armazéns Braz & Braz. 
 
 

Olá! Semanário

Poder-se-ia falar do papel que o Semanário, sobretudo a sua coluna «Mão Invisível», também teve – e lembremos que tudo isto coincide com o emergir do reaganismo e com o thatcherismo – na difusão do pensamento económico liberal ou neoliberal de uma geração que, de Jorge Braga de Macedo a Diogo Lucena, passando por António Borges ou pelos irmãos Pinto Barbosa, possuía ligações académicas aos Estados Unidos ou ao INSEAD de Fontainebleau e que começou um processo de internacionalização universitária «em rede» que era relativamente inédito na academia portuguesa. Quero concentrar-me no aspecto mundano do jornal e não o faço por um desejo de originalidade ou para fazer uma deambulação nostálgica por curiosidades esquecidas dos anos oitenta (7). Mas creio que, de facto, se não cairmos em exageros, a revista Olá!, pelo que significou historicamente, tem relevo cultural, sociológico e até ideológico.  Sempre existiram revistas sociais em Portugal e, desde 1976, Jacques Rodrigues publicava com grande êxito a Nova Gente. Simplesmente, a Nova Gente falava de actores da moda, muitos vindos do teatro de revista, de cantores populares e futebolistas, mas não tinha, creio que até deliberadamente, qualquer glamour. Na linha do que sempre seria a marca do Grupo Impala, era uma revista vocacionada para a classe média e para a classe média-baixa, de grande tiragem, tendo chegado aos 150.000 exemplares em finais dos anos oitenta.

No entanto, o facto de um jornal como o Semanário, que veiculava um projecto claramente de direita ou de centro-direita, protagonizado pelos principais ou mais influentes intelectuais da direita possível da altura, que davam a cara em outdoors, possuir uma rubrica em que apareciam eventos sociais das classes altas era uma novidade cujo efeito não quero sobrevalorizar, mas que merece ser realçado. É que o habitus, para usar um conhecido conceito que Bourdieu desenvolveu em várias obras, como La Distinction (1979), havia sido bruscamente interrompido quando as elites do salazarismo e do marcelismo debandaram para o Brasil ou para Espanha. Numa altura em que a estrutura de classes se reconfigurava e necessitava de alguma pavimentação simbólica, havia que renovar a exposição dos mecanismos de desigualdade social, expondo o «sistema de disposições reguladas» que fundam o habitus. Ora, a «Meia Desfeita» e a Olá! serviram esse propósito na perfeição e o seu sucesso mostrou que, para além da exposição pública da desigualdade, por parte dos emissores da mensagem, existia, por parte dos receptores ou destinatários da mesma, um «público» que aceitava a existência dessa estrutura de classes, que convivia bem com ela e que pretendia observar e acompanhar os movimentos dos seus protagonistas.  A criação de uma «esfera social», de que o Semanário fazia eco, era indício da recomposição da estrutura de classes no início da década de oitenta, feita naturalmente à base de uma mescla, nem sempre fácil, entre velhas e novas elites, que convergiam em eventos e negócios mas raramente se cruzavam em termos, por assim dizer, «endogâmicos» ou familiares.”[…]

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Jan.2014

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

As doces vinhas da ira


"As sondagens que têm vindo a público recentemente revelam uma das facetas mais insidiosas da tragédia que se abateu sobre a sociedade portuguesa: o aceitar-se a tragédia como uma fatalidade e o que ela comporta, como a nova normalidade que, aliás, com o tempo deixará de ser nova para ser apenas normalidade. É normal que a esmagadora maioria dos portugueses esteja a empobrecer, mesmo que simultaneamente um punhado de super-ricos nunca tenha enriquecido tanto. É normal que emigre toda uma geração altamente qualificada com o esforço de todos nós, mesmo que com isso se esfume a possibilidade de deixarmos de ser uma economia subdesenvolvida ao sabor das trocas desiguais com as mais desenvolvidas. É normal que os pensionistas pobres e remediados tenham de ser extraordinariamente solidários para com todos os portugueses, ainda que o mesmo não possa ser exigido aos mais altos rendimentos, boa parte deles protegidos em offshores, e muito menos aos bancos que, pelo contrário, exigem a nossa solidariedade para continuarem a ter lucros fabulosos. É normal que os casais mais jovens não possam dar-se ao luxo de ter um filho, ou mais de um filho, e que nem lhes passe pela cabeça ter um aumento de salário (no caso improvável de os dois estarem empregados). É normal que tudo isto aconteça normalmente, que o pessimismo seja igual ao otimismo, que tanto a satisfação como a insatisfação sejam médias, que não haja eleições antecipadas, que, quando formos a votos, ganhe o PS apenas com maioria relativa e que, nesse caso, seja tão provável quanto improvável que o PS faça uma coligação com o partido que tem presidido à administração da tragédia.

O limite das sondagens é que não se podem sondar a si mesmas, ou seja, nada nos podem dizer sobre o que está a montante ou a jusante delas. Saber isso é crucial e, apesar de insondável, é quase óbvio. Senão vejamos. A montante das sondagens está a destruição da alternativa ao atual estado de coisas. Trata-se de uma ideologia que foi meticulosamente construída ao longo dos últimos trinta anos pelo pensamento neoliberal que avassalou as universidades, sobretudo os departamentos de economia, e o comentário político dos grandes meios de comunicação social. Não apenas cá mas em toda a Europa e América do Norte. Como qualquer ideologia, é um conjunto de ideias em que são levados a acreditar os sectores da população mais prejudicados e punidos por elas. Por exemplo, a crítica do Estado social passa a ser convincente, mesmo para aqueles sectores da população que mais dependem dele, os trabalhadores e as classes médias. A ideia de que os portugueses têm vivido acima das suas posses passa a ser verosímil, mesmo para os portugueses em risco iminente de pobreza. Passa despercebido que este argumento preside a toda a gestão do atual governo e muito para além do que se diz. Dois exemplos. Tivemos um bom sistema de educação pública e isso prova-se com os resultados dos nossos jovens no ranking dos estudos da OCDE sobre excelência escolar. Pois bem, tais resultados mostram que temos um nível de educação acima das nossas posses e, por isso, objetivamente, a política do atual Ministério da Educação visa baixar o nosso ranking, e é isso que muito provavelmente vai acontecer. Por sua vez, o Sistema Nacional de Saúde permitiu-nos atingir níveis de saúde coletiva, de esperança de vida e de prevenção de doenças evitáveis internacionalmente invejáveis. Isto significa que temos níveis de saúde acima das nossas posses. Objetivamente, a atual política do Ministério da Saúde visa baixar esses níveis, e é isso que muito provavelmente vai acontecer. A névoa da ideologia não permite ao cidadão comum fazer estas ligações e, se as fizer, não permite que as conceba como um crime cometido contra ele e ela e seus filhos.

A jusante das sondagens está a alternativa da destruição. A normalidade, por mais anormal ou dolorosa, é o que é, uma fatalidade. Quem a recusa é irracional e autodestrói-se. Pode revoltar-se, mas corre o risco de ir para prisão, o que implica um custo para o Estado enquanto as prisões não forem privatizadas. Pode pedir ajuda médica, mas tende a ficar dependente de antidepressivos e a sua irracionalidade obriga o Estado a responder racionalmente, deixando de comparticipar o custo dos remédios. Pode suicidar-se, mas com isso perde a vida, um dano irreparável que, quando muito, trará uma poupança mínima ao Estado. O círculo infernal da destruição da alternativa e da alternativa da destruição tem uma saída? Tem, mas essa não se pergunta aos indivíduos em sondagens porque não reside em respostas individuais."

Boaventura Sousa Santos, Canal CES
09.01.2014

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

O novo "sistema mundo"





“Passados dez anos desde sobre os atentados de 11 de Setembro, e três anos sobre a falência do banco Lehman Brothers, quais são as características do novo «sistema mundo»? Os terramotos são hoje a regra. Terramotos climáticos, terramotos financeiros e bolsistas, terramotos energéticos e alimentares, terramotos comunicacionais e tecnológicos, terramotos sociais, terramotos políticos como os que causam as insurreições da «Primavera árabe»…

Há uma falta geral de visibilidade. Irrompem com toda a força acontecimentos imprevistos, sem que ninguém, ou quase ninguém, os veja chegar. Se governar é prever, então estamos a viver uma clara crise da boa governação. Os dirigentes actuais não conseguem prever nada. A política revela-se impotente. O Estado que protegia os cidadãos deixou de existir. Há uma crise da democracia representativa: «Não nos representam», dizem com razão os «indignados». As pessoas constatam o colapso da autoridade política e reclamam que esta volte a assumir o papel condutor da sociedade, por ser a única que dispõe de legitimidade democrática. Insiste-se na necessidade de o poder político por fim ao poder económico e financeiro. Constata-se também a falta de liderança política à escala internacional. Os líderes actuais não estão à altura dos desafios.

Os países ricos (América do Norte, Europa e Japão) são atingidos pelo maior terramoto económico-financeiro desde a crise de 1929. Pela primeira vez, a União Europeia vê ser ameaçada a sua coesão, a sua existência. O perigo de uma grande recessão económica debilita a liderança internacional da América do Norte, ameaçada além disso pelo surgimento de novos pólos de poder à escala internacional (China, Índia, Brasil).

Num discurso recente, o presidente dos Estados Unidos anunciou que dava por terminadas «as guerras do 11 de Setembro» − ou seja, as do Iraque, do Afeganistão e contra o «terrorismo internacional» − que marcaram esta década em termos militares. Barack Obama recordou que «durante os últimos dez anos, cinco milhões de americanos envergaram o uniforme». Apesar disso, não é evidente que Washington tenha saído destes conflitos como vencedor. As «guerras do 11 de Setembro» custaram ao orçamento norte-americano entre mil milhões e 2,5 mil milhões de dólares. Um encargo financeiro astronómico que teve repercussões no endividamento dos Estados Unidos e, em consequência, na degradação da situação económica do país.

Estas guerras revelaram-se pírricas. Em certa medida, vendo bem, a Al-Qaeda lidou com Washington como Reagan lidou com Moscovo quando, na década de 1980, impôs à URSS uma extenuante corrida ao armamento que acabou por esgotar o império soviético e provocou a sua implosão. Começou a «desqualificação estratégica» dos Estados Unidos. Ao nível da diplomacia internacional, a década confirmou a emergência de novos actores e de novos pólos de poder, sobretudo na Ásia e na América Latina. O mundo está a «desocidentalizar-se» e é cada vez mais multipolar. Destaca-se o papel da China que surge, em princípio, como a grande potência por volta do início do século XXI. Ainda que a estabilidade do Império do Meio não esteja garantida, uma vez que coexistem no seu interior o capitalismo mais selvagem e o comunismo mais autoritário. Mais cedo ou mais tarde, a tensão entre estas duas forças vai causar uma fractura. Mas por agora, enquanto o poder dos Estados Unidos vai decaindo, confirma-se a ascensão da China. Ela é a segunda potência económica mundial, à frente do Japão e da Alemanha. Além de que Pequim tem nas mãos o destino do dólar, por deter uma parte importante da dívida dos Estados Unidos…

O grupo de Estados gigantes reunidos no BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) já não obedece automaticamente às ordens das grandes potências tradicionais ocidentais (Estados Unidos, Reino Unido, França), ainda que estas continuem a designar-se a si mesmas como «comunidade internacional». Os BRICS mostraram isso mesmo recentemente na crise da Líbia e da Síria, opondo-se às decisões tomadas pelas potências da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e dentro da Organização das Nações Unidas (ONU). Dizemos que há uma crise quando, num qualquer sector, um mecanismo deixa de repente de funcionar, começa a ceder e acaba por se romper. Essa ruptura impede que toda a maquinaria continue a funcionar. É o que está a acontecer na economia desde que estalou a crise do subprime em 2007.

As repercussões sociais do cataclismo económico são de uma brutalidade inédita: 23 milhões de desempregados na União Europeia e mais de 80 milhões de pobres… Os jovens são as principais vítimas. É por isso que, de Madrid a Telavive, passando por Santiago do Chile, Atenas e Londres, uma onda de indignação está a levantar a juventude pelo mundo fora. Mas as classes médias também estão assustadas, porque o modelo neoliberal de crescimento está a abandoná-las à beira do caminho. Em Israel, uma parte destas classes médias uniu-se aos jovens para recusar o fundamentalismo ultraliberal do governo de Benjamin Netanyahu.

O poder financeiro (os «mercados») impôs-se ao poder político e isso desconcerta os cidadãos. A democracia não funciona. Ninguém entende a inércia dos governos perante a crise económica. As pessoas exigem que a política assuma a sua função e intervenha para corrigir os danos causados. Não é fácil: hoje a economia tem a velocidade de um relâmpago, enquanto a política tem a velocidade de um caracol. É cada vez mais difícil conciliar tempo económico e tempo financeiro. E também crise global e governos nacionais.

Os mercados financeiros sobrerreagem perante qualquer informação, ao passo que os organismos financeiros globais (FMI, OMC, Banco Mundial, etc.) são incapazes de determinar o que vai acontecer. Tudo isto provoca nos cidadãos frustração e angústia. A crise global cria perdedores e vencedores. Os vencedores estão, no essencial, na Ásia e nos países emergentes, onde não há uma perspectiva tão pessimista da situação como na Europa. Também há muitos vencedores dentro dos próprios países ocidentais cujas sociedades foram fracturadas pelas desigualdades entre ricos cada vez mais ricos e pobres cada vez mais pobres.

Na realidade, não estamos a sofrer uma crise, mas um feixe de crises, uma soma de crises tão intimamente misturadas umas com as outras que não conseguimos distinguir entre causas e efeitos. Porque os efeitos de umas são as causas de outras, até se formar um verdadeiro sistema. Ou seja, estamos a enfrentar uma crise sistémica do mundo ocidental que afecta a tecnologia, a economia, o comércio, a política, a democracia, a guerra, a geopolítica, o clima, o ambiente, a cultura, os valores, a família, a educação, a juventude, etc.

Estamos a viver um tempo de «rupturas estratégicas» cujo significado não compreendemos. A Internet é hoje o vector da maior parte das mudanças. Quase todas as crises recentes têm alguma relação com as novas tecnologias da comunicação e da informação. Os mercados financeiros, por exemplo, não seriam tão poderosos se as ordens de compra e venda não circulassem à velocidade da luz pelas auto-estradas da comunicação que a Internet pôs à sua disposição. Mais do que uma tecnologia, a Internet é, portanto, um actor da crise. Basta recordar o papel da WikiLeaks, do Facebook ou do Twitter nas recentes revoluções no mundo árabe.

Do ponto de vista antropológico, estas crises estão a traduzir-se num aumento do medo e do ressentimento. As pessoas vivem num estado de ansiedade e de incerteza. Regressam os grandes pânicos face a ameaças indeterminadas como a perda do emprego, os choques tecnológicos, as biotecnologias, as catástrofes naturais ou a insegurança generalizada. Tudo isto constitui um desafio para as democracias. Porque este terror transforma-se, por vezes, em ódio e em repúdio. Em vários países europeus, esse ódio dirige-se actualmente contra o estrangeiro, o imigrante, o diferente. A rejeição de todos os «outros» (muçulmanos, ciganos, subsarianos, «sem papéis», etc.) está a aumentar e os partidos xenófobos estão a crescer. Uma outra grave preocupação planetária é a crise climática. Expandiu-se a consciência do perigo que o aquecimento geral representa. Os problemas ligados ao ambiente estão a tornar-se altamente estratégicos. A próxima cimeira mundial do clima, que terá lugar no Rio de Janeiro em 2012, vai constatar que o número de grandes catástrofes naturais aumentou, o mesmo tendo acontecido ao seu carácter espectacular. O recente acidente nuclear de Fukushima aterrorizou o mundo. Vários governos fizeram já marcha-atrás em matéria de energia nuclear e apostam agora − num contexto marcado pelo fim próximo do petróleo − nas energias renováveis.

O rumo da globalização parece estar suspenso. Fala-se cada vez mais de desglobalização, de decrescimento… O pêndulo foi longe demais no sentido neoliberal e pode agora deslocar-se em sentido contrário. Já não é tabu falar de proteccionismo para limitar os excessos do «comércio livre» e acabar com as deslocalizações e com a desindrustrialização dos Estados desenvolvidos. Chegou a hora de reinventar a política e reencantar o mundo.”

IGNACIO RAMONET, LeMonde Diplomatique
Out. 2011

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Juventude e rebeliões sociais: um breve balanço


"Ao longo dos últimos cinquenta anos o mundo assistiu a múltiplas revoltas dinamizadas pela juventude, cujo momento paradigmático terá sido o maio de 1968 em França. Cinquenta anos após a agitação política e sociocultural da geração dos sixties, fará sentido olhar as mais recentes rebeliões sociais traçando um paralelismo com esse período? O local e o global, o pragmatismo e a utopia, o realismo e o sonho, o individual e o coletivo caminharam juntos no meio de multidões de jovens, ocupando universidades, fugindo da repressão policial e emprestando à ruas e praças um tom simultaneamente dramático e festivo. Da defesa do ambiente à libertação da mulher, da luta pelo desarmamento à critica da burocracia e dos valores tradicionais, nas universidades de Paris foi a chamada crítica estética e pós-materialista (da luta estudantil e sociocultural) a demarcar-se e a sobrepor-se à crítica social e economicista (do velho operariado, como mostrou o estudo de Boltanski e Chiapello, O Novo Espírito do Capitalismo, 2001), pelo menos no que essas experiências prouxeram de novidade. O 25 de Abril de 1974 em Portugal foi, talvez, a expressão tardia e condensada desses dois tipos de movimentos, onde as dinâmicas de base abraçaram o mesmo desígnio dos atores políticos tradicionais – a “sociedade socialista”. Pode dizer-se que os protestos das décadas de 1960-1970 geraram um efeito de halo, que penetrou os interstícios da democracia representativa e dos valores convencionais, mas que se foi esbatendo ao longo do tempo.

Porém, a nova onda de protestos de finais do século XX recuperou parte das bandeiras daquela época na contestação ao paradigma económico neoliberal e ao novo poder unipolar, após a implosão do modelo soviético. Do massacre de Tiananmen às mobilizações do Leste europeu com a queda do muro de Berlim, dos protestos de Seatle ao movimento zapatista (Chiapas), os encontros do Fórum Social Mundial, o movimento MayDay na Europa, etc., representaram uma viragem no modo como as sociedades e a juventude rebelde pretendiam intervir na esfera pública. Se nos anos sessenta os novos meios de comunicação de massas foram, pela primeira vez, usados estrategicamente pelos ativistas estudantis de então, nos finais dos anos noventa chegava a hora das novas redes sociais e da Internet. Esses meios tornaram-se o principal meio de difusão e de mobilização do chamado ciberativismo global. Apesar dos traços em comum com a anterior geração, as manifestações da viragem do milénio veicularam ainda valores e causas simultaneamente “materiais” (direitos humanos, luta contra as propinas, desigualdades económicas, fome e a doença) e “pós-materiais” (minorias étnicas, religiosas, direitos LGBTs, feminismo e descriminalização do aborto, defesa do ambiente e dos povos indígenas, etc.).


Mais recentemente, com o último ciclo de lutas sociais desde o iníco da crise (Grécia 2008, Primavera Árabe, Europa do Sul/ Indignados, Geração à Rasca, Occupy Wall Street, Que se Lixe a Troika, Chile, Brasil), a juventude escolarizada continuou a animar os “núcleos duros” das mobilizações e a encher as praças da indignação, mas o grosso dos protestos voltou a colocar no centro a questão social e sociolaboral. Em especial na Europa do Sul, o aumento exponencial do volume de estudantes do ensino superior esbarrou no bloqueio das oportunidades. Em vez do cidadão europeu e cosmopolita prometido pelo projeto da UE, a ambicionada “carreira” profissional não foi além de trabalho precário e salário miserável (e desemprego). Mesmo os que foram educados na ideologia do empreendedorismo tecnocrático perderam a esperança numa solução individual e deixaram-se guiar pelo clima de indignação, em alguns casos descontrolado. Nas jornadas de junho, no Brasil, os jovens abandonaram por um momento o habitual individualismo e enfrentaram com coragem a violência policial. Viveram-se fragmentos de intensa comunhão e filiação coletiva, que tiveram um impacto inesperado e resultados visíveis no espaço público.


A última onda de convulsões sociais mostra que as “causas próximas” são em geral muito díspares e difusas, mas os efeitos transcendem as intenções. Na Europa do Sul ou no Brasil os manifestantes não tinham propriamente um programa político, e talvez muitos nem soubessem ao que iam, mas não deixaram de gritar contra a austeridade e reclamar o direito ao futuro. Se na Europa foi a luta pelo emprego e a precariedade, no Brasil, lutou-se por mais democracia, transportes urbanos de qualidade e o fim da corrupção. Em ambos os casos esteve em causa a defesa de um Estado social que funcione, que combata as desigualdades e promova a educação e a saúde pública.


As recentes rebeliões parecem exprimir uma luta de classes sem vanguardas. Na Europa é a revolta da “classe média” proletarizada e à beira da miséria. No Brasil os protestos de junho mostraram uma sociedade que não se satisfaz com um emprego de serviços mínimos (ainda que com estatuto “formal”) e um consumismo fictício, antes se revolta contra a opulência de investimentos faraónicos (os estádios da Copa 2014), exigindo uma saúde e educação “padrão FIFA” e transportes de qualidade. Em comum permanece a rejeição da política institucional, o uso das redes sociais e a desconfiança das instituições. Esta vertigem de mobilizações juvenis não corresponde a uma “tomada de consciência” no sentido clássico, antes reflete uma busca de protagonismo que mistura o individual e o coletivo, onde a esfera pública (virtual) das redes sociais se confunde com o “aqui estou eu” (da foto no Facebook), mas mostra ao mesmo tempo que o “eu somos nós”. E independentemente das intenções, esse nós pode ter muita força."


Elísio Estanque, Canal CES
Dez. 2013