domingo, 24 de fevereiro de 2013

A DESCONTINUIDADE ENTRE A ESCRITA E A ORALIDADE NA APRENDIZAGEM(II)



 
 Raul Iturra

2. TÉCNICAS DO PROCESSO EDUCATIVO

a) O Problema

O não relacionamento entre as técnicas da oralidade e da escrita é o que acarreta uma descontinuidade no processo de aprendizagem, já que se referem a assuntos diferentes quanto à substituição na continuidade histórica de um grupo social. Isto porque cada uma destas técnicas é resultado de sistematizar o real de forma diversa. Não é a técnica de ler e escrever de uma parte, e memorizar por outra, o que cria em si a dificuldade. É o conteúdo do que elas transmitem e o treino a que cada uma submete a mente, o que origina a descontinuidade, quando ambas as técnicas coexistem. Talvez seja necessário exprimir que a descontinuidade está nos campos a que cada uma delas tem sido referida, no que diz respeito a saber e teoria; e a complexificação ou simplificação que cada uma delas comporta. À aprendizagem pela memória não escrita ficam sujeitas as relações que as pessoas actualmente praticam, enquanto que à memória escrita ficam adscritas as abstracções universais das mesmas, no que diz respeito à conduta social. É a mesma diferença que existe entre a legislação canónica ou positiva a respeito da formação da família e circulação dos bens, e a apreciação das possibilidades específicas que têm determinadas pessoas para ter filhos, entender o trabalho, amar, ser sujeito de paz, aceitar que o conflito existe mas é possível geri-lo, e outros exemplos, mas, com a passagem do tempo uma outra diferença de conteúdo se tem introduzido entre as duas técnicas de aprender: é verdade que a escrita despersonaliza e universaliza, mas o mito também; é verdade que a oralidade de debruça sobre as qualidades específicas das pessoas e particulariza os fenómenos, mas também a teoria geral da lembrança pela palavra que explica os textos divinos. Há, ou tem havido, uma relação entre o facto de escrita e oralidade circularem o saber por meio dos atributos da divindade, e a ideia do bem e do mal. O que tem acontecido, contudo, é o processo de aprender ter passado a ser um exercício da razão que se debruça sobre os fenómenos e as suas características, e os anota para voltar a eles, e esse processo tem passado a ser dominante e associado aos textos. Quando criação divina do mundo, palavra que sistematizava as suas características e texto que as lembrava coincidiam, o saber era letrado ou hierárquico. Quando se cria a figura de cidadão, o crer separa-se da razão, numa teoria da igualdade entre todos os seres humanos que, desde que tenham uma vontade livre, podem concorrer entre eles…

b) Escrita, valor e razão

A técnica de ler aprende-se em textos que formem o cidadão. A de escrever cuida de que o cidadão mantenha o exercício de abstrair as qualidades das coisas. Mas aquelas qualidades dão às coisas um valor transaccional medido em dinheiro e, eventualmente, acumulável em lucro. A medida do uso de todo o saber é a sua utilidade, e a sua utilidade mede-se pela sua capacidade de ser comprado e vendido, compra e venda que se rege por um preço que segue a sorte do salário, e o salário o da procura e oferta; os quais têm todos que ver com o tempo que um indivíduo gasta a produzir um bem. Já se sabe, para mais tempo na produção de bens socialmente aceites e procurados, maior salário, preço mais alto, menor venda. A lei do valor tem passado a ser um critério de medida das relações entre os homens que se substituem uns aos outros anonimamente. A lei do valor é um derivado de um desenvolvimento de uma teoria, a económica, que se debruça acerca das qualidades das coisas a que ficam as pessoas sujeitas e dependentes. O critério derivado é o da utilidade o qual define o valor do que se possa vir a teorizar, entender, explicar ou transmitir na aprendizagem.
Este critério de utilidade pede o desenvolvimento de um ser humano cujas habilidades para abstrair sejam treinadas, desenvolvidas, salientadas, especialmente na época em que, é dito, a maquinaria substitui a força. Já estava o campo preparado nessa distinção entre corpo e alma que a maior parte das culturas têm, como para que não fosse lógico chegar a querer aperfeiçoar a capacidade intelectual do cidadão. Isto reflecte-se no conteúdo do que se ensina na técnica de ler e escrever: os signos com que as ideias se argumentam têm uma ordem, a gramática, que é diferente da usada na linguagem quotidiana. Isto porque se tem descoberto que o argumento que explica é o formal, que se exprime por uma ordem convencional de sujeito, verbo, predicado e complemento, que permite a uniformização do discurso entre pessoas que têm uma mesma identidade, têm a mesma capacidade de racionalizar, o mesmo acesso aos bens, o mesmo instrumento contrato para fixar os termos úteis das suas relações. A razão precisa de uma igualdade entre iguais que a gramática torna possível, numa cultura onde as coisas são também rentabilizadas pela aritmética que prepara para desenvolver o valor marginal. A escrita resulta do ordenamento social imposto pela economia que é descontínua com a experiência histórica dos seres humanos que abstraem pela virtude individual.[…]

 (continua)
(do Aventar)

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

A DESCONTINUIDADE ENTRE A ESCRITA E A ORALIDADE NA APRENDIZAGEM (I)



 
Raúl Iturra

1. O OBJECTO DO PROCESSO EDUCATIVO

a) O Problema

Dizia já Durkheim (1922) que educar envolvia uma geração de adultos que sabe, outra de jovens que aprende e um processo entre eles. É este processo que é problemático: os conteúdos e as formas em que acontece definem-se conforme conjunturas que dão os limites do que se ensina e como se ensina. As variadas formas de ensinar que acontecem de cultura para cultura., bem corno dentro de uma sociedade em épocas históricas diferentes, são urna prova da proposta anterior. Mas, talvez, o que é variável no processo educativo é o seu próprio objecto e o entendimento dele por parte de geração de adultos e da geração de jovens. Uma sociedade jamais é homogénea, embora o processo educativo tenha por objectivo homogeneizar em algumas delas; as sociedades, pode talvez dizer-se, pensam que numa altura da vida dos seus jovens podem pô-los todos no mesmo nível do saber, enquanto noutras especializam-nos segundo as funções que definem o sistema classificatório das pessoas. Ao mesmo tempo pode dizer-se que, se este fenómeno classificatório existe, há também conhecimentos diversificados que coexistem com ele nas sociedades hierárquicas, enquanto que as que conservam a sua memória histórica por meio de anotar pela escrita a sua experiência, acabam por ter épocas diversas cuja coexistência permite que as suas instituições ensinem conteúdos diversos. Á frase de Durkheim talvez se possa contrapor a conversa que tinha eu e um dos meus colaboradores com uma rapariga reputadamente má para a aprendizagem escolar, numa aldeia que estudo em Portugal. Fernanda – perguntámos – se a 5 retirarmos 3 quanto fica? A questão foi colocada em português de criança e local, pelo meu colaborador, mas mesmo assim não foi entendida.
Perguntei, em consequência “quantas enxadas tens em casa? Respondeu-me 7: a do pai já falecido, a da mãe, a dos dois irmãos e a dela, mais duas que o irmão tinha feito como brinquedos. Perguntei quantas enxadas ficavam se tirasse a do pai e a da mãe e disse-me rapidamente que 5: a do Manuel a da Rosa Branca, a dela e as duas de brinquedo. É como quando Jack Goody perguntava ao rapaz Lo Dagaba no Ghana: ‘Sabes contar?’ “Sei”; ‘Então conta’; ‘Beni, mas o quê’? Porque disso dependia a ordem que ia usar. O conjunto destes três factos, se considerarmos a frase de Durkheim como uma informação do que na sua sociedade se passa, permitem dizer que o objecto de educar é incorporar o indivíduo num saber pré-existente mas que, dadas as classificações das pessoas e a acumulação de experiência sistematizada, definem o objecto da aprendizagem como um processo em que os jovens são incorporados em saberes que os adultos decidem consoante a sua particular maneira de entender qual será a forma da continuação social do seu rebento. A maneira de entender está definida à partida pela prática das técnicas que a sociedade usa no seu processo de ensino. O problemático é conhecer os elementos deste processo entre gerações.

b) Iniciação ao saber estabelecido

É o que se entende por processo educativo. O problema fica na definição do que é o saber estabelecido porque ele é variável. No caso das culturas de sociedades onde a memória é guardada na lembrança das pessoas, nas relações entre elas, nas suas histórias e nos seus factos, a variabilidade do estabelecido acaba por ser menor já que a conservação do saber depende da exactidão com que se entende e reproduz o saber encarnado nas pessoas que o transportam: quanto melhor se decorar, mais perto da verdade das funções sociais de coisas e objectos se fica. É o que tem preocupado Raymond Firth (1929), Meyer Fortes (1970), Jack Goody (1968) e Katherine Firth (1968) na vida tribal. Mas, o mesmo acontece nas formas rurais e nas clânicas, estas últimas muito bem estudadas por Maurice Godelier (1982). Talvez seja necessário detalhar: o que se ensina é a compreensão do movimento, natureza e função das coisas e as formas destas se relacionarem com as pessoas. A escola Maori, que Firth refere, ensina que estas categorias de pessoas podem manipular e como por meio de aprender ouvindo as genealogias da tribo e os mitos que guardam a história, se definem qual de todos os grupos tem a obrigação e o direito de cultivar; é o lugar onde se ensinam as fórmulas com que se age sobre as coisas e as pessoas, acompanhada da prática de andar junto com os adultos do grupo repetindo o que eles fazem conforme o destino traçado previamente ao nascimento da criança que se educa. É na “Casa de Aprender” que os Maori entendem o conceito de ‘ser forte’; por exemplo, já que a fórmula diz “sejas forte para poderes agarrar a arma que bate (a outro em caso de conflito), o mais adiantado no confronto, o primeiro a deitar abaixo o inimigo… “, etc., a passagem por cada um dos conceitos coloca a ideia que é depois praticada na iniciação e cuidadosamente executada, segundo a experiência, no confronto real, onde o treino do membro individual do pelotão dará a capacidade que, avaliada e aferida, decide o lugar que ocupa na luta. Ou na pesca. Ou no jogo. Ou na colheita. Ou no bosque ou no mar. Da mesma forma que o acompanhamento dos pais a lugares públicos ensina a etiqueta com que se deve comportar, a compostura que deve guardar, as palavras que estão ou não permitidas dizer. O saber estabelecido corresponde ao entendimento da manipulação dos recursos com que um grupo é capaz de se reproduzir. Assim exprimido o problema fica em saber qual de todos os saberes existentes será entregue a quem e compreendido por quem: O entendimento do manejo dos recursos reprodutivos está associado à condição da pessoa que virá a ser treinada na aprendizagem -específica e os elementos para ensinar serão outorgados ou não conforme a função a que o indivíduo é destinado. É como o entendimento das possibilidades da magia TAPU reservada aos chefes, ou o das funções do dinheiro que no caso acidental fica com quem pratica o trabalho individual e conduz o mercado. O problema fica, em consequência, com a possibilidade de ter acesso ao saber que reproduz entrega a compreensão do factor central do processo. A iniciação é, em consequência, heterogénea e desigual no conjunto das sociedades, incluindo a ocidental.(…)

(continua)
(do Aventar)

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Hegemonia Lingüística e Imperialismo Cultural (III)


Nildo Viana

Com o processo de desenvolvimento capitalista e a expansão dos meios oligopolistas de comunicação, temos uma nova disputa lingüística internacional, agora entre os idiomas dominantes. Cada país colonizador impôs seu idioma aos países colonizados e isto foi mantido mesmo após a chamada “descolonização”. Assim, as colônias francesas reproduziam a língua francesa, as colônias portuguesas a língua portuguesa, e assim por diante. Isto produziu uma competição interimperialista no nível lingüístico, embora de forma amena e nem sempre com tanta ferocidade como ocorria nas outras esferas. As potências colonizadoras de capitalismo mais frágil, como foi o caso de Portugal, conseguiu implantar a língua portuguesa em várias colônias (Brasil, Angola, Moçambique, Cabo Verde, etc.), mas a influência mundial desta língua nunca foi grande, não ultrapassando as fronteiras dos países que a tornaram sua língua oficial.

A hegemonia lingüística mundial passou do francês para a língua inglesa. O desenvolvimento capitalista a partir do século 18 marca a hegemonia do inglês, pois a Inglaterra foi durante muito tempo a grande potência capitalista mundial e foi substituída por sua ex-colônia, os Estados Unidos, também de língua inglesa. Os mais fortes concorrentes lingüísticos (francês, russo, etc.) não conseguiram suplantar tal hegemonia. Na atualidade, com o neoimperialismo e o processo de ampliação da dominação norte-americana no mundo, ela fica ainda mais forte. Esta é uma outra face da dominação lingüística internacional, que marca a relação entre linguagem, poder e relações internacionais. Assim, junto com a dominação imperialista temos a dominação lingüística, pois no capitalismo subordinado se aprende inglês nas escolas, mas nos EUA e Inglaterra não se aprende espanhol, português, etc., no sistema escolar.

O imperialismo cultural é parte componente do processo de exploração internacional, tanto do ponto de vista mercantil quanto do ponto de vista exclusivamente cultural. A dominação cultural cria mercadorias culturais (filmes, livros, obras de arte, músicas, etc.) que são vendidas e reproduzem o processo de transferência de mais-valor dos países capitalistas subordinados para os países imperialistas, principalmente os Estados Unidos. A produção cultural, artística e científica é concentrada nos países imperialistas e devido ao processo de colonização cultural, a autonomia intelectual, artística, é restrita nos países de capitalismo subordinado, ficando restrita às fronteiras nacionais, com poucas exceções. Os modismos da indústria cultural invadem o capitalismo subordinado e faz fortunas (e isto vale até mesmo para a produção científica, principalmente – mas não unicamente – na área de ciências humanas). O lucro é certo, bem como o seu possuidor, as empresas oligopolistas transnacionais. Mas também a supremacia cultural é certa, e assim temos a reprodução de valores, idéias, do capitalismo imperialista, o que reforça sua dominação, pois passa a ser introjetada e reproduzida pelos dominados.

No plano lingüístico, isto se reproduz de forma ampliada. Além do sistema escolar reproduzir a hegemonia lingüística mundial, temos também os meios oligopolistas de comunicação e toda a produção de mercadorias culturais que chegam aos países subordinados com a língua hegemônica, made in USA. Daí as expressões lingüísticas inglesas se tornarem objetos de reprodução em gírias, brincadeiras, mesclas, e assim se cria mais uma fonte de reprodução da hegemonia lingüística inglesa. Além disso, se os “grandes” cientistas, artistas, intelectuais em geral, escrevem em inglês (ou, em menor grau, francês, italiano, alemão, espanhol) então o domínio destas línguas se torna uma “necessidade”. O ensino obrigatório da língua inglesa nas escolas brasileiras é apenas a face popular e introdutória de todo este processo. Assim, nas publicações científicas brasileiras, as revistas acadêmicas, há, geralmente, a exigência do resumo em português e do abstract em inglês; nos processos de seleção para mestrado e doutorado temos novamente a exigência de domínio desta língua e no último caso de uma outra (geralmente se coloca como opção o alemão, o francês e o italiano e, em casos mais raros, a língua mais próxima, o espanhol, desvalorizada por razões óbvias: está abaixo na hierarquia mundial...). Isto tudo quer dizer que a colonização cultural é mais intensiva nos meios intelectualizados, bem como a hegemonia lingüística. Na atualidade é reconhecida a hegemonia lingüística inglesa, bem como seus efeitos:

“O imperialismo do inglês é um seguro meio de poder em vários níveis. Há muito tempo as multinacionais vêm privilegiando o inglês em suas relações com as sucursais e entre elas. É sem dúvida uma necessidade, mas também um meio de fazer passar, dessa maneira, todo um conjunto de informações que modelam, que estruturam os espíritos e as coletividades. O imperialismo da cultura anglo-saxônica é, antes de tudo, um imperialismo da língua inglesa, como foi o caso do francês” (Raffestin, 1993, p. 117).

Todo este processo encontra algumas resistências, tal como colocaremos a partir de agora. Assim, surgem propostas de adoção de uma nova língua que não seja o inglês, algo que não passa de fantasia, pois qualquer outra língua representará outro país e apenas se reforçará um país imperialista em detrimento de outro, o que só seria possível, também, com a mudança nas relações concretas na esfera da produção e reprodução do capital. A recuperação de línguas nativas também não teria sentido, pois seria o mesmo que defender, como Policarpo Quaresma, personagem de Lima Barreto (1988), a volta do uso do tupi-guarani. No entanto, estas propostas parecem esquecer a existência de uma possibilidade alternativa já desde o início do século 20, da qual trataremos a seguir.[…]

do Informe e Crítica, de Nildo Viana

Fim

Referências Bibliográficas

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BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 5ª edição, São Paulo, Hucitec, 1990.
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CALVET, Louis-Jean. Sociolingüística. Uma Introdução Crítica. São Paulo, Parábola, 2002.
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DACANAL, J. H. Linguagem, Poder e Ensino da Língua. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1985.
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FROMM, Erich. Meu Encontro com Marx e Freud. 2a edição, Rio de Janeiro, Zahar, 1979.
FROMM, Erich. Ter ou Ser? 4ª edição, Rio de Janeiro, Guanabara, 1987.
LIMA BARRETO, A. H. O Triste Fim de Policarpo Quaresma. São Paulo, Ática, 1991.
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MARTINET, André. Elementos de Lingüística Geral. 6ª edição, São Paulo, Martins Fontes, 1975.
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RAFFESTIN, Claude. Por uma Geografia do Poder. São Paulo, Ática, 1993.
SANTIAGO, Isabel. O que é Esperanto. São Paulo, Brasiliense, 1986.
TERWILLIGER, Robert. Psicologia da Linguagem. São Paulo, Cultrix, 1974.
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ZAMENHOF, L. L. Essência e Futuro da Idéia de uma Língua Internacional. Goiânia, Zamenhof Editores, 1988.

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Linguagem, Poder e Relações Internacionais(II)


Nildo Viana

Os colonizadores não conhecem o idioma do colonizado e por isso impõem o seu aos interlocutores locais. A administração local utiliza o idioma do colonizador, bem como as instituições implantadas (tribunais, escolas, etc.). A possibilidade de acesso a tais instituições também se faz via idioma dominante. Segundo Calvet, “no plano lingüístico, o colonialismo institui pois um campo de exclusão de duplo gatilho: exclusão duma língua (a língua dominada) das esferas do poder, exclusão dos falantes desta língua (dos que não aprenderam a língua dominante) dessas mesmas esferas” (2004, p. 04). Os colonizadores promovem um processo de seleção lingüística através de decretos, ações políticas, sistema escolar. Este é o primeiro estágio do que Calvet denomina glotofagia. No entanto, este processo de destruição de línguas (idiomas) acompanha um fenômeno mais amplo que é o etnocídio, isto é, a destruição de toda uma etnia, tal como alguns antropólogos denominaram (Auzias, 1978). Assim, consideramos que o etnocídio é um conceito mais amplo, que engloba a “glotofagia” e permite compreender que este processo de destruição de línguas não ocorre apenas na esfera lingüística mas em todas as esferas, pois o idioma nativo está ligado às relações sociais (tribais ou quaisquer outras) e uma vez estas relações desaparecendo ou sendo paulatinamente englobadas por outras, acabam tendo dificuldade em servir de meio de comunicação e por isso a resistência lingüística é uma empreitada com poucas chances de sucesso.

Assim, o primeiro estágio da glotofagia se caracteriza pelo fato da classe dominante local, aliada e subordinada à classe dominante do país colonizador, passa a utilizar o idioma do colonizador juntamente com o nativo, enquanto que a população em geral continua falando apenas o idioma nativo. Há, no primeiro caso, um bilingüismo e, no segundo, um monolingüismo. No segundo estágio há um avanço da glotofagia, no qual a população urbana acaba sendo englobada pelo bilingüismo, abandonando o monolingüismo do idioma nativo, restando apenas a população rural como praticante deste. A classe dominante local abandona o idioma nativo (indo do bilingüismo ao monolingüismo, adotando exclusivamente o idioma dominante) e a população urbana passa do monolingüismo nativo para o bilingüismo (englobando o idioma dominante) e a população rural continua no monolingüismo (restrito ao idioma nativo). Isto é produto do avanço do capitalismo que, com sua expansão e instauração de relações de produção capitalistas nas cidades, constrange a população urbana (determinadas classes sociais, além da dominante e as suas classes auxiliares, incluindo o proletariado nascente, etc.) a adquirir o idioma dominante .

A próxima fronteira a ser rompida pela expansão capitalista é o campo, o último reduto do monolingüismo nativo. A dinâmica capitalista não demora muito a romper esta fronteira, pois a subordinação das relações de produção não-capitalistas (camponesas) ao capitalismo, bem como implantação de relações de produção capitalistas, provoca a morte final do monolingüismo e a efetivação da glotofagia. As relações de produção capitalistas invadem o campo ou o subordinam, fazem da população rural dependente e subordinada à cidade, onde se encontra as relações de produção capitalistas, as indústrias, o centro administrativo, os meios oligopolistas de comunicação, as escolas. Como diz Calvet, o idioma dominante está ligado às formas mais “modernas” de produção enquanto que o idioma nativo está mais ligado às formas tradicionais. Neste último estágio, o idioma nativo é, segundo Calvet, definitivamente digerido pelo idioma dominante. Assim, Calvet expõe resumidamente o processo de glotofagia: “a língua dominante impõe-se segundo um esquema que passa pelas classes dirigentes, posteriormente pela população das cidades e, finalmente, pelo campo, e este processo apresenta-se acompanhado de bilingüismos sucessivos, ali onde a língua dominada resiste. Porém, a desaparição de uma língua (a glotofagia triunfante), ou o seu contrário, dependem de numerosos fatores não lingüísticos, em particular das possibilidades de resistência do povo que fala esta língua” (2004, p. 09).

O bilingüismo vai se desenvolvendo mas não harmonicamente, pois ele é, no caso dos países colonizados, marcado pela diglossia. O bilingüismo era considerado pelos lingüistas um fenômeno individual (um indivíduo que fala duas línguas) mas quando Ferguson elabora o conceito de diglossia ela ganha um caráter social. A diglossia ocorre quando duas formas lingüísticas (dois idiomas) coexistem numa mesma comunidade, caracterizando uma variedade alta e uma variedade baixa, sendo que a primeira manifesta a forma reproduzida nas instituições administrativas, escolares, intelectuais e a segunda na vida cotidiana (cf. Calvet, 2002; Martinet, 1975). Assim, o bilingüismo, neste caso, possui uma repartição social de usos e revela o predomínio idiomático do idioma dominante. Este é o primeiro passo para a implantação de um novo monolingüismo, agora fundado no idioma dominante e não mais no idioma nativo. Assim, o processo evolutivo da glotofagia ocorre da seguinte forma: monolingüismo do idioma nativo ? bilingüismo ? diglossia ? monolingüismo do idioma colonizador. O bilingüismo assume uma forte importância, nascendo na classe dominante local e se espalhando pelas classes exploradas e mudando para uma forma fundada na diglossia.

Estas relações são típicas das situações na qual existem os dominadores e os dominados e é por isso que Calvet cita casos de sociedades pré-capitalistas (o Império Romano e a expansão do Latim, a relação da Inglaterra e País de Gales, por exemplo) mas a situação é diferente com a emergência do capitalismo. Em primeiro lugar, as relações são mais complexas e isto pode ser exemplificado pela não existência de apenas um centro lingüístico e sim um centro hegemônico mundial com diversos concorrentes. Os países colonizadores nomeiam de forma pejorativa os colonizados (Calvet, 2004; Carboni e Maestri, 2003), devido às relações de poder instauradas, mas não o fazem com os países que não são seus subordinados. Calvet cita o exemplo da língua francesa que nomeia de forma pejorativa os países colonizados mas não os outros países colonizadores, e por isso as palavras que expressam estes países não são muito distantes dos termos originais: russe (ruski); anglais (english), italien (italiano). Espagnol (español). Em segundo lugar, este processo é irreversível devido a expansão capitalista e suas formas de realização: a glotofagia é um processo que acompanha o desenvolvimento capitalista e este possui um caráter universalista e expansionista realizado a partir dos Estados-Nações que se industrializaram pioneiramente, o que significa que o processo de colonização produziu um conjunto de idiomas que se tornaram mundialmente dominantes e se realizou – e continua realizando – a glotofagia de diversos idiomas. Isto vai gerar uma disputa mundial pela hegemonia lingüística a nível mundial entre os países imperialistas, o que será discutido mais adiante.

Este processo de mutação idiomática se relaciona com o processo de expansão capitalista e as mudanças nos regimes de acumulação. O colonialismo marca a primeira fase da glotofagia, no qual a administração colonial encontra aliados nativos que se tornam os reprodutores do idioma dominante. A passagem do colonialismo para o neocolonialismo expressa uma alteração nas relações entre colonizadores e colonizados, pois a limitação e posteriormente o fim da escravidão e entrada da Inglaterra na disputa colonial marca o processo de formação de mercado consumidor e força de trabalho no continente africano e outras regiões (incluindo o Brasil), o que amplia o processo de glotofagia, reforçando a população urbana contra a rural. A exportação de mercadorias assume papel fundamental neste período e isto influi nas relações internas nas colônias, que precisam fomentar seu mercado consumidor, o que significa uma expansão da urbanização e fim da escravidão no novo mundo. Com o imperialismo financeiro temos os investimentos massivos na infra-estrutura e expansão das relações de produção capitalistas e sua expansão nos países que já haviam iniciado anteriormente o seu processo de industrialização. Isso gera o capitalismo subordinado em alguns países, embora haja variações de acordo com cada país e também não significa que os modos de produção não-capitalistas tenham deixado de existir mas sim que se tornam subjugados às relações de produção capitalistas. A fase seguinte, do imperialismo oligopolista, já significa uma ampliação do capitalismo subordinado, invadindo as demais esferas da vida social e promovendo a abolição de relações de produção não-capitalistas. A produção no campo passa a ser dominada pela produção urbana, capitalista, instaurando o bilingüismo, em muitos casos fundado na diglossia. Este processo é mais rápido em alguns países, mais lento em outros, dependendo do conjunto das relações sociais concretas, mas expressando uma tendência geral e ligada ao processo de desenvolvimento capitalista. As línguas nativas que ainda resistem enfrentam hoje não somente uma intensificação da ação glotofágica expressa nas novas tecnologias de comunicação e na expansão da hegemonia norte-americana e, secundariamente, de outros países imperialistas.

Este processo, no entanto, ocorre de forma diferenciada em países diferentes. Além dos processos de resistência a glotofagia, que, ligados a diversas determinações (incluindo a religião), os países que tiveram um etnocídio que exterminou a maior parte da população nativa tiveram uma glotofagia mais rápida. No caso do Brasil, por exemplo, as línguas indígenas foram destruídas, em grande parte, com a destruição das sociedades indígenas. A população indígena acabou sendo isolada em algumas áreas e os contatos iam, paulatinamente, destruindo suas manifestações lingüísticas, bem como sua cultura como um todo. O idioma dominante no Brasil foi o português, pois a população indígena foi excluída do processo de organização do Estado-Nação neste país, embora algumas influências e manifestações lingüísticas tenham sobrevivido e incorporado ao “português brasileiro”, que engloba também as línguas africanas que vieram junto com a população negra escravizada. A glotofagia, no caso brasileiro, foi muito mais rápida e eficaz, bem como a instauração das relações de produção capitalistas no Brasil, em comparação com os países africanos. A resistência lingüística em muitos casos é frágil, em outros é simplesmente inexistente, em alguns é forte e consegue manter a língua nativa ou as suas manifestações diferenciadas, mas este último caso é mais raro e depende de uma série de determinações que dependem de cada caso concreto.[…]

(continua)