Raul Iturra
2. TÉCNICAS DO PROCESSO EDUCATIVO
a) O Problema
O não relacionamento entre as técnicas da
oralidade e da escrita é o que acarreta uma descontinuidade no processo de
aprendizagem, já que se referem a assuntos diferentes quanto à substituição na
continuidade histórica de um grupo social. Isto porque cada uma destas técnicas
é resultado de sistematizar o real de forma diversa. Não é a técnica de ler e
escrever de uma parte, e memorizar por outra, o que cria em si a dificuldade. É
o conteúdo do que elas transmitem e o treino a que cada uma submete a mente, o
que origina a descontinuidade, quando ambas as técnicas coexistem. Talvez seja
necessário exprimir que a descontinuidade está nos campos a que cada uma delas
tem sido referida, no que diz respeito a saber e teoria; e a complexificação ou
simplificação que cada uma delas comporta. À aprendizagem pela memória não
escrita ficam sujeitas as relações que as pessoas actualmente praticam,
enquanto que à memória escrita ficam adscritas as abstracções universais das
mesmas, no que diz respeito à conduta social. É a mesma diferença que existe
entre a legislação canónica ou positiva a respeito da formação da família e
circulação dos bens, e a apreciação das possibilidades específicas que têm
determinadas pessoas para ter filhos, entender o trabalho, amar, ser sujeito de
paz, aceitar que o conflito existe mas é possível geri-lo, e outros exemplos,
mas, com a passagem do tempo uma outra diferença de conteúdo se tem introduzido
entre as duas técnicas de aprender: é verdade que a escrita despersonaliza e
universaliza, mas o mito também; é verdade que a oralidade de debruça sobre as
qualidades específicas das pessoas e particulariza os fenómenos, mas também a
teoria geral da lembrança pela palavra que explica os textos divinos. Há, ou
tem havido, uma relação entre o facto de escrita e oralidade circularem o saber
por meio dos atributos da divindade, e a ideia do bem e do mal. O que tem
acontecido, contudo, é o processo de aprender ter passado a ser um exercício da
razão que se debruça sobre os fenómenos e as suas características, e os anota
para voltar a eles, e esse processo tem passado a ser dominante e associado aos
textos. Quando criação divina do mundo, palavra que sistematizava as suas
características e texto que as lembrava coincidiam, o saber era letrado ou hierárquico.
Quando se cria a figura de cidadão, o crer separa-se da razão, numa teoria da
igualdade entre todos os seres humanos que, desde que tenham uma vontade livre,
podem concorrer entre eles…
b) Escrita, valor e
razão
A técnica de ler aprende-se em textos que
formem o cidadão. A de escrever cuida de que o cidadão mantenha o exercício de
abstrair as qualidades das coisas. Mas aquelas qualidades dão às coisas um
valor transaccional medido em dinheiro e, eventualmente, acumulável em lucro. A
medida do uso de todo o saber é a sua utilidade, e a sua utilidade mede-se pela
sua capacidade de ser comprado e vendido, compra e venda que se rege por um
preço que segue a sorte do salário, e o salário o da procura e oferta; os quais
têm todos que ver com o tempo que um indivíduo gasta a produzir um bem. Já se
sabe, para mais tempo na produção de bens socialmente aceites e procurados,
maior salário, preço mais alto, menor venda. A lei do valor tem passado a ser
um critério de medida das relações entre os homens que se substituem uns aos
outros anonimamente. A lei do valor é um derivado de um desenvolvimento de uma
teoria, a económica, que se debruça acerca das qualidades das coisas a que
ficam as pessoas sujeitas e dependentes. O critério derivado é o da utilidade o
qual define o valor do que se possa vir a teorizar, entender, explicar ou
transmitir na aprendizagem.
Este critério de utilidade pede o
desenvolvimento de um ser humano cujas habilidades para abstrair sejam
treinadas, desenvolvidas, salientadas, especialmente na época em que, é dito, a
maquinaria substitui a força. Já estava o campo preparado nessa distinção entre
corpo e alma que a maior parte das culturas têm, como para que não fosse lógico
chegar a querer aperfeiçoar a capacidade intelectual do cidadão. Isto reflecte-se
no conteúdo do que se ensina na técnica de ler e escrever: os signos com que as
ideias se argumentam têm uma ordem, a gramática, que é diferente da usada na
linguagem quotidiana. Isto porque se tem descoberto que o argumento que explica
é o formal, que se exprime por uma ordem convencional de sujeito, verbo,
predicado e complemento, que permite a uniformização do discurso entre pessoas
que têm uma mesma identidade, têm a mesma capacidade de racionalizar, o mesmo
acesso aos bens, o mesmo instrumento contrato para fixar os termos úteis das
suas relações. A razão precisa de uma igualdade entre iguais que a gramática
torna possível, numa cultura onde as coisas são também rentabilizadas pela
aritmética que prepara para desenvolver o valor marginal. A escrita resulta do
ordenamento social imposto pela economia que é descontínua com a experiência
histórica dos seres humanos que abstraem pela virtude individual.[…]
(continua)
(do Aventar)