sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

A proletarização da profissão docente e o desaparecimento do professor como figura pública

"A proletarização da profissão docente e a desvalorização da pedagogia são duas faces da mesma moeda, que se traduzem no enfraquecimento da profissão e no esvaziamento da sua função pública.
As questões suscitadas pela prova de avaliação de conhecimentos e capacidades (PACC), implementada pelo Ministério da Educação em Portugal, e as reações que despoletou por parte dos professores têm sido analisadas principalmente em termos das questões mais específicas e contextuais da natureza da prova e do momento em que ela surge. Nestas análises têm sido destacados aspectos como o facto de a prova não avaliar nem conhecimentos, nem competências exigidas para a função de professor, nem o núcleo daquilo que constitui a ação do professor — a prática em sala de aula. Também o facto de ser aplicada a professores que, provavelmente, na sua maioria, não entrarão no sistema de ensino e muito menos terão acesso à carreira nos tempos mais próximos, num contexto de cortes e mudanças dramáticas que estão a ser levadas a cabo no sistema de ensino público em Portugal, tem sido frequentemente referido para criticar a prova.

É inegável a humilhação e violência que ela representa, não só para os professores avaliados como para os que a vigiam e avaliam, patente nas diversas reações e testemunhos manifestados no dia ‘trágico’ da sua realização. A ideia de avaliação como mecanismo de controlo, punição e exclusão tem sido característica das políticas recentes do Ministério da Educação. No entanto, a gravidade da situação e as suas implicações para uma classe profissional que tem vindo a ser ‘fustigada’ pelas políticas de educação levadas a cabo pelo governo requer uma análise mais ampla e aprofundada de algumas questões ideológicas, conceptuais, sociais e políticas que lhe estão subjacentes. Estas, embora não se esgotem nem se expliquem apenas no quadro da política deste Ministério, constituem aspetos centrais da configuração da profissão docente e do entendimento da pedagogia nas sociedades contemporâneas, principalmente nos países ocidentais, que tornam os professores alvos fáceis de políticas de cariz neoliberal.
Um dos factores centrais do enfraquecimento da profissão docente tem sido a sua proletarização. Sob a bandeira da profissionalização e da definição do estatuto profissional docente, um conjunto de políticas tem contribuído para a ‘funcionarização’ dos professores através de mecanismos e discursos que tendem definir um controlo burocrático e técnico sobre a profissão, esvaziando-a da sua dimensão pedagógica e ética. Estas condições têm sido acentuadas pela redução de rendimentos, pela degradação do estatuto e pela perda de autonomia. A ação das organizações profissionais, nomeadamente dos sindicatos, cuja importância histórica e a força política em Portugal é inegável, tem provocado tensões e está a sofrer transformações que devem ser tidas em conta relativamente à sua capacidade e ao seu papel na luta pela autonomia, estatuto e condições de exercício da profissão. A questão da institucionalização das organizações sindicais, a sua relação com outras associações profissionais e movimentos sociais emergentes é uma questão central e um desafio crucial relativamente à natureza e relevância do serviço público que prestam e à necessidade de novas formas de ação, reflexividade e comunicação que acentuem a legitimidade dos interesses públicos que defendem, como no caso da luta dos professores. Todos estes aspectos têm levado à erosão da dimensão pública da profissão docente, no quadro de uma perspectiva mercantilista e uniformizadora mais ampla, que tem provocado uma erosão da esfera/vida pública e das preocupações com o bem comum a uma escala global, tornando a profissão mais vulnerável a tentativas de dominação e controlo."[...]

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sábado, 22 de fevereiro de 2014

Os nossos amigos chineses



A venda dos jornais e dos jornalistas independentes será a última pazada de terra na sepultura da democracia
EM 2012, 0 "NEW YORK TIMES" publicou uma extensa e fundamentada investiga­ção sobre a riqueza da família do então primeiro-ministro da China Wen Jibao (no cargo de 2003 a 2013). A peça, uma das mais corajosas que li na minha vida, não deixava pontas soltas. Nela se de­monstrava uma riqueza suspeita e meios ilícitos para a obter. A reportagem ga­nhou o Prémio Pulitzer e contribuiu para restabelecer a reputação do "NY Times" depois dos escândalos de plágios, conivências políticas (o caso da delação da agente da CIA Valerie Plame) e repor­tagens inventadas. A peça sobre Wen Jibao trouxe ao "NY Times" um inimigo poderoso, o Partido Comunista Chinês. O site do jornal foi imediatamente bloquea­do na China, e assim permanece. As pressões diplomáticas da China foram brutais (e pouco diplomáticas) e o Depar­tamento de Estado teve de aguentar a ira dos chineses e as ameaças de retaliação. Os jornalistas do "NY Times" têm tido grandes dificuldades em obter vistos para a China. Wen Jibao tinha sido apontado pela revista "Time" como um dos maiores responsáveis pela crise financeira inter­nacional, sendo um dos autores da política de concessão de crédito barato aos Estados Unidos: "Se o crédito barato foi o crack da crise financeira — e foi — então a China foi um dos maiores dealers." A China tornou-se o maior credor dos Estados Unidos, com 1,7 triliões de dívida em dólares, ao mesmo tempo que mantinha a moeda chinesa, renminbi, desvalorizada para favorecer o sector exportador. Chen Guangbiao, um magnata chinês e uma das pessoas mais ricas da China, propõe-se agora comprar o "NY Ti­mes" e garante que continuará a perse­guir o jornal até concretizar a aquisi­ção . "Pretendo comprar o 'NY Times', e não tomem isto como uma anedota" Porquê? Porque tem muito dinheiro. E, cito, porque "a tradição e o estilo do 'NY Times' fazem com que seja muito difícil conseguir uma cobertura objetiva da China". "Se pudéssemos comprar aquilo, daríamos uma volta ao tom do jornal. Por isso tenho estado envolvido em discus­sões com outros investidores relaciona­das com esta aquisição." Chen fala já em "conduzir as necessárias reformas no jornal, cujo fim último é tornar as reporta­gens mais autênticas e objetivas, recons­truindo a sua credibilidade e influência". Depois de produzir estas afirmações, Chen rematou que ia para os EUA tratar da compra do jornal. Muitos acharam que estava a querer chamar as atenções, mas foi detetado por um repórter do "Chinese Business News" num aeroporto de Nova Iorque quatro dias depois. Chen, cuja fortuna se deve a uma compa­nhia de reciclagem de lixo (mão de obra miserável se encarrega de recolher 'material reciclável' pelas ruas da China) chegou a vender "ar enlatado" a habitan­tes de Pequim que queriam respirar sem smog. Chen escreveu sobre a pretensão: "Enquanto o preço for razoável nada existe que não possa ser comprado." Parece que a ideia lhe veio ao comprar um anúncio no "NY Times", em 2012, que certificava a soberania de Pequim sobre as disputadas ilhas Diaoyus, que o Japão reconhece como suas e a que chama Senkakus.
 
Este episódio grotesco é revelador. O jornalismo não está a salvo dos tubarões da finança nem do seu apetite aquisitivo. A companhia que detém o "NY Times" está cotada em Wall Street e tem uma capitalização de mercado de 2 mil mi­lhões de dólares. Os jornais de papel, na sua agonia, tornaram-se presas fáceis de personalidades, entidades ou países sem tradição democrática e com ambições de dominação que decidem que tudo, pes­soas e princípios, tem um preço. A amea­ça de Chen não é uma leviandade. Embo­ra a família Sulzberger, os fundadores e publishers do "NY Times", tenha declara­do que não tem intenção de vender o jornal a quem quer que seja, a verdade é que numa fase de dificuldades económi­cas o jornal teve de recorrer a um em­préstimo do magnata mexicano Carlos Slim, empréstimo que entretanto pagou. Arthur Ochs Sulzberger Jr., o amai chairman, tem o mérito de ter dinamizado os conteúdos digitais do jornal, ter consegui­do criar um site que é o mais perfeito e visitado dos sites jornalísticos, e de ter conseguido rentabilizar os conteúdos. Até chegar aqui, o jornal atravessou vários desertos e esteve quase a sofrer a sorte do "Washington Post", da família Graham, entretanto comprado por Jeff Bezos da Amazon. A volatilidade do negócio dos jornais, em suporte papel ou digital, é brutal. Todos os dias a realidade muda e aparecem novas ameaças e concorrências. Nesta situação de fragilida­de, convém não desprezar senhores como Chen, que tem atrás dele a vontade dos dirigentes chineses. Angola tem apetite igual em relação a jornais portu­gueses, com argumentos parecidos. A venda dos jornais e dos jornalistas inde­pendentes será a última pazada de terra na sepultura da democracia.”

Clara Ferreira Alves, revista expresso
Jan. 2014

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Dossier Ucrânia: neonazis a um passo do poder


"Oportunismo insano do presidente, vacilações da oposição liberal e paralisia da esquerda deram à ultra-direita controle das ruas. EUA e Europa são co-responsáveis.
Uma vez, já faz tempo, trabalhando com turismo, tínhamos que organizar um voo para uma ilha do Pacífico. Os pilotos explicaram que para obter permissão de decolagem, era preciso primeiro ter a confirmação da aterrizagem bem sucedida do avião que chegou antes, já que no caso de um acidente na pista, um segundo avião não teria onde aterrizar, e uma vez passado o ponto de não-retorno, definido pela distância e pela reserva de combustível, o avião a caminho simplesmente ficaria sem opções. Lembro-me o quanto me impressionou esse conceito de “ponto de não-retorno”, que escutei então pela primeira vez. Também me perguntei se o termo seria aplicável à historia das sociedades. Depois dos últimos acontecimentos no meu país, a Ucrânia, lembrei-me disso e voltei às mesmas perguntas.
Depois da trágica e fulminante queda da União Soviética, a Ucrânia, sua segunda república depois da Rússia em população e nível de desenvolvimento, entrou no turbulento período de sua história independente. Apesar de uma infinidade de problemas econômicos e políticos, à diferença dos seus vizinhos, a Ucrânia permaneceu neste quarto de século sob uma invejável paz social, e meus compatriotas reiteraram-me várias vezes o mito narcisista e sedutor do “caráter nacional pacífico” dos ucranianos, tão diferente do arco que vai dos bósnios aos chechenos, de gente capaz de tanta barbárie.
A partir de meados de janeiro deste ano, ninguém mais vai acreditar nesse conto. Derramou-se sangue. Desde a libertação de Kiev da ocupação nazista em 1944, a capital ucraniana não via cenas desse tipo. Os principais meios noticiosos do mundo mostraram Kiev em chamas, milhares de manifestantes, policiais, armas, bandeiras e outras figuras midiáticas, como sempre, praticamente sem qualquer contexto, entorpecendo o espectador com a sua usual anedota da luta do bem contra o mal ou da democracia contra o totalitarismo.
Sem dúvida estamos diante de um fenômeno que ainda não conseguimos entender por completo.
No território ucraniano se enfrentam hoje dois grandes predadores: o capital ocidental e o capital russo, diante dos quais os oligarcas ucranianos espreitam como chacais, à espera do momento certo para apostar no mais forte. Seguramente, no futuro vão se escrever vários livros sobre o trabalho dos serviços secretos estrangeiros na Ucrânia deste princípio de século. Desse tema já falam, e falarão ainda muito, mudando o foco de acordo com as colorações ideológicas.

Abordaremos, no entanto, outro tema, de momento menos midiático: as causas mais profundas do descontentamento popular na Ucrânia. Alguma coisa aconteceu nesse país, ainda ontem tão pacífico e tolerante, e que agora busca desesperadamente mudanças urgentes, sem distinguir os meios e as forças que hoje prometem assegurá-las.

Os protestos, cada vez mais violentos, contra um governo de direita, cada vez mais violento, são encabeçadas por grupos de ultra-direita também cada vez mais violentos. Lamentavelmente, essa ultra-direita tem agora cada vez mais aceitação social. Isso acontece porque a ultra-direita age contra um governo corrupto, que praticamente perdeu sua legitimidade frente à maioria dos ucranianos, enquanto uma outra direita, agora uma terceira, a da oposição democrática, a dos contos europeus e prantos por Yulia Timoshenkoi, não teve mérito e capacidade para encabeçar os protestos populares. Assim, melhorando os cálculos, essa guerra interna ucraniana já não seria sequer entre duas, senão entre três direitas.
Um jornalista ucraniano certa feita comparou o papel da ultra-direita nacionalista em sua luta contra o governo com o papel dos fundamentalistas muçulmanos na “Primavera Árabe”. Uma vez considerada a enorme diferença cultural e histórica entre os dois casos, a comparação parece interessante e digna de um estudo mais aprofundado.
Criticando ou defendendo o partido fascista ucraniano “Svoboda”, a mídia local usualmente ignora o fato de que, há não mais que quatro anos, esse partido não passava de um grupelho de fanáticos, cujo apoio eleitoral se expressou em tão apenas 0,12% dos votos. Ao ganhar a eleição presidencial, o atual mandatário do país, Vítor Yanukovich, pensando na sua futura reeleição, resolveu dar luz verde ao Svoboda e à sua propaganda porque, conforme seu cálculo, só poderia ser reeleito se seu futuro rival fosse um sinistro candidato fascista. Nas eleições parlamentares de 2012, o Svoboda obteve 10,44% dos votos e até o momento duplicou ou até mesmo triplicou o número de partidários.
O nível de aprovação do presidente Yanukovich, por sua vez, está em torno dos 12,6%. Se as eleições fossem hoje, com segurança Yanukovich perderia para um candidato neonazista. Entre outras coisas, essa seria uma prova a mais da destruição da memória histórica do povo ucraniano. Lembremos que na Segunda Guerra Mundial, que para nosso povo foi a Grande Guerra Pátria, morreu um de cada seis habitantes do país. Minhas congratulações às novas mídias: livres, divertidas, democráticas e anticomunistas. Uma frase típica, que ressoa nas ruas de Kiev, vaticina: “Não são fascistas, são apenas nacionalistas”. Outras parecem mais reflexivas: “Melhor os fascistas que os bandidos”. Uma das características dessa pós-modernidade neoliberal é o rápido retrocesso mental pelo qual se confunde a pátria com as bandeirinhas.
Para imaginar o pano de fundo social do drama ucraniano, tomemos em conta que os preços ao consumidor no país são similares aos da Europa Central e que a aposentadoria mínima é equivalente a 100 dólares mensais, com a média chegando a 170 dólares, que é paga com muito atraso. As aposentadorias que se pagam sem atraso são as dos ex-deputados, que, por sua vez, podem alcançar os 15.300 dólares mensais. A família do presidente Yanukovich, tal como a de Somoza na Nicarágua, controla grande parte da economia do país. Seu filho Aleksandr é a quinta pessoa mais rica da Ucrânia. Ele começou seus negócios há poucos anos, arrendando ao governo os helicópteros recém privatizados.
Na Ucrânia, fala-se bastante do seu atual presidente, que quando jovem foi um assaltante e esteve preso por roubos acompanhados de violência. Na realidade o jovem Vítor Yanukovich, criado pela avó, vivia nos subúrbios de um povoado mineiro, e aos 17 anos foi condenado a um ano e meio de prisão por pertencer a uma gangue que roubava gorros de pele dos transeuntes. Comparadas às fábricas, terras, palácios e somas milionárias do Estado roubados por tantos políticos ucranianos, as ternas lembranças de adolescência de seu presidente são uma piada que não mereceria maior atenção, ainda que a mídia assegure o contrário.
A propósito do curioso “sonho europeu” dos ucranianos, há seis meses estive na Ucrânia Ocidental, o berço do atual nacionalismo, e visitei cidadezinhas fantasmas: todos os seus habitantes se foram, para trabalhar na Europa Ocidental ou na Rússia. Pedreiros, motoristas, empregadas domésticas e prostitutas ucranianas continuam invadindo os mercados de trabalho formal e informal da Europa e do mundo. Enquanto muitos latino-americanos voltam para seus países de origem, saindo da Europa, os ucranianos não param de chegar. Em comparação com a realidade do país, a Europa para eles, mesmo em crise, continua sendo quase um paraíso. “Não tem comparação!” — dizem. Uma mulher de um povoado perto de Lvov, que tem seus quatro filhos e dois netos espalhados entre a Polônia e a Itália, me explicava: se pudéssemos ganhar aqui, trabalhando em qualquer coisa que fosse, pelo menos (o equivalente a) uns 150 dólares por mês, ninguém iria embora. Para sair do país rumo ao Ocidente, os ucranianos necessitam vistos. Os vistos para o paraíso europeu não são dados a todos. Para muitos ucranianos, essa é a verdadeira razão do misterioso desejo de que o país seja membro da União Europeia.
E o que estaria acontecendo com a esquerda ucraniana? Quase nada, porque quase não existe. O Partido Comunista da Ucrânia, que até a semana passada foi aliado do governo de direita de Yanukovich, agora, seguindo seu instinto oportunista, “se indignou com a repressão” e “rompeu com o regime”. Muitas vezes, acho que a última esquerda verdadeira do país foi, na verdade, aniquilada nos campos de concentração de Stálin. Os grupelhos da esquerda ucraniana, mais um punhado de indivíduos que organizações, estão completamente ultrapassados pela magnitude dos acontecimentos atuais. Frente aos fatos, encontram-se divididos: uns optam por “estar com o povo” e “primeiro acabar com o regime e depois ver o que se pode fazer”; outros dizem que “esta guerra não é nossa” e que a derrota do atual governo conduzirá o país a uma ditadura muito pior. Ambas as posturas são honestas e reconheço que me sinto esquizofrenicamente dividido, dando razão às duas e olhando comodamente de longe.
À microscópica esquerda ucraniana, que critica o povo por seguir as direitas, eu gostaria de recomendar que relesse o poema “Solução”, de um grande alemão e grande comunista chamado Bertolt Brecht: “Depois da revolta de 17 de junho / o secretário da União de Escritores fez distribuir panfletos na avenida Stálin / declarando que o povo havia rompido com a confiança do governo / e que só poderia recuperá-la redobrando o trabalho. / Não seria mais simples para o governo, nesse caso, / dissolver o povo e escolher outro?”
Muitos na Ucrânia falam de uma “ditadura fascista” de Yanukovich e quando tentam explicar a situação a um latino-americano, por exemplo, definem o presidente como um “Pinochet ucraniano”. Sem que eu sinta qualquer coisa de positivo com relação a essa figura, não hesito em afirmar que uma verdadeira ditadura é algo bem diferente, e significa níveis de repressão e bestialidade absolutamente diferentes, que tomara que os cidadãos da Ucrânia jamais cheguem a conhecer.
Meu amigo Andrei Manchuk, uma pessoa muito honesta, e além disso um dos poucos jornalistas ucranianos de esquerda, afirma com toda segurança que Vítor Yanukovich, sem dúvida, é um ladrão e delinquente, mas idiota não é — e jamais teria ordenado tortura e assassinato de opositores, porque realmente não lhe convém. Andrei disse que Yanukovich é um adversário débil e indeciso, e que seu governo não caiu há um mês apenas porque a “oposição” só busca o poder, mas não quer arcar com responsabilidade alguma em um país saqueado e em colapso. Os únicos que não têm medo são os neonazistas.
Vários analistas ucranianos afirmam que, pela mesma razão da debilidade do presidente, aliada a um repúdio cidadão generalizado a ele, Yanukovich deixou de representar uma solução e se converteu em um problema. Tanto Putin como vários oligarcas ucranianos (e outros atores) já teriam optado por desfazer-se dele e substituí-lo por alguém mais hábil e carismático.
Exponho a seguir um resumo de dois olhares ucranianos, que refletem bastante bem duas posturas internas, predominantes entre quem não se identifica com nenhuma das três ou mais direitas nacionais. Não se trata de una tradução literal, mas de uma síntese."[...]
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sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Soberania, soberania nacional e subalternidade – para um enquadramento geopolítico



"Sumário

1 - Como se constrói a soberania
2 – Como se desenvolve uma soberania nacional
3 – Portugal, a construção de uma dependência
4 – Mudança de agulha -  a subalternidade dentro da UE
5 – Subalternidade periférica num contexto geopolítico não previsto
6 - A subalternidade é a porta para todas as desigualdades


A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.                                Eduardo Galeano

1 - Como se constrói a soberania

A soberania para as pessoas e para os povos é a morte da imposição, a ausência de senhores ou Estados; estes últimos, em regra, em delegação dos senhores, servem apenas para roubar, importunar e massacrar, se necessário. A continuidade da existência desses entes tem vindo a gerar duas atitudes dominantes; a das vítimas, que procuram a minimização daquelas duas formas de assédio e a dos senhores que procuram, precisamente, manter a inconveniência e o roubo. Fora dessa dicotomia sempre ficaram uns quantos, os rebeldes e os inconformados, designados por criminosos e terroristas pelos senhores e loucos ou utópicos por espoliados conformados com a sua sorte. Galeano refere-os como os que não param de caminhar.

A soberania é a do povo, não a das nações. Uma nação pode ser soberana, no contexto da interdependência que sempre se observa face às suas congéneres mas, dificilmente o seu povo será soberano, uma vez que os seus destinos são definidos pelo Estado, pelos capitalistas e pelos mandarins que se incrustam no primeiro; considera, esse conjunto, as necessidades da multidão como um subproduto da exigente e inadiável prossecução dos seus interesses particulares. A situação que se vive atualmente em Portugal evidencia claramente como, na limitada soberania que é concedida à nação, o sistema financeiro, os mandarins e os capitalistas em geral, bem coordenados, não hesitam em coartar brutalmente os acessos do povo a rendimentos e direitos, dando preferência ao pagamento da dívida à especulação global, ao equilíbrio do balanço dos bancos, à sobrevivência dos capitalistas lusos, ao bem estar de mandarins e dos ricos em geral. Para a multidão de trabalhadores, desempregados e ex-trabalhadores, acusada de “viver acima das suas possibilidades”, a pouca soberania existente da chamada nação portuguesa não lhe traz, todavia, qualquer préstimo, apenas mais deveres e sacrifícios.

Falar de soberania nacional em Portugal é colocar a soberania do povo no cofre forte dos capitalistas lusos que negoceiam a partilha do pote com os capitalistas estrangeiros. Quantas vezes esse filme tem de ser revisto para se perceber que tem um mau epílogo? E esse epílogo é sempre o banquete entre capitalistas de cá e de lá, com o povo a apanhar as migalhas que caem da mesa e a levar uns pontapés quando rosna demasiado. Nestes tempos conturbados é assim tão difícil perceber que os capitalistas não servem para nada[1]; e pior, que isso só estorvam?

Um povo soberano é aquele que gere as suas necessidades materiais e de convivência pacífica, sem imposições de instituições exteriores ou de classes/poderes dominantes emanados de si próprio. As fronteiras que, sobretudo depois do século XVIII, delimitavam de modo muito vincado as nações, serviam essencialmente para a criação de coutadas de força de trabalho para grupos dominantes poderem gerir e explorar a seu contento, sem a concorrência ou interferência de outras nações; e, estas outras, sempre que as suas necessidades de pilhagem de recursos materiais ou de potencial de trabalho o exigiam, violavam essas fronteiras, através da guerra. Hoje, as riquezas mudam de mãos através de investimentos, privatizações e dos mecanismos da dívida. Mais rápido e a coberto de leis pré-fabricadas para tal.

Soberania consiste em as sociedades gerirem autónoma e democraticamente, sem aparelhos estatais ou castas partidárias, as áreas estratégicas essenciais da vida humana – alimentação, educação, saúde, habitação, segurança social, água, energia, circulação de pessoas, qualidade ambiental, ordenamento do território. A proposta de qualquer outro tipo de soberania que não se baseie nisto é uma aldrabice e terá certamente por detrás quem ambicione viver à custa do trabalho do outro, uma sociedade de desigualdades.

2 – Como se desenvolve uma soberania nacional
                                                                              
Portugal foi inventado pelo impulso separatista de um senhor feudal que pretendia subir um degrau na hierarquia da época e transformar o seu senhorio – um reles condado – num reino. Nada no terreno justificava a separação entre as partes norte e sul da Galiza, com gentes unidas pelo modo de vida, pela língua (e pela fé!!), pelas origens comuns, pela história, depois de cerca de mil anos de romanização, reinos suevo e visigodo, separados durante pouco tempo por uma presença muçulmana. Também a leste não se descortinava qualquer identidade física ou social que separasse as duas margens do Douro ou do Coa, como se não se observou quando a fronteira foi deslizando até à foz do Guadiana.

Não se assistiu a um clamor popular de aplauso pela criação do novo reino, porque a subordinação do povo ao senhor feudal local em nada se alterava. Essa questão da soberania que colocava os senhores à espadeirada uns com os outros, só bulia com os interesses do povo quando as correrias militares devassavam os campos de cultivo ou arrebanhavam jovens para a guerra. A soberania que verdadeiramente interessava ao povo era a alimentar, uma vez que, se houvesse fome, não havia nenhuma Jonet para distribuir as sobras dos supermercados.

Sabemos como o primeiro rei luso conseguiu a soberania. Fazendo-se respeitar como cabo de guerra, alargou os seus domínios até Lisboa e além-Tejo - à custa de outros senhores ditos infiéis – e, assumindo um pagamento eterno de 16 onças de ouro anuais ao papa. Para este, a pretensão soberanista do já rei Afonso só se tornou clara quando a oferta inicial de quatro onças se multiplicou para as definitivos 16.

A conquista de Lisboa que rapidamente se tornou a capital do novo país deu alguma consistência estratégica a Portugal, no contexto peninsular, unindo as populações do norte e as do sul, estas, fortemente marcadas pela civilização muçulmana, sob uma mesma tutela real que nunca permitiu verdadeiros devaneios regionais dos senhores. Lisboa, deu profundidade estratégica territorial a Portugal, uma vez que estava no ponto mais afastado da fronteira, defendida por um rio a sul e por terrenos acidentados a norte; e, para mais, com uma larga saída para o Atlântico que permitiria alimentar um comércio externo importante e evitar uma absorção centrípeta numa Castela de nobres latifundiários, iguais aos seus parentes do norte e centro de Portugal.

No seguimento de várias pretensões aos tronos recíprocos entre Portugal e Castela, sucedeu em Portugal a crise dinástica de 1383/85. A resistência ao pretendente castelhano fez-se sentir sobretudo em Lisboa, ajudada do exterior pelas surtidas de Nuno Álvares Pereira e, sobretudo pela peste, que aniquilou parte do exército castelhano que cercava a cidade, em 1384. Aljubarrota, no ano seguinte selou a independência entre os dois reinos.

A Inglaterra já desempenhava então um papel relevante nas relações comerciais com Portugal, que surgia como um ponto de apoio ao tráfego inglês com o Mediterrâneo. Entre os dois países foi celebrada uma aliança em 1373 a propósito de uma disputa pelo trono de Castela e que viria a ser fortalecida com a crise dinástica de 1383/85 quando os ingleses apoiaram Portugal, para fragilizar Castela, aliada da França, com quem a Inglaterra mantinha as longas disputas senhoriais designadas por Guerra dos Cem Anos. Em Aljubarrota também participaram ingleses e franceses, em campos opostos, naturalmente.

A guerra com Castela renovou a nobreza portuguesa uma vez que os bens dos apoiantes do rei de Castela foram redistribuídos, sendo Nuno Álvares Pereira um dos principais beneficiados. E os custos dessa guerra promoveram a criação da sisa, em 1387, o primeiro imposto geral criado na Europa, iniciando assim uma soberania estatal desde sempre mais lesta numa punção fiscal sufocante do que na promoção do bem estar da população ou sequer de um desenvolvimento capitalista digno desse nome, como se iria a verificar.

O enorme desenvolvimento da expansão territorial além-mar e do comércio longínquo a partir do século XV tornou Portugal, durante algum tempo, a primeira potência naval. Uma população reduzida, a ausência de camadas sociais capazes de se impor à preponderância de fidalgotes vivendo de uma agricultura atrasada, uma monarquia muito centralista, que encarava o comércio longínquo como fonte de renda estatal, foram alguns factores que impediram um desenvolvimento económico e financeiro interno sustentável. Portugal ficava dependente do poder financeiro italiano ou flamengo e, não controlando os preços no destino das mercadorias que transportava, ficou limitado ao papel de transportador, assumindo os custos humanos e materiais de viagens longas e arriscadas.

3 – Portugal, a construção de uma dependência

Nos séculos XVI e XVII, o modelo económico implícito na Ibéria baseava-se nos ganhos com o comércio longínquo, associado ao saque dos metais preciosos do México e do Peru, no caso de Espanha. A procura da continuidade do monopólio desse comércio - validado pelo Papa em 1506 - e a garantia da segurança do tráfego marítimo face a ingleses, holandeses, franceses e piratas comuns, exigiu gastos militares enormes a que se adicionaram as necessidades das guerras europeias resultantes da integração espanhola no disperso e inviável império dos Habsburgos, atravessado por guerras civis, nacionais e religiosas.

Entretanto, holandeses e ingleses desenvolveram poderosas marinhas mercantes e de guerra enquanto o corso (palavra que então legalizava a pirataria) do Drake ofereceu um contributo muito importante para a primitiva acumulação capitalista inglesa. Na Ibéria, o desequilíbrio externo com o norte da Europa era habitual, coberto com os lucros das Índias ocidentais e orientais mas, um assunto não tão importante como eventos organizados pela Inquisição, de queima de “hereges” nas praças públicas.

Portugal, após a união dinástica de 1580 com Espanha, esteve integrado na estratégia dos Habsburgos até 1640 e, a partir de então procurou recuperar as colónias brasileiras e africanas, activando o ciclo do açúcar e do comércio atlântico de escravos; mas, já não o comércio do Oriente, irremediavelmente perdido. Para se defender de uma nova integração na monarquia espanhola, Portugal iniciou um período de séculos de dependência e subalternidade face à Inglaterra, cada vez mais a potência dominante a nível mundial.

As experiências industrializantes do duque da Ericeira (depois de 1670) – desenvolvimento do têxtil moderno com artífices ingleses -  abortaram, porque perante a descoberta do ouro no Brasil (1693), interessava mais aos ingleses o subdesenvolvimento industrial em Portugal que favoreceria a importação de manufacturas inglesas, pagas com ouro brasileiro.

No seguimento, a coroa, a aristocracia latifundiária e a Inglaterra geraram o tratado de Methuen (1703) segundo o qual os ingleses compravam vinho e vendiam lanifícios, com impactos muito distintos na criação de riqueza, no desenvolvimento capitalista, no trabalho qualificado, na densificação da matriz inter-industrial. Esta segmentação foi tão bem urdida que ficou considerada por David Ricardo como exemplo paradigmático da sua teoria das vantagens comparativas.

Ainda nessa época, Portugal envolvia-se na guerra da sucessão de Espanha, alinhado com os interesses estratégicos ingleses, para impedir reis Bourbons em França e Espanha. Embora esse desiderato não tenha sido obtido, a Inglaterra obteve vantagens geopolíticas várias enquanto Portugal selava, um futuro de dependência e de atraso económico e político.

No início do século XIX, Napoleão, vencido em Trafalgar, perdeu a possibilidade de disputar o controlo do mar à Inglaterra e decidiu dar um golpe no comércio inglês, decretando o bloqueio continental. Portugal, se tem obedecido a Napoleão, teria visto a Inglaterra bloquear o tráfego português com o Brasil, o verdadeiro pulmão do Estado português e da sua corte. Neste contexto, a guerra com a França era inevitável e a corte foi despachada para o Brasil – levando consigo o real mobiliário de Mafra - protegida pela frota inglesa, sem que a Inglaterra perdesse a oportunidade de cobrar o serviço; isto é, exigiu a abertura dos portos brasileiros ao comércio inglês, vantagem bem mais interessante do que o transporte de uns magotes de parasitas para o Brasil.

Os franceses enviam três vagas de tropas para submeter e retalhar Portugal mas, encontraram uma forte resistência dirigida pelos ingleses; é Wellington que dirige as operações na decisiva batalha do Buçaco. Vencidos os franceses, o general Beresford governou Portugal, no contexto da continuada ausência da corte, até à revolução liberal de 1820.

A intervenção inglesa tornou-se também decisiva na definitiva vitória de Pedro IV sobre os absolutistas dirigidos pelo seu irmão Miguel, em 1834. Mais tarde, em 1847, são novamente os ingleses que, com os espanhóis, põem termo à sublevação do Norte, designada por Patuleia, impondo a autoridade da rainha Maria II. Portugal tinha, portanto, a condição de um estado vassalo da Inglaterra sobretudo, depois de enfraquecido após a independência do Brasil face à coroa lusitana.

Nos finais do século XIX, no auge da partilha de África entre as grandes potências europeias, Portugal sentiu que tinha de fazer algo para manter a sua histórica presença nas velhas colónias de Angola e Moçambique, a qual pouco se afastava, então, do litoral: e daí, que se tenham efetuado expedições para obter a vassalagem das tribos entre aquelas duas colónias e conseguir a legitimação da presença colonial portuguesa. Porém, essa intenção chocava com o projeto inglês de construir uma ligação ferroviária, sob o seu controlo, entre a Cidade do Cabo e o Cairo, surgindo, em 1890, nessa sequência, a exigência inglesa para a retirada portuguesa daquelas regiões do interior, no que foi obedecida, naturalmente. O vexame, entendido como próprio de uma situação de estado vassalo da principal potência da época, desacreditou a monarquia lusa e veio a motivar a insurreição republicana de 1891 que, no entanto, só veio a ser bem sucedida em 1910. Por essa época, Eça de Queiroz, diplomata em Inglaterra e França, dizia que Portugal era “um sítio”, ligeiramente diferente da Lapónia que nem sítio era.

Durante a guerra de 1914/18 Portugal, para defesa das colónias de eventuais partilhas entre as grandes potências – sobretudo da Alemanha, chegada tardiamente ao saque colonial -  lançou-se na guerra, sem qualquer capacidade militar para tal, assumindo-se como uma tropa subalterna da suserania inglesa, à custa de elevadas perdas humanas. Apenas se observou uma preparação relativamente ao momento da entrada na guerra (1916); quando estava um grande número de navios mercantes alemães e austríacos nos portos portugueses. O fim da neutralidade, possibilitava ao governo a apropriação dos navios tornados inimigos, aumentando-se assim, de modo gratuito, uma débil marinha mercante.

Durante a II Guerra, Salazar manteve-se neutro pois a neutralidade de Franco não lhe exigia uma opção e, contrariamente a 1914, as colónias estavam fora do cenário da guerra; entretanto, alguns enriqueciam com a venda de volfrâmio aos dois campos do conflito e contribuíam para a redução do deficit, o que agradava sobremaneira a Salazar, ao original… como aos seus atuais sucedâneos.

Em 1943, a Inglaterra, conluiada secretamente com os EUA e depois de proferidas umas loas à secular aliança luso-britânica para agradar a Salazar, consegue instalar a base militar das Lajes, nos Açores; em troca ofereceu material militar de segunda escolha para entreter os generais lusos e a promessa de defesa de Portugal em caso de ataque alemão (pouco provável). Depois da instalação dos ingleses, é imposta a presença dos norte-americanos, já sem margem de manobra para Salazar, que detestava o “american way of life”, para si, nos antípodas da boa moral católica – Hollywood, mulheres emancipadas... um horror!!

A partir daí, a supremacia política e militar dos EUA no “mundo ocidental” subalterniza a Inglaterra e tal é compreendido por Portugal que se apresenta como fundador da NATO, em 1949. Salazar fez essa opção mais como necessidade de legitimação e salvaguarda do regime fascista do que por fidelidade à aliança com a Inglaterra, também fundadora da sublime instituição militar ou, por reação a qualquer ameaça soviética.

Contudo, a Inglaterra continua a ser bem mais importante que os EUA a nível das relações económicas. E Salazar até prescinde de apoios norte-americanos no âmbito do Plano Marshall.

4 - Mudança de agulha -  a subalternidade dentro da UE

No seguimento da criação da CEE a partir de 1958, com a recusa da Inglaterra em participar, esta decide criar a EFTA (1960) para unir países da Escandinávia, Portugal e a Suiça numa pauta aduaneira comum. Portugal não tinha outra solução dada a relação comercial com a Inglaterra e porque, razões de ordem económica e política (o caráter fascista do regime, particularmente) impediam um ingresso na CEE.

A Inglaterra, quando se apercebeu que a questão da CEE tinha uma dinâmica superior à das relações com a Commonwealth, entabulou negociações para a sua adesão, vetada pela França em 1963 e 1967. A saída de de Gaulle em abril de 1969 permite o reinício dos trabalhos de adesão da Inglaterra à CEE, o que se vem a concretizar a partir de 1973. Impossibilitado de seguir fiel e integralmente a Inglaterra, devido à natureza fascista do regime e ao envolvimento numa guerra colonial em três frentes, Portugal teve de se limitar a um acordo comercial com a CEE, em 1972.

O reforço do número de membros da CEE (nove, desde 1973), a sua pujança económica, a presença ali de centenas de milhar de emigrantes portugueses, a maior concentração das relações comerciais com aquele bloco após esse alargamento, a redução do papel económico das colónias que, pelo contrário, se tornavam de manutenção problemática, do ponto de vista económico, político, militar e diplomático, constituem factores novos que precipitaram um realinhamento geopolítico de Portugal, já não polarizado em torno da Inglaterra e na relação colonial com África.

Esses são vários dos elementos que facilitaram a queda do regime fascista, a descolonização e a instituição de um regime político aceitável no quadro europeu, com o apoio das forças políticas do PS para a direita e dos meios empresariais; sobretudo depois do contra-golpe militar de 25 de novembro de 1975 que abafou as sementes da revolta popular.

O pedido de adesão à CEE foi feito em 1977, no contexto de dificuldades com deficits externos que conduziram a duas intervenções do FMI naquele ano e em 1983 que demonstraram a fragilidade do capitalismo português, para mais num contexto em que a Espanha havia saído do fascismo e procurava também ingressar na CEE. As ajudas de pré-adesão para Portugal (100 M de ecus em 1980 e 50M em 1984) surgiram como um aperitivo bem apaladado para o empresariato português. É curioso observar-se o modo grotesco como o governo português pretendeu mostrar a singularidade lusa no contexto europeu e ibérico, procurando uma formal adesão à CEE prévia e separada da de Espanha, mais atrasada nas negociações. Ainda não haviam percebido que Portugal, para os capitalistas globais, como para os burocratas de Bruxelas é apenas uma região da Ibéria.

Essa mudança geopolítica – integração na CEE - veio a concretizar-se em 1986, tendo a subalternidade do país face ao (efémero) eixo franco-alemão sido cimentada com fundos comunitários subsequentes para a “modernização” de Portugal. Através do PS de Soares, o PSF (Mitterrand) e o SPD alemão assumiram maior protagonismo em Portugal, os últimos financiando o PS desde 1973 (fundação) ou com a criação da UGT. Nesses anos de início da década de 80 o PSD, fiel a um atlantismo salazarento, ainda se mostrava alinhado com Reagan e Wojtyla num evento com velas acesas, contra o golpe militar de Jaruszelsky na Polónia. A Inglaterra ficava, decididamente para trás, largamente ultrapassada na sua importância no âmbito do comércio externo e do investimento externo.

No contexto desta redefinição estratégica da inserção subalterna de Portugal no mundo, há desenvolvimentos posteriores que, de facto, tendem a anular o papel das fronteiras como delimitadores das soberanias. Em 1985, os países do Benelux, com a França e a Alemanha assinaram o Acordo de Schengen, seguidos da maioria dos restantes, para agilizarem o “mercado de trabalho” e controlar a emigração. Em 1987 surge o Acto Único definido por Delors como “…a obrigação de realizar simultaneamente o grande mercado sem fronteiras e também, a coesão económica e social, uma política europeia de investigação e tecnologia, o reforço do Sistema Monetário Europeu, o começo de um espaço social europeu e de acções significativas em relação ao meio ambiente".

O Acto Único é detalhado e aprofundado no Tratado da União Europeia (Maastricht, 1992) apontando para reformas da Política Agrícola Comum (PAC) e dos fundos comunitários, estes últimos causadores do brilhozinho nos olhos de políticos e empresários portugueses e fecundo antro da corrupção. O Fundo de Coesão visava particularmente as redes transeuropeias de transportes, essenciais para suportar o comércio; e Portugal caraterizou-se por uma total preferência pelo modo rodoviário, atrofiando a rede ferroviária e jamais arrancando com as chamadas “autoestradas marítimas” como seria lógico para um país periférico, com longas distâncias a percorrer nos seus fluxos externos (exceptuando de/para Espanha), com bons portos, etc. De facto, estradas e auto-estradas preenchem uma política de betão, enriquecendo as empresas de construção do regime que absorvem os fundos comunitários, não se esquecendo, gratos, de financiar os partidos no poder e alguns mandarins rapidamente transformados em investidores de milhões, surgidos do nada ou patrocinados pelo generoso “mecenato” do BPN, criado em 1993.

Enquanto na Lusolândia se festejava o crescente valor diário dos milhões que entravam de ajudas comunitárias, o grande capital europeu urdia a teia da satelitização total dos pobres ou pequenos países, mormente do sul, recém-entrados diretamente destinados para constituírem uma periferia.

Na especialização dentro do espaço europeu com doze sócios, havia alguns, muito minoritários, sem direito a ações privilegiadas, como convém em grandes consórcios capitalistas, como a UE. Aos grandes caberia o projeto e a decisão, a venda para o mercado global de maquinaria, equipamentos, química fina, material de transporte e conhecimento, tudo com incorporação de alto valor acrescentado, competindo à periferia (então restrita ao sul) vender sol e praia, têxteis, calçado e espaço para eucalipto, negócios desconexos para exportação, que nem sequer densificam a matriz das relações inter-industriais e que se cruzam com baixos salários, baixo valor acrescentado ou danos ambientais. Seria injusto deixar de fazer aqui uma menção ao elemento mais nocivo que governou Portugal, no século XX: Aníbal Cavaco Silva. Só superado por Salazar.

O componente central do Acto Único é a UEM – União Económica e Monetária, assim como é significativo o maior relevo dado à decisão por maioria e, já não por unanimidade; também ali se define o alargamento das competências comunitárias a novas áreas – ambiente, redes transeuropeias, políticas de transportes, educativas, proteção do consumidor, I&D, política industrial, económica e monetária, política externa e de segurança comum (PESC) e a criação da Europol.

A UEM propõe-se ter uma concretização faseada. Até final de 1993, a total liberalização dos movimentos de capitais, a peça ideológica fulcral no pensamento liberal e da financiarização; depois, até ao fim de 1998 a aplicação dos célebres critérios de convergência (ver abaixo); e, finalmente, a partir de 1999 o parto dos gémeos uterinos, o euro e o BCE, este tendo como único objetivo o controlo da inflação, como determinado pela Alemanha, em atenção à sua experiência dos anos 20 mas, sobretudo, porque a inflação não convém nada a um sistema financeiro sobredimensionado dado que a erosão do poder aquisitivo da moeda desvaloriza o rendimento dos credores e beneficia os devedores.

Os critérios de convergência, ou de Maastricht foram, sumariamente:
  • Inflação que não supere em mais de 1.5% a média dos três estados com os mais baixos indicadores;
  • Deficit orçamental não superior a 3% do PIB
  • Dívida pública não superior a 60% do PIB
  • Participação no SME - Sistema Monetário Europeu, substituído na terceira fase por um MTC – Mecanismo de Taxas de Câmbio;
  • Taxa de juro de longo prazo que não supere em mais de 2% a média observada nos três países com menor inflação.
A PESC continha no Tratado de Masstricht um compromisso de defesa comum que veio a ser desenvolvido no Tratado de Lisboa, sem que se tenha perdido a habitual subordinação à NATO e ao Pentágono, no capítulo da estratégia planetária, que a UE nunca teve.

O fama de um Portugal como bom aluno nasceu do cumprimento de Maastricht, atapetado com a entrada de fundos comunitários, com a construção de infraestruturas (auto-estradas, Expo/98, Ponte Vasco da Gama…) que não evitaram o aumento do desemprego, privatizações para abate da dívida pública e desvalorizações do escudo mais ou menos paralelas com as da peseta, com a aproximação das taxas de juro a longo prazo das taxas alemãs.


19911998

PortugalUE 15PortugalUE 15
PIB per capita (UE=100)64,4100,074,8100,0
PIB (% var. real)2,31,73,52,7
Inflação - consumo privado (%)12,25,81,81,7
Desemprego (%)4,08,15,29,9
Deficit Bal. Trans. Corr. (% PIB)-0,9-1,2-4,70,9
Deficit Estado (% PIB)5,94,22,11,5
Dívida pública bruta (% PIB) 65,955,256,569,0
         Fonte: DA ADESÃO À COMUNIDADE EUROPEIA À PARTICIPAÇÃO na UEM - A EXPERIÊNCIA PORTUGUESA
                  DE DESINFLAÇÃO NO PERÍODO 1984-1998 – Marta Abreu

Esta melhoria global do enquadramento externo resultava também de Portugal ser o mais pobre dos países da Comunidade, onde os salários eram mais baixos; e a adesão, em 1995 de países de rendimento elevado – Áustria, Finlândia e Suécia só veio acentuar essa situação; a Suiça, por referendo ficou de fora. A estabilidade cambial, a ausência de conflitualidade social (construída na corporativa Concertação Social), o acesso barato ao crédito e proteção da pauta aduaneira comunitária face a países terceiros contribuíram para aqueles resultados, mesmo num contexto de ausência de meios para o exercício da política económica, delegados em instituições comunitárias.

Essas caraterísticas facilitaram, a partir de meados da década de 90 um enorme aumento do crédito, em grande parte obtido no exterior e que se distribuiu a partir do sistema bancário, pelos sectores da construção, do imobiliário, das obras públicas (em processo de hipertrofia) e das famílias, que encontravam através dessa via a resolução do problema da habitação, área onde a ausência de políticas públicas se mostrou estrutural. Pelo caminho, também havia dinheiro desviado para autarcas e seus partidos, por conta de facilidades nos loteamentos, fornecidas a muitos dos chamados empresários que largaram as suas atividades para se dedicarem ao imobiliário[2]. Claro que a situação, bem evidenciada no gráfico, tinha de conduzir, de per si, a um desastre, como se assiste.
                                                                         Fonte primária: Banco de Portugal
"[...].

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Fev. 2014