«A história do sionismo é um debate permanente, fora e dentro do judaísmo, que revela, segundo o autor, as questões nunca solucionadas que estão na base da edificação do Estado de Israel e deram origem a uma radicalização do conflito israelo-árabe.
O proto-sionismo do século XIX foi um ideal que tornou possível a edificação de um Estado judaico. Na sua dimensão política – muitas vezes em divergência com o plano cultural e o religioso - o sionismo cumpriu-se com a proclamação do Estado de Israel em 1948, na sequência da resolução da ONU que consagrava a criação de dois Estados, um judeu e outro árabe palestiniano. O não cumprimento desta resolução – a par da expansão territorial que resulta em formas coloniais de expulsão e de repressão – tornou-se um argumento usado para pôr em causa a legitimidade de Israel.
Em síntese, eram estes os princípios fundamentais do sionismo das origens: resgatar o povo judeu de uma história de humilhação e perseguição (que viria a culminar no extermínio como “solução final”), possibilitando aos judeus da diáspora serem acolhidos como cidadãos desse Estado; conceder aos Judeus um território de pertença nacional ao qual eles estavam ligados pela história, pela memória e pelo mito, de modo a reconstruir aí uma comunidade baseada em princípios culturais e religiosos que no exílio tinham sido reprimidos ou aniquilados; construir uma sociedade justa e democrática, fundada em valores que, em muitos aspectos, estavam em ruptura com a sociedade capitalista (não esqueçamos que o movimento sionista teve origem em duas típicas ideologias políticas do século XIX, que hoje parecem contraditórias: o nacionalismo e o socialismo). Mas os ideais do sionismo dissolveram-se ou, pelo menos, têm sido submetidos a muitas interrogações. Um povo que se constitui como nação, uma nação que se organiza como Estado, um Estado que reclama um predicado étnico e/ou religioso - “judeu” - implantado num território que se quer identificado com a ancestralidade bíblica da “Terra de Israel”: tudo isto é mais do que suficiente para que o sionismo se tenha transformado em ideologia (e o anti-sionismo se tenha reconfigurado à sua imagem) e a questão de Israel, a sua legitimação histórico-político-jurídica, seja motivo de disputas intelectuais exacerbadas.
O grande teórico do sionismo político foi o austríaco Theodor Herzl, que publicou em 1896 o livro-panfleto O Estado dos Judeus (Der Judenstaat), com o qual apelava a uma acção política de grande alcance, mobilizadora do movimento sionista internacional: fundar uma pátria onde os Judeus poderiam ser acolhidos e ficar a salvo do “eterno anti-semitismo”. Como explicou Hannah Arendt, esta ideia de um anti-semitismo eterno (simétrico do “judeu eterno”) teve como consequência a incapacidade dos Judeus de apreender a diferença existente entre a oposição dos Árabes a um Estado judeu e o anti-semitismo europeu moderno. Ou então, como afirma outra judia, Judith Butler, essa indistinção passou a ser praticada estrategicamente pelos sionistas, como recurso retórico. O projecto sionista causou sempre resistência nalguns sectores judaicos, tanto naqueles, laicos ou religiosos, que entendiam o sionismo como um movimento cultural e não político, como da parte dos ortodoxos, que achavam que era preciso esperar pelo Messias e não trazer o que era da ordem da intervenção divina para o plano político da história profana. E também grandes teólogos e filósofos judaicos, não ortodoxos, se mostraram reticentes. É o caso de duas figuras eminentes do judaísmo, na Alemanha, os filósofos e teólogos Martin Buber (1878-1965; austríaco de nascimento) e Franz Rosensweig (1886-1929), que trabalharam em conjunto numa tradução da Bíblia para a língua alemã. O primeiro achava que os fins do sionismo político pervertiam o espírito do sionismo cultural. Por isso, ele e muitos membros da organização a que pertencia contestaram a legitimidade da declaração da soberania política de Israel como estado judaico, feita por Ben-Gurion em 1948. Rosensweig, por seu lado, via no sionismo uma forma laicizada do messianismo que tendia a privar o judaísmo da sua identidade religiosa e a normalizá-lo, através da reterritorialização e politização num Estado. Mais perto de nós, George Steiner representa uma terceira posição anti-sionista no interior do judaísmo: a do cosmopolitismo e universalidade que requerem a diáspora.
Para percebermos as razões e contradições do projecto
sionista, assim como o seu aspecto poligonal, é imprescindível ler os
escritos autobiográficos, alguma correspondência, as entrevistas e os
artigos sobre Israel e o sionismo de Gershom Scholem (1897-1982), dado
que se trata de um dos maiores intelectuais judeus do século XX e um
“fundador”, de tal modo que as suas posições e intervenções ganharam um
valor doutrinário e paradigmático, iluminando aquilo que a ideologia e
as contingências de uma guerra sem solução entretanto obscureceram. Este
berlinense de uma família judia completamente integrada e desligada da
tradição (grande amigo, desde jovem, de Walter Benjamin, a quem tentou,
em vão, aproximar das teses sionistas) emigrou para a Palestina em 1923 e
tornou-se o maior estudioso da Cabala e da mística judaica. A sua
decisão de emigrar para a Palestina, que ele justificou como sendo de
ordem moral, isto é, ditada pelo imperativo de “renovar o judaísmo” e
“edificar uma sociedade judaica”, teve a veemente oposição da família,
que nunca viu com bons olhos a ligação do jovem Gerhard (na Palestina
passou a chamar-se Gershom) aos círculos semitas de estudantes, quando
estudava Matemática, na Universidade. Scholem instalou-se em Jerusalém
porque tinha a esperança de que o sionismo – aquele em que acreditava,
que ele dizia ser um “sionismo prático”, não messiânico, em que o lado
político contava pouco ou, pelo menos, não era essencial – iria fazer
renascer o judaísmo do seu interior. O renascimento e a renovação do
judaísmo - que ele entendia como algo em movimento, em metamorfose -
eram a sua principal motivação pois considerava que a diáspora o tinha
conduzido a um “estado de morte clínica” e que só lá, na “Terra de
Israel”, é que poderia reencontrar vida. Para ele, o judaísmo era algo
vivo, destinado a transformar-se e impossível de ser encerrado numa
definição dogmática. O sionismo devia então corresponder a esta
necessidade de renascimento. A resistência de Scholem ao ambiente em que
cresceu e foi educado e, depois, a sua partida para a Palestina foi uma
reacção à assimilação judaico-alemã, em que ele não acreditava,
considerando-a uma farsa. Para percebermos como a sua adesão ao sionismo
perturba os quadros actuais de entendimento político-ideológico do
fenómeno, devemos dizer que Scholem, na sua juventude, fazia parte da
ala radical sionista mais à esquerda, o que significa – afirmou ele numa
entrevista – “que nunca teria considerado como sionista alguém que não
tivesse querido emigrar para a Palestina”. Até ao fim da vida, Scholem
considerou-se um anarquista. E, numa entrevista, sublinhou que “uma
grande parte dos representantes da edificação de Israel é o movimento
operário e os seus representantes que fizeram o verdadeiro trabalho”.
Como
é que ele encarou o problema do conflito entre judeus e árabes? Desde o
início, isto é, desde a primeira vaga de emigração, nos anos 20 do
século passado, conta Scholem, houve uma consciência desse problema e
ele foi colocado pelos próprios sionistas. Mas a evolução, diz ele, era
difícil de prever e “nós pensávamos que era possível ter uma discussão
com os Árabes sem pôr em causa a paz, graças a um compromisso recíproco,
uma interpenetração dos universos judeu e árabe”. A intenção inicial
(pelo menos anterior a 1920), não era a de construir um Estado judaico,
pensava-se antes numa sociedade mista. Porém, a partir de 1922, os
revisionistas – como ficou conhecido um grupo no interior do movimento
sionista – começaram a insistir num Estado nacional, recusando-se a
aceitar uma mera “pátria nacional”. Em 1936, em plena segunda vaga de
emigração de judeus para a Palestina, já não a dos idealistas dos anos
de 1920 (a daqueles que, como Scholem, se consideravam a vanguarda do
povo judeu), mas uma outra, iniciada na década seguinte, quando Hitler
chegou ao poder, as tensões começaram a manifestar-se e a questão da
edificação de um Estado começou a emergir com força. Foi então que
Scholem percebeu que estava no centro de um grande problema histórico e
que o sionismo não poderia ter a pretensão de ser a definitiva solução
para o “problema judaico”. Em nenhum momento se refere à expulsão
inicial de cerca de 800.000 palestinianos, mas em 1967 foi um dos sete
primeiros professores da Universidade Hebraica de Jerusalém a assinar
uma declaração contra a anexação da Cisjordânia e a manifestar o receio
de que Israel se tornasse um gueto armado. E afirmou por várias vezes:
“O ódio que têm por nós os Árabes não se assemelha ao ódio de Hitler,
tem o seu fundamento num interesse real que nós lesámos”.
Reconhecendo
muito embora as razões do lado árabe (ou melhor, considerando válidos e
incontestáveis os argumentos de ambas as partes) e consciente de que
era preciso encontrar uma forma de coexistência que o sionismo político
tornava cada vez mais difícil, Scholem nunca renunciou à sua ideia de
que o povo judeu tinha direito à “Terra de Israel” e de que sem sionismo
não havia, para este povo, existência possível. Como podemos perceber,
ele acreditava profundamente no povo judeu, isto é, na persistência de
uma tradição nunca interrompida e presente de maneira muito viva durante
toda a história de um exílio com mais de dois mil anos. Daí, a
afirmação de que “a história dos Judeus foi a história da Bíblia e não a
dos países onde eles viviam” e a de que há uma memória que está na base
de uma “relação sentimental” com a Palestina e que funda um direito:
“Aquele que se lembra, tem um direito”, disse Scholem citando Chaim
Weizmann, primeiro presidente de Israel.
Sabemos como a reclamação
da anterioridade bíblica passou a valer, no que diz respeito ao
território, como título de propriedade. Ao mesmo tempo, ela instala a
palavra “judeu” numa transcendência a-histórica e a comunidade judaica
numa dimensão de eternidade. São precisamente estes axiomas – e as
consequências que eles têm tido ao legitimarem a percepção de Israel de
que há uma superioridade do seu direito, um “direito eterno” sobre o
território designado pela imagem bíblica de “Terra de Israel” - que um
historiador judeu da Universidade de Telavive, chamado Shlomo Sand,
refuta num livro que desencadeou uma enorme polémica, publicado em 2008,
com um título que vale quase como um manifesto (e citamo-lo na
tradução francesa): Comment le peuple juif fut inventé. De la Bible au sionisme.
A tese de Shlomo Sand é a de que essa entidade chamada “povo judeu” é
um mito e uma construção ideológica, já que – argumenta ele longamente –
não existe qualquer continuidade de sangue ou de modo de vida, nenhuma
“unidade eterna”, entre a comunidade judaica e a nação de Israel, pelo
que os Judeus, enquanto sujeito histórico, são uma ficção. Assim, diz
Sand, afirmando-se Israel como o Estado dos Judeus de todo o mundo que
decidam “regressar” (palavra que pressupõe que aquela é sua “terra
ancestral”) e não como o de todos os cidadãos que lá vivem, estes
descendentes imaginários de um ethnos detêm imediatamente privilégios que não são concedidos a muitos dos que vivem no território e se exprimem na língua oficial.
Relativamente
às questões do sionismo, Scholem esteve quase sempre numa posição
oposta à da sua amiga Hannah Arendt, que foi certamente a mais
importante crítica do sionismo, muito especialmente do sionismo
político. Um episódio significativo dessa divergência foi uma dura
discussão epistolar entre ambos, em 1963, pouco tempo depois de ter sido
publicado Eichmann em Jerusalém, que custou a Hannah Arendt
uma grande hostilidade dos meios intelectuais judaicos. Scholem também
contesta as teses de Arendt e as acusações que ela faz aos dirigentes
judeus, imputando-lhes responsabilidades no Holocausto, e a certa altura
escreve-lhe o seguinte: “Na tradição judaica existe um conceito,
difícil de definir e, no entanto, bastante concreto, que se chama Ahabath Israel:
‘o amor pelo povo hebraico...’ Em ti, cara Hannah, não encontro
vestígios dele”. Ao que a judia Hannah Arendt lhe respondeu: “Tens toda a
razão, não me sinto animada por nenhum ‘amor’ desse género: na minha
vida, nunca ‘amei’ nenhum povo ou colectividade. Amo ‘apenas’ os meus
amigos e a única espécie de amor que conheço e em que acredito é o amor
pelas pessoas”.
Hannah Arendt formulou, com grande peso, as razões
pelas quais considerava que a fundação do Estado de Israel era
ilegítima. Tentemos resumi-las: 1º) o sionismo trouxe consigo uma
ideologia, uma Weltanschauung que, no fundo, ambiciona fornecer
chaves de leitura da história; 2º) o sionismo ignora conscientemente
toda a crítica ao Estado-nação (crítica que é central nas teorias
políticas de H. Arendt sobre a modernidade); 3º) Israel não deveria ser
um Estado judaico e todos os esforços para legitimar as suas
reivindicações territoriais deram sempre origem à violência de Estado e a
formas racistas de colonização; 4º) o objectivo de fundar um Estado
judaico “como a França é francesa e a Inglaterra é inglesa” (Chaim
Weizmann) só poderia ter como resultado “uma Esparta moderna, uma nação
de dois milhões e meio de ‘iguais’ que reina sobre dois milhões de
hilotas”; 5º) Só a loucura, escreve Arendt em Repensar o Sionismo,
poderia “induzir a escolher uma política que confia na protecção de uma
potência imperial longínqua e aliena os vizinhos”, deixando-lhes “a
possibilidade de escolher entre a emigração voluntária e uma cidadania
de segunda classe”; 6º) A guerra entre Israel e o mundo árabe não é uma
guerra normal entre Estados, mas um enfrentamento entre dois grandes
movimentos nacionais, entre dois povos que se combatem pela mesma terra,
pelo que só pode encontrar solução no recíproco reconhecimento das duas
partes.
Em suma: a constituição de um Estado judaico, nas
condições em que foi realizada, representou para H. Arendt a derrocada
de muitas esperanças e as suas posições são hoje reivindicadas por
sectores pós-sionistas (que os sionistas dirão antes anti-sionistas) que
defendem um Estado binacional (Arendt foi explícita nesta defesa, em
1947: um Estado binacional regido com base federal), onde seja possível a
co-habitação, que Edward Said entendia como “convergência de exílios”.
Uma ilustre representante do pós-sionismo é a filósofa americana, também
judia, Judith Butler, bem conhecida na Europa e em todo o mundo pelas
suas teorias do género. As suas críticas visam, antes de mais, aquilo
que ela designa como “a violência de Estado e as modalidades coloniais
de expulsão e de repressão”. Como observou o professor de ciência
política da Universidade de Telavive, Amal Jamal, uma das trágicas
contradições de Israel é o facto de ter suscitado novamente o conceito
de má memória que os judeus conheceram bem, enquanto vítimas: o conceito
de Lebensraum, de espaço vital, agora encarnado nas políticas
sionistas do território. Butler procura demonstrar que é possível fazer
essas críticas no interior de uma tradição judaica e que é preciso
contestar a equação que assimila as críticas a Israel ao anti-semitismo e
ao anti-judaísmo. A sua perspectiva crítica, muito baseada em Hannah
Arendt, pretende retirar ao sionismo o controle sobre o judaísmo, “em
nome do qual Israel pretende falar”. Para romper com essa identificação,
Butler trabalha antes com o conceito de “judeicidade”, como categoria
cultural, histórica e política, que vai buscar a Hannah Arendt. Butler
visa, assim, pôr em discussão o direito do Estado de Israel de falar em
nome dos valores judeus ou até do povo judeu; e sobretudo não deixar que
se ratifique uma equação histórica que diz que ser judeu é ser
sionista.
A dessionização de Israel, a separação da religião e do
Estado, é um programa que já foi proposto por alguns críticos judeus do
sionismo, que entendem que na base do problema e da guerra sem solução
está o facto de o Estado ter sido fundado sobre um direito de sangue,
reivindicando-se como “Estado judaico”, o que é pelo menos cinquenta por
cento incompatível com uma moderna democracia liberal, se aceitarmos
que é acertada a fórmula que um político israelita opositor do regime
encontrou para o definir: “um Estado democrático para os Judeus e judeu
para os Árabes”. Uma outra divisão cheia de consequências – das muitas
com que o sionismo e o Estado de Israel têm sido obrigados a
confrontar-se - foi uma vez formulada por Hannah Arendt: “Na Palestina
temos uma nação judaica, na diáspora um povo judeu”.»