sexta-feira, 23 de julho de 2010

Mitos sobre as pensões em Espanha

Dr Ros Altmann, pensions campaigner, with pens...Image via Wikipedia


António Campos




Este artigo critica várias posturas amplamente promovidas em centros políticos, empresariais e mediáticos segundo as quais Espanha gasta demasiado nos idosos e muito pouco nas crianças, e isso como consequência da “excessiva” influência política do lóbi das pessoas de idade. O artigo apresenta dados que mostram o erro dessas posturas, documentando que o Estado (central, autonómico e local) gasta muito pouco em idosos e em crianças, e isso como resultado do enorme poder das classes e grupos dominantes que não contribuem para o Estado nos níveis dos seus homólogos na UE-15.

Na sequência do congelamento das pensões públicas por parte do Governo de Zapatero, houve um reavivamento de argumentos sobre as pensões por parte de vozes neoliberais que, como consequência das grandes caixas de ressonância de que gozam nos maiores meios de informação e persuasão do país, estão a fazer sucesso nos establishments políticos e mediáticos. Um destes argumentos é que o suposto poder eleitoral dos idosos (o grupo populacional que mais participa nos processos eleitorais) determinou um grande aumento da despesa pública dedicada aos idosos (incluindo a despesa em pensões e serviços públicos, como serviços de cuidados às pessoas com dependências), à custa da despesa pública dedicada a outros grupos de idade, como as crianças. Neste argumento, a luta de classes foi substituída pela luta entre grupos geracionais, na qual os idosos estariam a conseguir grandes benefícios sociais à custa dos direitos das crianças, entre outros. Como prova disso, tais autores referem-se à diminuição da pobreza que, supostamente, ocorreu entre os idosos durante estes últimos anos, o que contrasta com o crescimento da pobreza entre as crianças.

Os dados, no entanto, não sustentam tais teses neoliberais. Segundo a última informação publicada pelo Eurostat, a Agência de Estatística da União Europeia, a maior percentagem de pobres na população espanhola continua a ser (28%) maior entre os idosos que entre crianças (24%). A Espanha, por certo, é o país da UE-15 (o grupo de países de desenvolvimento económico semelhante ao nosso) que tem maior pobreza entre os idosos (a média na UE-15 é de 15%), e também entre as crianças. Não é, pois, que Espanha gaste muito em idosos e pouco em crianças. Na realidade, gasta muito pouco (menos que em toda a UE-15) em idosos, em crianças e em todos os grupos etários. E isso deve-se ao enorme poder do capital e das classes abastadas (30% da população – burguesia, pequena burguesia e classes profissionais de renda média-alta), que não estão a contribuir para o Estado nas mesmas percentagens que o fazem os seus homólogos na UE-15. As rendas do capital e as rendas superiores estão entre as menos agravadas na UE-15, motivo para que os ingressos no estado estejam entre os mais baixos da UE-15.

É a excessiva influência política e mediática de tais grupos sociais que explica que idosos e crianças (e todos os demais) tenham menos transferências e serviços públicos que os seus homólogos na UE-15. O Governo de Zapatero, que fez sua aquela palavra de ordem neoliberal de que “baixar impostos é de esquerda”, cortou gastos sociais (pensões e serviços domiciliários), que são a todos os títulos insuficientes, em lugar de subir impostos às classes abastadas. Na realidade, a poupança que se tenta conseguir congelando as pensões é inclusive menor que a quantidade de fundos que o Estado deixou de ingressar como consequência da diminuição do imposto sobre o património que favoreceu as rendas superiores.

Outro mito neoliberal reproduzido nos meios de comunicação é que a pobreza entre os idosos foi diminuindo como resultado do aumento das pensões e de outras transferências e serviços aos idosos, consequência de um consenso supostamente existente entre os partidos parlamentares de não permitir que a capacidade aquisitiva dos idosos diminua. De novo, os dados mostram o erro de tais pressupostos. A redução da despesa pública social que ocorreu em Espanha (em relação à média da UE-15) durante o período 1993-2004 a fim de reduzir o déficit do orçamento do Estado (condição necessária para que Espanha ingressasse na zona euro [1], afectou o total da despesa pública social dedicada aos idosos e a sua taxa de pobreza. Segundo o Eurostat, o nível de pobreza entre idosas em Espanha passou de 15% em 1995 para 32% em 2004, e entre idosos passou de 16% para 27% durante o mesmo período. Posto que foi o PP o partido que governou Espanha durante a maioria deste período, carece de credibilidade agora, quando se apresenta como o grande defensor dos idosos e idosas. O seu historial não avaliza tal proclamação. Essa pobreza desceu ligeiramente no período de Zapatero, passando de 32% em 2004 para 30% em 2008 (último ano em que o Eurostat publica tais dados) entre as idosas, e de 27% para 25% entre os idosos. Os recentes cortes de fundos públicos sociais reverterão estes números, aumentando a pobreza entre os pensionistas (e isso mesmo quando se conservem os aumentos das pensões mais baixas).

Todos estes dados mostram que a entrada então e a permanência agora de Espanha na zona euro fez-se e continua a fazer-se à custa de um grande atraso na correcção do déficit de despesa pública por habitante em todos os grupos etários, incluindo idosos, entre Espanha e a UE-15. O déficit de tal despesa em idosos por habitante subiu de 569 para 816 euros de 1995 a 2004. Na realidade, o facto de as pensões serem corrigidas segundo a inflação, e não segundo o crescimento médio dos salários (como se faz em muitos países da UE-15), explica que o nível de vida dos idosos tenha diminuído em comparação não só com o resto da sociedade, mas com o resto da UE-15. Mais, o Estado (tanto central como autonómico e local) espanhol é o menos redistributivo por classe social da UE-15, com o que o seu impacto redutor da pobreza entre os idosos é muito limitado, passando de 31% de todos os idosos (antes de incidirem as instituições públicas – impostos e transferências) para 28%, comparado com a Suécia (o país que historicamente teve uma esquerda mais forte na Europa), que passa de 26% para 11%. Não se trata, pois, de uma luta geracional, mas de uma luta de classes ganha diariamente pelos rendimentos superiores que explica esta situação.


[1] Ver o meu artigo España social a la cola de la UE, Público, 27/05/2010.
Vicenç Navarro





Enhanced by Zemanta

terça-feira, 20 de julho de 2010

Desemprego aumenta mas apoio aos desempregados diminuiu e destruição de emprego continua...

certificate of unemploymentImage by Sonya >> 搜你丫 via Flickr


António Campos





Segundo o INE, o desemprego oficial e o efectivo continuam a aumentar em Portugal de uma forma significativa. No 1º trimestre de 2010, o número oficial de desempregados atingiu 592,2 mil, e a taxa oficial de desemprego alcançou 10,6%. Mas o número efectivo de desempregados, também calculado com base em dados publicados pelo INE, atingiu 729,3 mil, e a taxa de desemprego efectiva subiu para 13%, o valor mais elevado verificado depois do 25 de Abril.

Sócrates, durante a entrevista que deu à RTP em 18.5.2010, procurando desvalorizar a gravidade do problema social que aqueles números revelavam, afirmou que o desemprego registado (desempregados inscritos nos Centros de Emprego) tinha diminuído em Abril de 2010 (–986), o que mostrava, segundo ele, que a situação não era assim tão grave. No entanto, por ignorância ou para enganar os portugueses, esqueceu-se de dizer o seguinte. Em 1 de Janeiro de 2010 existiam inscritos nos Centros de Emprego, segundo o IEFP, 524.674 desempregados. Entre 1 de Janeiro e 30 de Abril de 2010, inscreveram-se nos Centros de Emprego mais 252.806 novos desempregados. Durante o mesmo período, os Centros de Emprego só conseguiram arranjar emprego para 21.007 desempregados. Se somarmos aos que estavam inscritos nos Centros de Emprego em 1.1.2010 – 524.674 – os que se inscreveram durante os primeiros 4 meses de 2010 – 252.806 – obtém-se 777.480. E se a este total retiramos todos a quem os Centros de Emprego arranjaram emprego – 21.007 – ainda ficam 756.473 . No entanto, o número de desempregados registados nos Centros de Emprego que o IEFP divulgou em 30 de Abril de 2010 foi apenas de 570.768. É evidente que o IEFP, para obter este total, utilizado pelo 1º ministro na entrevista à RTP, teve de eliminar dos seus ficheiros 185.705 desempregados. E a situação é grave porque o IEFP procura ocultar tal facto, assim como também a falta de consistência dos números que divulga para avaliar o desemprego, continuando a recusar divulgar, na Informação Mensal que publica, as razões da “limpeza” que todos os meses faz nos ficheiros de desempregados.

O desemprego tanto oficial como efectivo está a aumentar bastante. Apesar disso, o apoio aos desempregados está a diminuir em Portugal. Segundo dados divulgados pela Segurança Social, que é a entidade que paga o subsídio de desemprego, o número de desempregados a receber subsídio de desemprego diminuiu entre o 4º trimestre de 2009 e o 1º trimestre de 2010, pois passou de 360,2 mil para 359,9 mil. Mas entre Fevereiro e Março de 2010, diminuiu de 373,2 mil para 359,9 mil. Como consequência, a taxa de cobertura do subsídio de desemprego em Portugal desceu, entre o 4º trimestre de 2009 e o 1º trimestre de 2010, de 63,9% para 60,8% (se se considerar o desemprego oficial) e de 51,2% para 49,3% (se se considerar o desemprego efectivo). Como se tudo isto já não fosse suficiente, o governo pretende alterar a lei do subsídio de desemprego, para reduzir ainda mais o número de desempregados que ainda recebem o subsídio de desemprego, com o falso argumento de que os desempregados não querem trabalhar.

Mas como se pode dizer isso, e afirmar que não é difícil arranjar emprego em Portugal, quando se continua a destruir a um ritmo elevado o pouco emprego existente, como revelam também os dados do INE? Entre o 2º trimestre de 2008 e o 1º trimestre de 2010, foram destruídos em Portugal 219,4 mil postos de trabalho. Apesar desta tão elevada destruição de emprego, o que torna cada vez mais difícil arranjar trabalho em Portugal, o governo, dando satisfação às exigências do patronato, que pretende ter mão de obra ainda mais barata, com salários de miséria e sem respeito por qualquer horário de trabalho, para perpetuar assim o modelo de baixos salários e aumentar a exploração dos trabalhadores, aprovou uma proposta de lei, que vai agora para a Assembleia da República, que estabelece que o subsídio de desemprego não poderá ser superior a 75% do salário líquido que o trabalhador recebia no período anterior ao despedimento (este salário líquido é calculado, de acordo com a proposta do governo, deduzindo ao salário ilíquido os 11% para a Segurança Social mais a taxa de retenção de IRS), sendo depois o desempregado obrigado a aceitar qualquer emprego desde que uma entidade patronal ofereça um salário ilíquido que seja superior ao subsídio de desemprego mais 10% (tenha-se presente que o subsídio de desemprego é inferior a 75% do salário líquido recebido pelo trabalhador no emprego anterior). E isto durante o primeiro ano, porque ao fim de 12 meses de desemprego o trabalhador é obrigado a aceitar o emprego desde que o salário ilíquido oferecido seja igual ao valor do subsídio de desemprego, em qualquer actividade, podendo ser numa profissão que nunca teve, sob pena de perder o direito ao subsídio de desemprego. É este um dos resultados do “tango” Sócrates/Passos Coelho.

O Instituto Nacional de Estatística (INE) acabou de publicar os dados do desemprego referentes ao 1º trimestre de 2010. E eles revelam um crescimento acentuado e contínuo do desemprego, atingindo um valor nunca antes registado depois do 25 de Abril. No 1º trimestre de 2010, pela primeira vez depois do 25 de Abril, o desemprego oficial atingiu 592,2 mil, e a taxa de desemprego oficial 10,6%. E o desemprego efectivo, que inclui também todos os desempregados que não são incluídos no desemprego oficial, apesar de estarem efectivamente no desemprego (inactivos disponíveis mais subemprego visível) sobe para 729,3 mil e a taxa de desemprego efectiva aumenta para 13%. E esta realidade, que é socialmente inaceitável, ainda se vai agravar mais com as medidas aprovadas pelo governo e pelo PSD, que são recessivas. Mas, como afirmou Sócrates na entrevista à RTP, a prioridade agora é “acalmar os mercados” e não o desemprego de centenas de milhares de portugueses.

NOS PRIMEIROS 4 MESES DE 2010 FORAM ELEIMINADOS DOS FICHEIROS DOS CENTROS DE EMPREGO 185.705 DESEMPREGADOS

Durante a entrevista dada em 18.1.2010 à RTP Sócrates procurou desvalorizar a gravidade dos números do desemprego do INE afirmando que o desemprego registado (os desempregados inscritos nos centros de Emprego) tinha diminuído em Abril. Por ignorância ou com a intenção de enganar, o 1º ministro “esqueceu-se” de esclarecer, por um lado, que no desemprego registado apenas estão os desempregados que se inscreveram no Centros de Empregos, e há muitos que não se inscrevem porque não têm qualquer benefício com isso (não têm direito a subsídio nem lhe arranjam emprego); e, por outro lado, que são eliminados todos os meses dos ficheiros dos Centros de Emprego milhares de desempregados sem que o IEFP justifique porque o faz. Em 1 de Janeiro de 2010 existiam inscritos nos Centros de Emprego, segundo o IEFP, 524.674 desempregados. E, entre 1 de Janeiro e 30 de Abril de 2010, inscreveram-se nos Centros de Emprego mais 252.806 desempregados, e também durante este período os Centros de Emprego só conseguiram arranjar emprego para 21.007 desempregados. Portanto, se somarmos aos que estavam inscritos nos Centros de Emprego em 1.1.2010 – 524.674 – os que se inscreveram durante os primeiros 4 meses de 2010 – 252.806 – obtém-se 777.480. E se a este total retirarmos todos a quem os Centros de Emprego arranjaram trabalho – 21.007 – obtém-se 756.473. No entanto, o número de desempregados inscritos nos Centros de Emprego que o IEFP divulgou referentes a 30 de Abril de 2010 foi apenas de 570.768. É fácil de concluir que, para obter este o valor que foi o utilizado pelo 1º ministro na entrevista à RTP (570.768), o IEFP teve de eliminar dos seus ficheiros 185.705 desempregados. E a situação é grave porque o IEFP procura ocultar tal facto, e se recusa a divulgar as razões dessa “limpeza” na Informação Mensal que periodicamente publica. E foi isto que Sócrates, apesar de muito “explicativo”, se “esqueceu” de explicar.

DESEMPREGO AUMENTA, MAS O NÚMERO DE DESEMPREGADOS A RECEBER SUBSÍDIO DIMINUI, E O GOVERNO AINDA QUER REDUZIR MAIS

O número de desempregados não pára de aumentar no nosso País, mas o número dos que recebem subsídio de desemprego está a diminuir, como revelam os dados divulgados pela Segurança Social, que é a entidade que paga o subsídio de desemprego. Entre o 4º trimestre de 2009 e o 1º trimestre de 2010, o número oficial de desempregados aumentou em 28,3 mil, e o desemprego efectivo em 25,3 mil, mas o número de desempregados a receber subsídio de desemprego até diminuiu em 300. Mas ainda mais grave é o verificado no fim do 1º trimestre de 2010, em que o número de desempregados a receber subsídio de desemprego é inferior ao do mês de Fevereiro do mesmo ano em 13.300. Como consequência desta redução do apoio aos desempregados, a taxa de cobertura do subsídio de desemprego desceu, entre o 4º trimestre de 2009 e o 1º trimestre de 2010, de 63,9% para 60,8% (se se considerar o desemprego oficial) e de 51,2% para 49,3% (se se considerar o desemprego efectivo). E, como se tudo isto já não fosse suficiente, o governo pretende alterar a lei do subsídio de desemprego, com o objectivo de reduzir ainda mais o número de desempregados que recebem o subsídio de desemprego, com o falso argumento de que os desempregados não querem trabalhar.

A DESTRUIÇÃO DO EMPREGO CONTINUA, MAS O GOVERNO DIZ QUE OS DESEMPREGADOS NÃO QUEREM TRABALHAR

A destruição de postos de trabalho em Portugal continua de uma forma incessante. Entre 1º trimestre de 2005 e o 2º trimestre de 2008, ainda se verificou um aumento do emprego em Portugal pois, segundo o INE, passou de 5.094,4 mil para 5.228,1 mil (aumentou em 133,7 mil). Mas, partir desta data, tem-se verificado em Portugal uma diminuição contínua do emprego, tendo sido destruído neste período (2º trim. 2008/1º trim. 2010), 219,4 mil postos de trabalho. E apesar desta destruição, e de ser cada vez mais difícil arranjar trabalho em Portugal, nomeadamente para jovens e trabalhadores com mais de 45 anos de idade, o governo, dando satisfação às exigências dos patrões, que pretendem ter mão de obra ainda mais barata, com salários de miséria e sem respeito por qualquer horário de trabalho, aprovou uma proposta de lei que estabelece que o subsídio de desemprego não poderá ser superior a 75% do salário líquido que o trabalhador recebia no período anterior ao despedimento (este salário líquido é calculado, de acordo com a proposta do governo, deduzindo ao salário ilíquido os 11% para a Segurança Social mais a taxa de retenção de IRS), sendo depois o desempregado obrigado a aceitar qualquer emprego desde que lhe seja oferecido um salário ilíquido que seja igual ao subsídio de desemprego mais 10% . E isto durante o primeiro ano, porque ao fim de 12 meses o trabalhador é obrigado a aceitar qualquer emprego, desde que o salário ilíquido oferecido seja pelo menos igual ao valor do subsídio de desemprego (e este é igual ou menor a 75% do salário líquido do emprego anterior e também não pode ser superior a 3 IAS, ou seja, 1257 €), em qualquer actividade, podendo ser numa profissão que nunca o trabalhador exerceu, sob pena de perder o direito ao subsídio de desemprego. E isto porque, segundo a alínea c) do n.º 1 do art.º 13º da proposta de lei do governo, é considerado emprego conveniente, portanto emprego que o trabalhador tem de aceitar sob pena de perder o direito ao subsídio, o «que garanta uma retribuição líquida igual ou superior ao valor do subsídio de desemprego, acrescido de 10%, se a oferta do emprego ocorrer durante os primeiros 12 meses de concessão da prestação de desemprego, ou igual ou superior ao valor da prestação de desemprego, se aquela oferta ocorrer no decurso ou após o 13º mês».

É num quadro de forte recessão do emprego que Sócrates e Passos Coelho decidiram reduzir ainda mais o investimento público e diminuir o já baixo consumo interno, nomeadamente dos trabalhadores e dos reformados, aumentando significativamente a carga fiscal que a maioria da população já suporta e poupando mais uma vez aqueles que continuam a enriquecer com a crise que eles próprios provocaram e sobre a qual agora especulam, ou seja, os bancos, que são os principais actores actuais dos mercados financeiros que os governos da UE pretendem acalmar com estas medidas. O resultado destas medidas recessivas são fáceis de prever: mais falências e mais desemprego. Mas este é o tango que o governo e o PSD decidiram dançar em conjunto para mal dos portugueses, para utilizar a metáfora utilizada por Sócrates num discurso em Espanha, que tanto o encanta.

Eugénio Rosa (adaptado)
Jul9.2010

Enhanced by Zemanta

sexta-feira, 16 de julho de 2010

A anatomia do medo

Fear (of the Unknown)Image via Wikipedia


António Campos




O medo é a mais universal emoção pública na maioria do mundo actual. Este medo não é irracional, mas não conduz necessariamente a formas sábias de lidar com os presumíveis perigos. O modo como actua pode ser claramente compreendido em dois acontecimentos importantes do passado recente. O primeiro foi a dramática queda da Bolsa de Valores de Nova York a 6 de Maio deste ano – uma queda que espantou todos e durou apenas poucos minutos. O segundo foram as revoltas em Atenas, que já causaram três mortes e que continuam.

O que aconteceu na Bolsa? Parece que, naquela manhã, a média do Dow Jones industrial caíra cerca de 300 pontos. Foi uma descida considerável (cerca de 3%), mas que não parecia uma reacção incomum a uma combinação de más notícias em várias frentes nos Estados Unidos, a que se juntaram as crescentes incertezas sobre as probabilidades de a Grécia evitar a bancarrota. Mas, de repente, no fim da tarde, o Dow caiu mais 700 pontos com rapidez incrível. Foi a maior queda de transacções jamais registada num só dia. Ninguém a previu, e aparentemente deixou os operadores estupefactos. Algumas acções importantes caíram 90% e passaram a valer um cêntimo. Então, enquanto os operadores “assistiam boquiabertos” e quase com a mesma rapidez com que acontecera a queda, o Dow subiu de novo, terminando com uma perda de “apenas” 371,80 pontos – para aparente alívio dos operadores do mercado.

Evidentemente, todos procuraram uma explicação. A primeira fornecida foi que um único operador tinha um “dedo gordo” e pode ter introduzido uma operação de milhares de milhões, quando o que queria eram milhões. O problema com esta explicação foi que ninguém conseguiu localizar esta pessoa ou demonstrar que ele existe ou teve, de facto, um “dedo gordo”.

Começou então a circular uma explicação alternativa. A Bolsa de Nova York tem um mecanismo de desaceleração quando as operações parecem estar demasiado rápidas. Mas outras bolsas não têm o mesmo mecanismo. Assim, dizem alguns, os operadores, diante da desaceleração da Bolsa de Nova York, decidiram transferir as operações para outras bolsas. Alguns sugerem outra variante desta explicação: a culpa foi das chamadas estratégias algorítmicas de operação, que envolvem mecanismos automáticos de compra e venda pré-programados para fazer essa transferência. A falta de coordenação entre as várias bolsas, diz-se, é culpa dos regulamentos, e agora alguns argumentam que todas as bolsas deveriam ter mecanismos de desaceleração conjuntos. Para outros, a queda pode ter sido causada por um mecanismo automático, logo pode-se culpar máquinas e não pessoas.

Todas estas explicações podem ou não ser válidas. Mas omitem o facto de que, em vários pontos, intervieram decisões humanas – para reagir ao início da queda, para desacelerar as operações, para começar outra vez a comprar e permitir a subida do Dow. E é aqui que entra o factor medo.
Uma Bolsa de Valores envolve, por definição, risco e incerteza. Mas os operadores dependem fundamentalmente de sentir que as flutuações são relativamente pequenas e que ocorrem dentro de uma amplitude expectável. Quando as flutuações começam a ficar selvagens, ou seja, extensas e súbitas, os operadores entram compreensivelmente em pânico. E quando entram em pânico, inevitavelmente acentuam as flutuações posteriores. É um círculo vicioso.

No exacto momento em que os operadores de Nova York entraram em pânico, viam nos seus ecrãs os conflitos de rua em Atenas. Isso ainda os preocupou mais, por duas razões. Estavam mergulhados na incerteza acerca de como seria a decisão final dos países da União Europeia de ajudar a Grécia (ou mesmo se o fariam). Estavam mergulhados na incerteza acerca das implicações que teria nos bancos dos EUA, da Europa ocidental e do Japão a acção europeia (ou inacção) sobre os problemas da Grécia. E estavam mergulhados na incerteza sobre se a potencial falência da Grécia traria consigo um desemaranhamento global do mercado mundial.

Mas, acima de tudo, tinham razão em temer os conflitos. Os conflitos eram o resultado dos temores gregos. O que mais preocupava os gregos era a grande probabilidade de sofrer uma redução drástica dos seus rendimentos reais nos próximos anos. Estavam furiosos por causa disso e com muito medo. E não estavam nada convencidos de serem os culpados, e de terem de pagar por isso.

Mas os temores dos cidadãos gregos são claramente apenas a ponta do iceberg, como muito bem sabem os líderes dos governos e os operadores das bolsas de todo o mundo. O problema do governo grego é bastante simples. A sua arrecadação fiscal é demasiado pequena e o seu nível de gastos demasiado alto para os seus rendimentos correntes e num futuro previsível. Por isso, ou aumenta os impostos (se os conseguir colectar) ou corta gastos, ou ambas as coisas – e drasticamente. Mas este é também o problema da Alemanha, da França, da Grã-Bretanha, dos Estados Unidos, e a lista prolonga-se. Nem os poucos países que parecem ter, de momento, as suas cabeças fiscais acima da linha d'água (como o Brasil e a China) estão isentos deste contágio. Os gregos estão a tomar as ruas em protesto. Mas isto vai espalhar-se. E, à medida que se espalhar, o mercado mundial tornar-se-á ainda mais volátil, e os medos vão crescer, não diminuir.

A principal resposta política em todo o lado foi ganhar tempo com papel moeda emprestado ou impresso. A esperança é que, de alguma forma, no tempo do empréstimo ocorra um renovado crescimento económico que restaure a confiança, pondo fim aos pânicos latentes e reais. Os políticos agarram cada pequeno sinal deste crescimento e exageram a sua interpretação. O bom exemplo é o aplauso recente à criação de empregos nos Estados Unidos, quando esta foi menor que o crescimento da população no mesmo período.

O medo não é irracional. É a consequência da crise estrutural do sistema-mundo. Não pode ser resolvida com os pensos que os governos estão a usar para tratar as doenças sérias que enfrentamos actualmente. Quando as flutuações se tornam muito grandes e rápidas, ninguém pode fazer planos racionais. Assim, as pessoas deixam de agir como actores razoavelmente racionais numa economia-mundo relativamente normal. E é este grau de medo avolumado que é a realidade fundamental da era presente.

Retirado, com ligeiras alterações, de Esquerda.
Immanuel Wallerstein

Enhanced by Zemanta

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Neoliberalismo obrigatório

El Presidente del Gobierno de España, Dº José ...Image via Wikipedia


António Campos






«Inclina a cerviz, altivo sicambro; adora o que queimaste e queima o que adoraste», ordenou o bispo Remígio ao bárbaro Clóvis quando este teve de se converter ao cristianismo para ser rei de França. E isso mesmo parecem ter exigido ao social-democrata José Luis Rodríguez Zapatero os chefes de Governo do Eurogrupo, em Bruxelas, a 7 de Maio passado, quando se juntaram ao Fundo Monetário Internacional (FMI) e aos mercados financeiros para o obrigar a renegar toda a veleidade social, e a converter-se imediatamente ao credo neoliberal.

Somente cinco dias depois, com o fanatismo dos conversos (mas com pretenso «pungimento interno»), o Presidente do Governo – que afirmava, em 2004, «governarei para os mais fracos», e reiterava, em 2008, «governarei a pensar nos que não têm tudo» – anunciava um plano de ajuste terrivelmente impopular. Cinco milhões de pensionistas, três milhões de funcionários, centenas de milhares de idosos necessitados de assistência e meio milhão de futuros pais de 2011 sofrerão as consequências do corte brutal.

Ao mesmo tempo, outros chefes de governo social-democratas, na Grécia e em Portugal, viam-se também forçados a ir a Canossa, retractar-se e humilhar-se, e a acatar as teses ultraliberais que até então, em princípio, tinham combatido.

Insólita mudança. Porque há menos de dois anos, após a quebra do banco Lehman Brothers nos Estados Unidos, os partidários do neoliberalismo estavam derrubados e à defensiva. Eram eles quem renegava então. A “crise do século” parecia demonstrar o fracasso da sua ideologia da desregulação e a necessidade de recorrer de novo ao Estado para salvar a economia e preservar a coesão da sociedade. Os Governos, inclusive os de direita, retomavam a sua função de actores primordiais da área económica; nacionalizavam entidades financeiras e empresas estratégicas, injectavam massivamente liquidez no sistema bancário, multiplicavam os planos de estímulo… Tanto dirigentes como economistas felicitavam-se por essas decisões que correspondiam às lições tiradas da crise de 1929, quando se demonstrou que as políticas de deflação, de austeridade e de restrição do crédito conduziram à Grande Depressão.

Por isso, no Outono de 2008, todo o mundo anunciou o “regresso a Keynes”. Os Estados Unidos lançaram um plano de resgate dos bancos de 700.000 milhões de dólares, seguido de outro de 800.000 milhões de dólares. Os vinte e sete da União Europeia (UE) puseram-se de acordo num pacote de estímulo de 400.000 milhões de euros. E o governo de José Luis Rodríguez Zapatero, constatando, em Novembro de 2008, que «os três anos consecutivos de superávit orçamental permitem-nos agora incorrer em deficit sem pôr em risco a credibilidade das finanças públicas», anunciou um ambicioso Plano de Estímulo à Economia e ao Emprego de 93.000 milhões de euros. Além disso, em várias Cimeiras do G-20, os dirigentes dos Estados mais poderosos decidiam acabar com os paraísos fiscais, controlar os fundos de alto risco (hedge funds) e sancionar os abusos dos especuladores causadores da crise. José Manuel Durão Barroso, Presidente da Comissão Europeia, declarava: «As autoridades políticas não tolerarão mais que os especuladores voltem a levantar cabeça e nos arrastem para a situação anterior».

E, no entanto, voltámos à situação anterior. De novo os mercados e os especuladores têm a faca e o queijo na mão. E as autoridades políticas ajoelham-se. Que aconteceu? O peso da dívida soberana consentida pelos Estados para salvar os bancos [1] serviu de pretexto para uma espectacular mudança de situação. Sem o mínimo reparo, os mercados e a especulação financeira, apoiados pelas agências de qualificação (totalmente desacreditadas há apenas uns meses), atacam directamente, no seio da UE, os Estados endividados, acusados agora de viver acima das suas possibilidades. O objectivo principal é o euro. 

Wall Street Journal [2] revelou que um grupo de importantes responsáveis estadunidenses de hedge funds, reunido a 8 de Fevereiro num hotel de Manhattan, teria decidido aliar-se para fazer baixar a moeda única europeia para 1 euro face a 1 dólar. Naquele momento, o euro valia 1,37 dólares; hoje já só vale 1,22 e continua ameaçado… Os mercados querem a sua desforra. E reclamam, com mais vigor que nunca, em nome da “indispensável austeridade”, o desmantelamento da protecção social e a drástica redução dos serviços públicos. Os Governos mais neoliberais aproveitam para exigir maior “integração europeia” em cujo nome tratam de forçar a adopção de dois instrumentos que não existem: um governo económico da União e uma política fiscal comum. Com o apoio do FMI, a Alemanha impôs planos de ajuste a todos os membros da UE (Grécia, Portugal, Espanha, Itália, França, Reino Unido, Roménia, Hungria, etc.) cujos Governos, de repente obcecados pela redução do gasto público, acataram sem chiar. Ainda que isso ameace a Europa de cair numa profunda Depressão.

Na mesma linha, Bruxelas deseja sancionar os países que não respeitem o Pacto de Estabilidade [3]. Berlim pretende ir mais longe e acrescentar uma sanção altamente política: a suspensão do direito de voto no Conselho Europeu. Com um objectivo claro: nenhum Governo deve sair do carril neoliberal.

No fundo, esse é o saldo político da actual crise da dívida soberana: não parece ficar espaço, no seio da UE, para nenhuma opção de progresso. Admitirão os cidadãos semelhante regressão? Pode aceitar-se que fique descartada qualquer solução democrática de esquerda de impulsionar o avanço social?





[1] Um relatório da Comissão Europeia assinala que o total de fundos comprometidos para os bancos ascende a 3,3 biliões de euros, ou seja, a 28% do PIB da UE!, El País, Madrid, 20 de Junho de 2010.
[2] Susan Pulliam, Hedge Funds Try ‘Career Trade' Against Euro, The Wall Steet Journal, Nova York, 26 de Fevereiro de 2010.
[3] Adoptado em 1997 e que limita a 3% do PIB o déficit público.
Jul9.2010
Ignacio Ramonet

Enhanced by Zemanta

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Copa do Mundo – o outro mundial

Joe Slovo mass protest at the Cape High CourtImage via Wikipedia


António Campos




A Copa do Mundo de 2010 deve ser exposta publicamente como a grande farsa que é. A (ZACF), da África do Sul, condena veementemente o cinismo e a hipocrisia do governo sul-africano que apresenta este momento como uma oportunidade única "apenas uma vez na vida" para a melhoria da situação económica e social das pessoas que vivem no país (assim como no resto do continente). Isto é afirmado claramente - a tal ponto que se torna impressionante - visto que esta “oportunidade” tem sido e continua sendo a ganância desenfreada da elite dirigente sul-africana assim como a do capital, nacional ou internacional. Na verdade, a Copa do Mundo, se tiver algumas consequências é provável que estas sejam devastadoras - para os pobres da África do Sul e para a classe trabalhadora - já em pleno andamento.

Na preparação da Copa do Mundo, o governo gastou mais de 8,2 bilhões de rands (cerca de R$ 2 bilhões), por exemplo, mais de 1 bilhão para o desenvolvimento das infra-estruturas e 3 bilhões para reformas e construções de estádios que depois da Copa do Mundo jamais estarão lotados. Isto é um bofetada na cara de todos aqueles que vivem num país marcado por uma pobreza extrema e com uma taxa de desemprego que gira em torno de 40%. Nos últimos cinco anos, os trabalhadores pobres têm vindo a manifestar a sua indignação e decepção face à incapacidade do governo para corrigir as enormes desigualdades sociais, organizando, em todo o país, mais de 8 mil manifestações para exigir serviços básicos (água, electricidade, saúde...) e habitações dignas.

Esta distribuição dos custos, pelo Estado, é mais uma prova dos equívocos do modelo neoliberal capitalista e das suas políticas económicas de “racionamento”, que só serviram para aprofundar as desigualdades e a pobreza. Apesar das afirmações anteriores, no sentido contrário, o governo acabou por reconhecer, recentemente que "nunca foi a sua intenção" que este projecto chamado Copa do Mundo fosse beneficiário em termos sociais.

A África do Sul precisa desesperadamente de infra-estruturas públicas em grande escala, especialmente na área dos transportes públicos que estão quase totalmente ausentes em algumas cidades, incluindo Joanesburgo. O Gautrain (uma espécie de trem bala), lançado em 8 de junho (na véspera da Copa do Mundo), é provavelmente a grande ironia disto: num país onde a grande maioria das pessoas depende, quotidianamente, para percursos de longa distância, de táxis e lotações, sem condições mínimas de segurança, o Gautrain oferece rapidez, transporte de luxo para turistas e para aqueles que viajam entre Johanesburgo e Pretória (distante apenas 54 km)…

Em toda a África do Sul os municípios estão envolvidos em “esquemas” de revitalização urbana, acompanhados pelos seus inseparáveis programas de gentrificação, com o governo tentado, apressadamente, esconder debaixo do tapete a crua realidade deste país. Em Joanesburgo, mais de 15 mil sem-abrigo e crianças de rua foram apanhadas e “despejadas” em "abrigos"; em Cape Town, autoridades do município expulsaram milhares de pessoas das zonas pobres e das favelas no âmbito do projeto "World Cup Vanity" (tornar a cidade agradável para a Copa do Mundo). Em Cape Town tentou-se - em vão - expulsar de suas casas 10 mil moradores da favela Joe Slovo com o objetivo de esconder a população dos olhos dos turistas que viajam ao longo da rodovia N2…

Num contexto em que quase um milhão de empregos desapareceram, só no ano passado, as declarações do governo, sobre a criação de mais de 400 mil postos de trabalho devido à Copa do Mundo, são descontextualizadas e ofensivas. Os empregos que foram criados, nesta euforia futebolística, são muitas vezes precários ou CDD (contratos com duração determinada), por trabalhadores que não são sindicalizados e recebem salários muito abaixo do salário mínimo. Para além da repressão contra os sindicatos, os movimentos sociais têm sentido a mesma hostilidade do Estado, traduzida oficialmente pela proibição geral de todos os protestos durante a Copa do Mundo…

Prevendo com a Copa 2010 um lucro de aproximadamente 1,5 bilhões de euros, a FIFA já arrecadou mais de 1 bilhão apenas com os direitos de transmissão televisiva. Os estádios e as zonas circundantes foram entregues à FIFA durante o período do torneio (como “casulos livres de impostos”, áreas controladas e vigiadas pela FIFA e isentas do imposto normal e outras leis estaduais sul-africanas), incluindo estradas e pontos de acesso. Dessas regiões serão excluídas as pessoas que vendem produtos não licenciados da FIFA. Assim, os que acreditaram que, durante a Copa do Mundo, iriam aumentar a sua renda de sobreviventes, serão deixados de fora no frio "racionamento" neoliberal.

Mais: a FIFA, como proprietária exclusiva da marca Copa do Mundo e dos seus produtos derivados, dispõe de uma equipe com centenas de advogados e funcionários que percorrem o país para rastrear qualquer venda não autorizada e para fazer marketing da sua própria marca. Os produtos ilegais são apreendidos e os vendedores são presos, apesar do fato da maioria na África do Sul e do continente comprarem os seus produtos no sector do comércio informal. Porque muito poucos sul-africanos têm 400 rand (40 euros) para pagar pelas camisas das selecções e outras “engenhocas” da Copa.


Os jornalistas também foram efectivamente amordaçados neste evento, na hora de se credenciarem, a FIFA incluía a aprovação formal de uma cláusula que impede as organizações de média de criticá-la, comprometendo claramente a liberdade de imprensa…

Hoje, o futebol negócio e a Copa do Mundo trarão lucros exorbitantes para um pequeno grupo da elite mundial e nacional (com milhões de gastos desnecessários, especialmente em um momento de crise capitalista mundial), que cobram aos seus clientes-torcedores- espectadores milhares de rands, dólares, libras, euros, etc., para assistirem futebolistas caindo em excesso e mergulhando em campos super bem tratados e que discutem, através de agentes parasitários, se são ou não dignos de seus salários mirabolantes (Kaká recebe mais de 10 milhões de euros por ano no Real Madrid).

O jogo em si, que em muitos aspectos, mantém a sua beleza estética, perdeu a sua alma trabalhadora e foi reduzido a uma série de produtos destinados a serem explorados e consumidos. Bakunin disse que "as pessoas vão a igreja pelos mesmos motivos que vão a um bar: para hostilizar, para esquecer a sua miséria, para imaginar serem, por alguns minutos, também, livres e felizes”. Talvez possamos dizer o mesmo do futebol negócio, com estas bandeiras nacionalistas agitadas e a sua cegueira, com as estridentes vuvuzelas. Deste modo parece mais fácil de se esquecer do dia a dia, de tomar parte na luta contra a injustiça e a desigualdade…

La Haine, traduzido e adaptado do espanhol, Jul2.10

Enhanced by Zemanta

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Uma Louca Corrida para o Abismo

Jen & Ka - AbismImage by axeldeviaje via Flickr


António Campos





“Ainda a «procissão vai no adro» e já para os capitalistas os sinos tocam a rebate. Em Portugal, confrontado com uma situação económica e financeira catastrófica, o governo – os «elefantes brancos» do Poder – prefere refugiar-se no puro suicídio. Vende ao desbarato o património do Estado, contrai novos empréstimos no estrangeiro para pagar os juros da dívida pública, oculta o constante aumento das contribuições, nada faz (bem pelo contrário!..) para garantir novos empregos, diminui o valor real das pensões de reforma, transfere para o privado e a preços de saldo as escolas, as creches e os hospitais dos sectores nacionais que a Constituição consagra, nacionaliza e desnacionaliza ao sabor de quem dá mais e investe tudo quanto o país tem e não tem para pagar aos ricos os prejuízos causados na banca pelo saque do dinheiro que é dos outros e pelos actos de ladroagem que continuam a ser cometidos”.

Em tempos antigos, dizia-se que em certos momentos misteriosos se reuniam em manada centenas de elefantes os quais, quando o seu número era já grande, encetavam uma inexplicável e furiosa cavalgada por caminhos que findavam num despenhadeiro. Quando lá chegavam não se detinham e precipitavam-se das alturas. Talvez que esta história de suicídio colectivo dos paquidermes tenha sido fruto de uma imaginação fértil que, depois, os factos não tenham confirmado. De qualquer modo, pode servir para ilustrar o que em seguida tentaremos descrever.

Uma outra corrida para o abismo
Estamos a entrar na recta final de um curto e tresloucado período de aceleração contraditória do processo histórico. Nos últimos vinte anos, sucessivamente e em curtos períodos do tempo, o capitalismo mundial afirmou-se vitorioso, abrandou a sua marcha triunfal, aceitou que entrara em crise letárgica, declarou oficialmente aberta a crise, e deixou de entoar cânticos de louvor gratuitos que substituiu por uma cortina de falsidades e invenções. Tenta agora, simplesmente, disfarçar e adiar uma bancarrota que cada vez mais claramente se anuncia. A culpa é da crise e dos que não querem trabalhar. Não há alternativas...

No passado recente, politicamente o neoliberalismo conseguiu desmontar alguns aparelhos vitais da economia estatal e apoderar-se da direcção política de Estados socialistas. Conquistou, financeira e comercialmente, enormes mercados, instalou como tipo de vida o consumismo e banalizou o crédito bancário. Em todas essas mutações subordinou o produto ao dinheiro e santificou o lucro como valor-padrão. Criou, desta forma, uma «sociedade global» conscientemente desequilibrada, protectora da riqueza, da tirania dos mais fortes e do império de forças subversivas lançadas contra todas as formas de democracia e desprovidas de quaisquer limites éticos com sentido colectivo do «bem comum».

Isto exigiu uma gigantesca acumulação de dinheiro vivo, com fluxos monetários abundantes e constantemente renovados. Nesse sentido, os governos neoliberais destruíram a pequena e a média indústria, o pequeno comércio, a agricultura e as pescas, anexando assim às multinacionais novos mercados e lucros e reduzindo a nada as poupanças das famílias, tornadas inúteis pelo crédito fácil, embora com elevadas taxas de juros. O Estado capitalista apoiou a concentração dos capitais financeiros em gigantescos grupos bancários, privados e multinacionais, aos quais garantiu avales de riscos, para o caso (improvável, diziam os banqueiros …) de se declarar uma crise no sector. Por outro lado, facilitou ao extremo a vida dos mecanismos financeiros de branqueamento de capitais.

Tudo o restante (emprego, economia produtiva, défice público, dívida pública, desenvolvimento, fiscalidade, etc.) ficava cativo destas políticas e teria tratamentos muito diferenciados. O grande valor a salvaguardar seria sempre o dinheiro, fonte do poder, e do «status» das grandes fortunas. Só por esta via o capitalismo conseguiu, em curto e por breve espaço, criar entre as massas populares a miragem do sucesso e da existência ilusória de um novo mundo real organizado em torno de uma nova ordem global que abriria enfim as portas ao acesso ao fácil ao dinheiro, ao êxito pessoal, à segurança e ao bem-estar. A humanidade - garantiam os capitalistas - entrara numa era irreversível de prosperidade para os mais aptos e os mais dotados e de conforto social garantido aos outros sectores da sociedade. Terminava aqui a luta de classes. Extinguia-se o fosso entre ricos e pobres. Proclamava-se inaugurada a «Era da Globalização».

O “admirável mundo novo”
(…)
O neoliberalismo «globalizante» – sobretudo a nível das suas formações superiores – nega e amesquinha todos estes princípios que na teoria e na prática representam as regras básicas de qualquer desenvolvimento democrático e científico da história das sociedades humanas. O neoliberalismo impõe às massas os interesses da classe dominante. E, como nesta fase, o essencial para o capitalismo é acumular dinheiro, a sua intervenção política preocupa-se exclusivamente em criar um mundo que objective a imagem das suas ambições. Dinheiro produz dinheiro. Dinheiro acumulado produz Poder.

No papel, tudo parece correcto. Mas, não! Os capitalistas enganaram-se, uma vez mais, quando deram por encerrados os ciclos da história. Tomaram a nuvem por Juno. Os povos, longe de estarem definitivamente iludidos, alheados de tudo, conformados com a exploração, vêem o que se passa, vão erguer-se, unir-se e lutar. Ao ciclo do capitalismo triunfante, sucederá o da sua total negação. Por muita força repressiva de que um sistema disponha, jamais conseguirá subsistir se não tiver uma economia forte e se o dinheiro assim produzido não for investido no desenvolvimento público, segundo o justo critério «a cada um segundo as suas necessidades; de cada um de acordo com as suas capacidades». Tudo terá de ser explicado ao povo. Quer queiram, quer não, vai chegar a hora da prestação de contas.

Ainda a «procissão vai no adro» e já para os capitalistas os sinos tocam a rebate. Em Portugal, confrontado com uma situação económica e financeira catastrófica, o governo – os «elefantes brancos» do Poder – prefere refugiar-se no puro suicídio. Vende ao desbarato o património do Estado, contrai novos empréstimos no estrangeiro para pagar os juros da dívida pública, oculta o constante aumento das contribuições, nada faz (bem pelo contrário!..) para garantir novos empregos, diminui o valor real das pensões de reforma, transfere para o privado e a preços de saldo as escolas, as creches e os hospitais dos sectores nacionais que a Constituição consagra, nacionaliza e desnacionaliza ao sabor de quem dá mais e investe tudo quanto o país tem e não tem para pagar aos ricos os prejuízos causados na banca pelo saque do dinheiro que é dos outros e pelos actos de ladroagem que continuam a ser cometidos.

Os altos cérebros do capitalismo mundial já perceberam que estão em presença de um Estado-anedota e de um poder fantoche. Dão uma palmadinha nas costas dos políticos portugueses, dizem que eles são «bons alunos» mas … querem sempre mais. Tanto o FMI como a União Europeia começaram nas «pontas dos pés», sugerindo a correcção dos défices públicos. Rapidamente subiram de tom as suas imposições. Agora, exigem que o Estado português sobreponha à Constituição da República o estatuto europeu; que ampute e altere as normas que regem o Código Laboral; e que cada cedência das instituições nacionais seja seguida do sério aviso de que os agravamentos serão para continuar. A uma simples ordem vinda de Washington ou de Estrasburgo, o governo de Sócrates acocora-se, acelera despedimentos e privatizações, entrega escolas, hospitais, creches e lares aos interesses privados e revela publicamente o seu imenso desprezo pelos princípios constitucionais que deveriam reger a sua política.

É mais que tempo de cerrarmos fileiras. A «crise» de que nos falam como se fosse uma banalidade, atinge profundamente todo o mundo capitalista, desde os países «pobres» como a Grécia, a Hungria ou Portugal, aos mais «ricos», à Alemanha, à Inglaterra ou mesmo aos Estados Unidos. Por toda a parte, os capitalistas «mostram os dentes» e revelam como é dramática a sua fuga em frente para o despenhadeiro terminal. É certo que os seus recursos ainda são enormes. Mas estão em franca fase de esgotamento e nos píncaros da contradição política e social... 

«Cruzar os braços» não vai salvar ninguém. É preciso lutar-se por um mundo mais justo... 


https://blogger.googleusercontent.com/tracker/6041973580550713426-6525367521559997639?l=sociologias-com.blogspot.com
Jorge Messias (adaptado)


Enhanced by Zemanta

quarta-feira, 7 de julho de 2010

A globalização dos crimes petrolíferos

LONDON - JANUARY 31:  A Shell logo is displaye...Image by Getty Images via @daylife


António Campos




O desastre na plataforma petrolífera da BP no Golfo do México tem preenchido os noticiários, mostrando-nos a face negra da nossa dependência do petróleo. Mas um derrame de petróleo causado pela negligência de uma empresa que procura o lucro acima de tudo não é novidade para muitos cidadãos do mundo sem voz na nossa comunicação social. Nenhuma região do mundo tem sido tão devastada por catástrofes ambientais causadas por petrolíferas como o Delta do Níger, onde milhões de pessoas vivem em condições infernais.

Desde 1970, foram registados mais de 7000 derrames de petróleo no delta do Níger. As petrolíferas que exploram as jazidas não se preocupam em investir na manutenção dos oleodutos e outras infra-estruturas e os acidentes são comuns. O povo da Nigéria está assim condenado a viver num ambiente altamente poluído, para que multinacionais como a Shell, a Chevron e a Exxon possam usufruir de lucros milionários.

Um dos casos mais gritantes do desrespeito pela lei é o da queima de gases descartados. A exploração de petróleo liberta gases sem valor comercial, que devem ser eliminados de forma segura. Na Nigéria, contudo, as petrolíferas optam por queimar estes gases, um procedimento que resulta em elevados níveis de poluição atmosférica. A prática é ilegal, mas as multas são tão irrisórias face aos lucros das petrolíferas que o crime compensa. Estes crimes ambientais estiveram na origem da revolta do povo Ogoni, particularmente afectado pela poluição, nos anos 1990. O Movimento pela Sobrevivência do Povo Ogoni (MOSOP) fez estremecer as fundações da ditadura militar nigeriana, que conspirou com a Shell para reprimir a rebelião.

Em 1994, quatro chefes tribais Ogoni que colaboravam com o governo foram assassinados. A resposta do governo foi imediata: os líderes do MOSOP foram presos e executados, na sequência de um julgamento fantoche. A maior parte dos advogados de defesa demitiu-se em resposta à manipulação do tribunal pelo governo e, uns anos mais tarde, muitas das testemunhas da acusação mais tarde confessaram que tinham sido compradas pelo governo nigeriano e pela Shell. Em Junho de 2009, a Shell seria julgada nos EUA por crimes contra a humanidade, tendo acordado o pagamento de 15,5 milhões de dólares às famílias dos activistas assassinados.

Apesar desta vitória parcial, o sofrimento do povo da Nigéria continua a ser uma realidade. No Delta do Níger, o petróleo derramado num ano excede a mancha negra do Golfo do México. Enquanto que a BP se encontra sob forte pressão pública para conter o derrame, ninguém se preocupa em conter os derrames na Nigéria, que podem durar meses. Numa entrevista ao Guardian, Nnimo Bassey, presidente do Friends of the Earth dizia que no seu país natal as pessoas observam com espanto as declarações diárias de Obama, dado que lá nenhum político se digna a falar à população quando ocorre um derrame. Mas os nigerianos vêem também o seu futuro quando vêem na TV o resultado do incêndio na plataforma Deepwater Horizon, já que em breve começarão as obras para expandir a extracção de petróleo para o mar.

Os crimes das petrolíferas em todo o mundo são demasiado extensos para caber numa crónica como esta. Tentei estabelecer um paralelismo com a Nigéria, mas poderia com a mesma facilidade ter descrito os atentados ambientais no Equador, no Azerbaijão ou na Venezuela. A extracção de petróleo é um negócio sujo, cuja realidade optamos por ignorar na hora de abastecer o automóvel porque as consequências mais drásticas ocorrem fora do Ocidente. A novidade não está, portanto, no grave acidente ocorrido numa plataforma petrolífera, mas antes no facto de este acidente ter acontecido nos EUA.

de Ricardo Coelho


Enhanced by Zemanta

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Migração, saúde e cultura 2)

Four populations of the first wave of modern h...Image via Wikipedia


António Campos



Afectadas por uma «dupla ausência> que advém da sua dupla condição de emigrantes e imigrantes (Sayad 1999), as populações migrantes sentem o sabor amargo da desilusão após a miragem. Encontram-se, com frequência, a viver o insuportável e o incompreensível. Tal experiência, quando transformada em condição de vida, assume contornos de um absurdo que pode comprometer a integridade física e psíquica dos indivíduos. Os «ausentes» que são, tanto no país de emigração como no de imigração, carregam consigo um misto de culpabilidade e de vitimização. Suportam dentro de si um peso inconfessável porque, muitas vezes, o seu sentido é-lhes estranham ente desconhecido. A incapacidade de atribuir um sentido ou de elaborar uma inteligibilidade à sua própria condição cria o mal-estar existencial e o sofrimento psíquico. Ao mesmo tempo que representa um custo social da imigração, o sofrimento é vivido na esfera mais íntima e profunda da vida de cada imigrante, marcando-lhes o corpo e a alma em silêncio. A vivência interior da fractura entre fronteiras da memória e da identidade (Beneduce 1998) é portadora de uma nova subjectividade que os imigrantes muitas vezes não são capazes de gerir.

As ilusões que motivam a imigração, além da necessidade económica, transformam-se numa melancolia que tempera as amarguras quotidianas dos imigrantes, face à sua vulnerabilidade perante a lei, à exploração no trabalho, à exclusão social ou ao racismo. Frequentemente perseguidos a partir do interior por uma imobilidade paralisante, aqueles são também acossados por uma economia global que, por um lado, os atrai para, por outro lado, logo os rejeitar. Deste modo, eles perdem ainda «perspectiva», auto-excluindo-se de uma geometria mais vasta propícia a um novo projecto de vida. A própria ideia de projecto fica neles assombrada pela experiência traumática da perda e da ruptura associada ao fenómeno de migração. E esta descontinuidade paradigmática das vidas dos imigrantes é múltipla: no espaço, no tempo, nas referências simbólicas, na língua, nos laços afectivos, na experiência de si e dos outros, na percepção do mundo e nos sentidos atribuídos às coisas.

Não raro, é no contexto das consultas de apoio médico e psicológico aos migrantes que estes tentam exprimir o seu mal-estar, muitas vezes já em situação de desespero. Importa, a este propósito, lembrar que o pedido de ajuda é na maioria dos casos encaminhado por assistentes dos serviços sociais e religiosos, pela polícia, pelos vizinhos ou pela família. Outras vezes, encaminha-os, simplesmente, o desespero ante um ataque de pânico sem causa aparente ou antes desencadeado por uma ameaça de morte perpetrada pelo patrão insatisfeito ou ainda por uma tentativa de suicídio. As diferenças culturais entre nativos e imigrantes vem juntar-se ainda a diferença de tradições e práticas terapêuticas entre os prestadores de cuidados de saúde e os pacientes migrantes. Esta é uma realidade que ultrapassa os próprios técnicos de saúde, também eles encurralados numa estrutura hierárquica e institucional pouco flexível à perspectivação do futuro sob novos moldes.

A vulnerabilidade que conduz os imigrantes a um pedido de ajuda - independentemente de qualquer descrença mais ou menos legítima nas instituições - acarreta um potencial de diálogo: intercultural e político. A tomada de consciência dos equívocos e impasses de entendimento gera a necessidade colectiva de encontrar novas respostas. Esta nova necessidade motiva, por sua vez, a pesquisa de estratégias terapêuticas e analíticas adequadas à realidade plural dos nossos dias. Investigadores de várias disciplinas interessadas na questão da saúde dos imigrantes convergem cada vez mais para um diálogo com antropólogos e cientistas sociais nas universidades, em centros de acolhimento a imigrantes e em serviços hospitalares, com vista a trabalhar em conjunto sobre estes desafios que hoje a todos se colocam. Este é também um esforço informado por uma antropologia auto-reflexiva pós-colonial (Pina Cabral 2004), que propõe uma etnografia de práticas terapêuticas em contextos de diversidade cultural e uma crítica epistemológica dos saberes dominantes.

Em Portugal existem já iniciativas pioneiras que procuram situar as histórias dos pacientes em estratégias localizadas de .cura e em representações culturais da doença (Carapinheiro 1993; Quartilho 2001; Lechner 2005; Pussetti 2006). Mas urge desenvolver nas nossas universidades este novo e importante campo de investigação/acção centrado nos apoios a populações migrantes residentes em Portugal(…).

Elsa Lechner, in Migração, Saúde e Diversidade Cultural, 2009 (adaptado) - conclusão

Enhanced by Zemanta

sexta-feira, 2 de julho de 2010

As narrativas da globalização

Logo of Centre on Asia and GlobalisationImage via Wikipedia


António Campos



Novas geografias sociais estão abrindo espaços inéditos de contestação pelos quais navegam as flotilhas da liberdade

Muitas análises contornam o fenómeno da globalização. Especialistas enveredam pelo mundo tecnológico, outros preferem a expansão do capitalismo, outros, a aceleração dos fluxos financeiros, outros optam por focalizar as desigualdades. A americana Saskia Sassen, professora de sociologia da Columbia University e da London School of Economics, está em todas essas frentes e ainda consegue ter uma abordagem original. Investiga a globalização a partir das novas geografias ? social, urbana, humana. Nesta terça-feira às 17h30, Saskia fará uma única palestra na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP, em São Paulo, absolutamente dentro do seu campo de estudos. Será um momento raro para a comunidade académica e para o público interessado em ouvi-la falar, uma vez mais, sobre as tensões e contradições das global cities, termo que inaugurou há muitos anos, e ainda sobre os dilemas da sociedade civil, tão desnorteada, mas tão cheia de possibilidades.
Saskia conversou sobre esses temas com o caderno Aliás, por e-mail, na semana passada. Foi um feito. Estava em Londres, de repente viajou para a China, regressou aos Estados Unidos via Chicago e logo viria para o Brasil. Entre um embarque e outro, a professora expôs sua visão sobre vários desafios contemporâneos, ao mesmo tempo que opinou sobre a crise deflagrada com o ataque a uma flotilha humanitária que se dirigia para Gaza, até ser interceptada por forças militares israelitas. Acha que os ativistas atingiram seu objetivo ? chamar a atenção mundial para uma causa. O que não significa que a situação vá mudar. Casada com o historiador americano Richard Sennett, também professor da London School e autor do já clássico O Declínio do Homem Público (Companhia das Letras, 1988), Saskia Sassen lançou (fora do Brasil) inúmeros títulos, como Metropolis e Formações Digitais, e ainda Sociologia da Globalização, agora traduzido para o português e publicado pela editora gaúcha Artmed. A seguir, trechos de uma conversa feita em várias partes.
Espaços de contestação
"Tenho-me dedicado ao tema da sociedade civil, suas dinâmicas e formas de expressão, considerando ser esse um dos capítulos mais fascinantes dos estudos sobre globalização. Eu interesso-me particularmente pelas novas geografias sociais que configuram nosso tempo, dentro das quais nos deparamos com inéditos espaços de contestação. A Flotilha da Liberdade é algo assim. Mesmo semeando tensões, logrou chamar a atenção mundial para uma determinada causa, o repúdio ao bloqueio de Israel a Gaza, reanimando o debate internacional. Como espaço de contestação que é, esse movimento consegue ser efetivo, utilizando relativamente parcos recursos. É um pouco como age o Greenpeace em suas operações. Mas resolve? Não. Porque do debate para a implementação de mudanças vai um tempo longo. Implementar significa lidar com processos bem mais complexos".
Ações difusas e confusas
"Organizações da sociedade civil, nem todas, mas muitas, querem atuar no plano global, sem utilizar sua capacidade para tanto. Porque não sabem lidar com um mundo também feito de globalizações laterais, umas conectadas às outras. Portanto, existe um potencial não realizado nessas organizações, e em seus projetos, justamente quando tantas frentes de batalha se abrem por aí. Essa sensação de estar conectado e, ao mesmo tempo, se sentir perdido no mundo de hoje é um dos dilemas da globalização. E não afeta apenas essas organizações. Tomemos como exemplo o mundo financeiro: temos tantos especialistas preparados e cientes das transformações globais e ainda assim uma leve? quebra bancária os pegou de surpresa, recentemente. Lacuna curiosa, não? Nós nos sentimos perdidos, a bordo de altíssimos níveis de conhecimento. Tanto se pergunta sobre como lidar com o mal-estar da globalização. Ele é parte do processo. Diz respeito a um mundo em que o cidadão se torna cada vez mais espectador passivo e, muitas vezes, uma vítima ou mero consumidor de artigos prontos ? desde a comida até as opções bancárias. Em meus textos mais políticos, digo que nos tornamos consumidores de cidadania e de democracia, em vez de criadores de cidadania e de democracia, como já fomos antes.
Não é só Gaza...
"Um segundo tema, parte do meu novo projeto de pesquisa, diz respeito ao número cada vez maior das "lógicas da expulsão" operando na fase atual e emergente do capitalismo avançado. Essa fase é marcada pelo aumento no número de pessoas que foram "expulsas" de alguma forma, de algum lugar, de alguma situação, em número que supera de longe as recém-incorporadas classes médias de países como Índia e China. Emprego o termo "expulsão" para me referir a uma gama de situações: o número cada vez maior de pobres no mundo; os sem abrigo que lotam campos de refugiados formais e informais; as minorias populacionais armazenadas em prisões; trabalhadores cujos corpos são destruídos ou inutilizados em idade muito precoce; populações excedentes, porém capazes, confinadas em guetos e favelas; e por aí vai. São muitas as "lógicas da expulsão", incluindo a transferência de áreas que antes faziam parte do chamado "território nacional soberano", para a finalidade básica de venda no mercado global. Desde 2006, cerca de 30 milhões de hectares de terra foram comprados e licenciados por governos e investidores para o cultivo de alimentos direcionados aos países ricos e para garantir o controle de recursos naturais, tais como fontes de água, jazidas de minérios, etc. Enquanto isso, a cota mundial de sem abrigo aumentou em 17 milhões, atingindo um total de 27 milhões.
Os jovens e o futuro
"Eis uma boa questão. De acordo com a explicação de meu marido, Richard Sennett, antigas narrativas de vida e trabalho já não funcionam para um número cada vez maior de pessoas. Eis o espaço subjetivo no qual residem os jovens de hoje. Antigas narrativas já não lhes cabem. Estou certa de que, para muitos, é algo animador. Até porque muitos não desejam aquela estabilidade de vida que seus pais perseguiram. Mas, para a imensa maioria dos jovens nascidos em famílias pobres e vulneráveis, essa falta de narrativas pertinentes constitui uma zona de perigo.
Miopia dos governantes
"Nossos líderes estão "presos" no espaço nacional. Só pensam e agem nos limites do espaço nacional, enquanto lei, jurisdição, autoridade e base de operações. E disso não escapam nem os Estados Unidos, cujo poder é projetado globalmente. De repente, lá se vai mais um pelotão de fuzileiros para a frente, mas, no fundo, no fundo, isso tem a ver em como reagir a insatisfações internas com o presidente. Insisto em dizer que os nossos governantes não sabem como lidar com cross-border processes, ou seja, processos da globalização que cruzam fronteiras e assim se configuram. Nossos governantes querem que o capital cruze fronteiras. Que setores de mão de obra também o façam. Mas não querem os terroristas, os traficantes, os imigrantes pobres, porém não sabem lidar com fluxos indesejados, precisam aprender. Não há outro jeito. Até mesmo os governos mais poderosos terão que começar a trabalhar com governos sem tanto poder. E não só para caçar terrorista. Governos nacionais, é verdade, tornaram-se bem mais internacionais desde os anos 80, ao longo do desenvolvimento de uma economia global corporativa e do mercado de capitais. É pena que não estejam aprendendo a ser mais internacionalistas também em relação ao meio ambiente, à fome global, à injustiça global... Em meu livro, Território, Autoridade, Direitos, sem tradução para o português, afirmo que essa nova capacidade para o internacionalismo poderia ser empregada em projetos bem mais interessantes, desde que haja renovação nas classes governantes.
Cosmopolitismo dispensável
"Existem múltiplas globalizações. A económica, a corporativa, a financeira, a tecnológica. Nota-se nisso tudo certa tendência de desumanização da nossa vida e da nossa subjetividade. Mas outras globalizações também estão em curso, como a da sociedade civil, da defesa dos direitos humanos, das lutas pela preservação do meio ambiente, e essas nos humanizam de maneira profunda. Temos aí os sinais da emergência de um humanismo desnacionalizado, para o qual não é necessário sequer tornar-se um indivíduo cosmopolita. Basta ser humano e acreditar em certas causas. Digo que nem é preciso ser cosmopolita no sentido de que é possível estar envolvido, de forma local, com a denúncia ao torturador da prisão mais próxima ou com a fábrica que polui a água de seu bairro, e ao mesmo tempo totalmente consciente de que ao redor do mundo há outros como você.
Cidades globais
"São espaços complexos, carregados de contradições. Temos pelo menos 70 delas no planeta, cidades em que o poder corporativo se consolidou de forma espantosa, criando geografias da centralidade que hoje conectam lugares e pessoas, cruzando a histórica divisão entre Norte e Sul. Explico: as elites corporativas de São Paulo estão completamente integradas à geografia global do poder que inclui Nova York, Londres, Dubai. E há Pequim, Xangai, cidades que estão mudando a geografia do poder. Ao mesmo tempo, outras minorias, os vulneráveis, os desabrigados, os discriminados, enfim, os deslocados vão justamente encontrar espaço para seus projetos de vida, resistência e exigências aonde? Nas global cities. Devemos estudá-las. Precisamos entender como aqueles que são expulsos do interior, ou de suas pequenas cidades, encontram exatamente na cidade global o único lugar que ainda lhes resta para viver. Ainda que dormindo nas ruas...
 
 Laura Greenhalgh - O Estado de S.Paulo
Jun 6.2010



Enhanced by Zemanta